quarta-feira, 3 de julho de 2024

5078) As prostitutas civilizatórias (3.7.2024)

 

(ilustração: Henri de Toulouse-Lautrec)
 
 
Nas variadíssimas anotações que constituem o volume Meu Mestre Imaginário (Ed. Record, 1982), Autran Dourado faz esta reflexão, que hoje seria (será) considerada politicamente incorreta:
 
Envelheço a olhos vistos. “Nos olhos das mulheres, no espelho do meu quarto, é que vejo a minha idade”, diz uma canção popular que outro dia escutei na rádio. (...) Aquele futurismo, como eu pensava e falava então, era uma bobagem a mais, uma daquelas em que somos useiros e vezeiros – dernier bateau. Da França importávamos quase tudo, das prostitutas que nos ensinavam a copular, e de onde vinham os mais finos vinhos, a Anatole France. (p. 100) 
 
O sambinha de Silvio Caldas citado por ele é mais uma dessas nostalgias pouco justificáveis: “Ah, eu daria tudo para poder voltar aos meus vinte anos!...”  
 
Eu não tenho nada contra essa idade, na qual considero que estava passando um dos períodos mais estimulantes de minha vida. Mas voltar lá pra quê?!  Quando ouço esses lamentos, lembro a frase ácida e impiedosa de Paul Nizan, na abertura de Aden Arabie, um dos grandes começos-de-romance do século 20: 
 
Eu tinha vinte anos. Não admito que alguém diga ser esta a época mais bela da vida.
 
“Meus Vinte Anos”:
https://www.youtube.com/watch?v=qhlRwPDmOuA
 
A simpática canção de Sílvio Caldas, chamado em sua época “o Caboclinho Querido”, me traz à mente a imagem do sujeito que começa a grisalhar o cabelo e começa também a se olhar de perfil no espelho, tentando calcular os avanços de sua protuberância abdominal, e interpretar o olhar de soslaio de alguma beldade com quem se acostou.
 
Será mesmo nos olhos das mulheres que os homens tanto temem se ver envelhecidos, diminuídos, aviltados?  O machismo consiste (entre outros elementos, até mais tóxicos) numa imensa auto-estima. Ela nos injeta a presunção de que estamos sempre certos, devemos nos sentir sempre adequados, somos sempre satisfatórios. Por que tanta angústia, então?
 
E aí chegamos à frase inicial do mestre imaginário de Autran Dourado. Porque a opinião das mulheres tem valor e peso, ora se tem; talvez não a da “patroa” mortiça e obediente que aguarda o cidadão em casa, com a mesa posta e a cama forrada, mas a opinião da cocotte (valha o termo; Autran Dourado o reconheceria) sofisticada, maliciosa, semi-elegante, que estalava seus saltos-altos na calçada da Rua do Ouvidor, nas salas de espera dos teatros, no piso mosaicado das confeitarias e dos cafés elegantes.


 
(ilustração: J. Carlos) 


Porque é a essa época que o romancista mineiro se refere, quando diz que importávamos da França as prostitutas que nos ensinavam a copular. É uma maneira crua de dizer algo mais complexo e, curiosamente, mais bonito.
 
Num dos seus melhores e menos citados romances, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919), Lima Barreto comenta extensamente, no Capítulo 9 (“O Padrinho”) o afluxo de mulheres-da-vida estrangeiras que aportam no Brasil para fazer fortuna (ou para não morrer de fome, o que também não é má idéia).
 
A certa altura, o narrador fictício da obra, Augusto Machado, lembra um comentário do seu mestre Gonzaga de Sá, segundo o qual “a mulher fácil é o eixo da vida”. São mulheres “cheias de jóias, com espaventosos chapéus de altas plumas”, e vendo-as passar, Augusto recorda os comentários de Gonzaga:
 
Recordei que aquelas mulheres todas tinham vindo vazias, com alguns vestidos de segunda mão e muitas malas ocas, mas chegavam com sua alvura polar, com as faces rubras, com seus estranhos olhos azuis e o prestígio das velhas raças de que se originavam.
 
São louras e européias, e por enquanto é o que basta. Seduzem com seu charme os provincianos enriquecidos, os comerciantes exibicionistas, os brasileiros meio truculentos e deslumbrados, tímidos diante de uma riqueza impalpável que aos seus olhos só a Europa parece ter.
 
Há uma energia poderosíssima nelas todas e nas coisas de que se veste; há atração, fascinação para esquecimento de nós mesmos e apagamento da nossa personalidade na luminosidade dos seus olhos. É mágico e sobrenatural. Esvaziam-se os pecúlios pacientemente acumulados; vão-se as heranças que tantas dores resumem, e os cofres das repartições e dos bancos sangram... (...)
 
Lembrei-me então duma frase de Gonzaga de Sá. Disse-me ele uma vez no Colombo:
– Estás vendo estas mulheres?
– Estou, respondi.
– Estão se dando ao trabalho de nos polir.
De fato, elas nos traziam as modas, os últimos tiques do Boulevard, o andar dernier cri, o pendeloque da moda – coisas fúteis, com certeza, mas que a ninguém é dado calcular as reações que podem operar na inteligência nacional. A sua missão era afinar a nossa sociedade, tirar as asperezas que tinham ficado da gente dada à chatinagem e à verniaça dos escravos soturnos que nos formaram; era trazer aos intelectuais as emoções dos traços corretos apesar de tudo, das fisionomias regulares e clássicas daquela Grécia de receita com que eles sonham.

 



 
A distância histórica e cultural entre os dois continentes compensa, a favor dessas mulheres, a distância social e econômica (além da condição de gênero) que as submete ao homem brasileiro. Eles têm o dinheiro de que elas precisam; elas têm, além do chamariz erótico, uma finesse que eles buscam meio às cegas, não pela finesse em si, mas por tudo que a produz e a acompanha. Buscam ascensão social, e o exibicionismo masculino dos conquistadores.
 
(...) Não era só. Os maridos que as frequentassem levariam aos lares, ao conselho daquelas estrangeiras, o sainete mais moderno, o bibelô última moda, e os móveis, e o tecido, e o chapéu, e a renda. Assim, ateariam o comércio e estimulariam o contato entre a nossa terra e os grandes centros do mundo, requintando o gosto e o luxo. Voltariam com o ouro, as que escapassem aos flibusteiros; mas espalhariam o Brasil sob o aspecto malévolo, é de crer – mas espalhariam... E a civilização se faz por tantos modos diferentes, vários e obscuros, que me parece ver naquelas francesas, húngaras, espanholas, italianas, polacas bojudas, muito grandes, com espaventosos chapéus, ao jeito de velas enfunadas ao vento, continuadoras de algum modo da missão dos conquistadores.
 
Não longe dali, em São Paulo, essa influência civilizatória era tratada por um ângulo diferente por Mário de Andrade. Em Amar, Verbo Intransitivo (1927), ele conta as manobras de um paulistano rico, de Higienópolis, para tirar a virgindade do filho mais velho, contratando uma governanta alemã sob o pretexto de ensinar alemão e piano às crianças. (O livro foi adaptado ao cinema como Lição de Amor, em 1975, por Eduardo Escorel, com Lillian Lemmertz no papel da governanta.)
 
Lição de Amor:
https://www.youtube.com/watch?v=kb0LQ40i5Ks
 
Fräulein Elza é uma mulher discreta, educada, com os pés no chão e o juízo no lugar. Insiste com Sousa Costa, o chefe da família, para que explique à esposa a verdadeira razão de sua presença naquela casa: “Certamente não irei se sua esposa não souber o que vou fazer lá. Tenho a profissão que uma fraqueza me permitiu exercer, nada mais nada menos. É uma profissão.”
 
O livro de Mário é um romance espaventoso, errático, cheio de cambalhotas; e tem um “Narrador Interferente” dos mais divertidos, aquele narrador onisciente que conversa machadianamente com o leitor e usa o pronome “eu” o tempo inteiro (com mais estardalhaço e imposição do que Machado o fazia).



(Marcos Taquechel e Lillian Lemmertz, em Lição de Amor)
 

Ele mostra as pequenas e grandes hipocrisias dos seus paulistanos endinheirados, mas o livro vale também por adotar em grande parte do tempo o ponto de vista da alemã. Seus planos, seus sonhos, seus parâmetros.
 
Quando pronta, esperou imaginando, encostada no lavatório. Ganhava mais oito contos... Se o estado da Alemanha melhorasse, mais um ou dois serviços e podia partir. E a casinha sossegada... Rendimento certo, casava...
 
O narrador visita os sentimentos da personagem, e depois a comenta do lado de fora. Executa aquele movimento irrequieto próprio da mente de Mário de Andrade, cheio de dribles de informalidade narrativa. E ele não deixa de comentar os pensamentos e as atitudes do que ele próprio chama as “raças superiores”.
 
Mas não tem dúvida: isso da vida continuar igualzinha, embora nova e diversa, é um mal. Mal de alemães. O alemão não tem escapadas nem imprevistos. A surpresa, o inédito da vida é pra ele uma continuidade a continuar. Diante da natureza não é assim. Diante da vida é assim. Decisão: Viajaremos hoje. O latino falará: Viajaremos hoje! O alemão fala: Viajaremos hoje. Ponto-final. Pontos-de-exclamação... É preciso exclamar pra que a realidade não canse...
 
Os europeus civilizam os latino-americanos? As mulheres civilizam os homens? São perguntas que, nesse nível de generalizações desajeitadas, não levam a nenhum lugar por onde já não tenham passado. Quando o Mestre Imaginário de Autran Dourado dizia qque as francesas “nos ensinaram a copular” certamente tinha em mente algo mais complicado do que um mero catalogo de técnicas sexuais.
 
A profissão dela se resume a ensinar primeiros passos, a abrir olhos, de modo a prevenir os inexperientes da cilada das mãos rapaces. E evitar as doenças, que tanto infelicitam o casal futuro.
 
Numa fábula de Pigmalião às avessas, é a essa mulher refinada e pobre que cabe esculpir a personalidade de um herdeiro tosco e rico. Tarefa (ironicamente) ainda mais importante quando ela descobre que o menino Carlos, aos dezesseis anos, já era bem sabidinho e já havia, levado por companheiros, frequentado “uma qualquer, rua Ipiranga...