Eu não sei dirigir
automóvel, nunca dirigi um. Isso não me impede de avaliar o modo de dirigir de
quem quer que seja, nem de teorizar sem pejo sobre essa nobre atividade
moderna.
Um dos aspectos que me
interessam nela é o modo como “o motorista” torna-se quase um “duplo” da pessoa.
É uma pessoa menorzinha que vive dentro dele. Uma espécie de “puxadinho” mental
em que uma nova personalidade é criada e desenvolvida, paralelamente à
personagem principal.
A ação de “dirigir automóvel”
pode perfeitamente abrir mão de uma série de camadas da nossa consciência. É um
ato maquinal, que se executa com transições confortáveis entre assumir o
controle e deixar no piloto automático.
As pessoas dirigem
enquanto conversam, até mesmo um assunto da maior gravidade. Dirigem enquanto
escutam um jogo de decisão do campeonato. Dirigem enquanto cantam a plenos
pulmões com os filhos pequenos no banco de trás.
É como se a existência
do “robô motorista” permitisse liberar a mente lúcida da pessoa para cuidar de
assuntos mais interessantes.
De vez em quando dá um
bug. É aquele famoso momento em que estou no banco do carona, num papo animado
com outra pessoa, e de repente ela diz: “Caramba. Por que é que eu vim parar
aqui no girador? Era para eu ter pêgo a ponte, lá atrás!” E ninguém nem comenta, de tão comum que é o
fato.
Vou contar aqui três
histórias cuja veracidade nem me interessei em discutir, porque me pareceram
plausíveis. Uma ou outra dela eu já ouvi com pequenas variantes. Deve ser, sim,
um fenômeno reiterativo, levando em conta a quantidade de motoristas.
A História #1 fala de
uma família que foi curtir o domingo num churrasco ou pescaria ou almoço de
família num subúrbio mais que distante, e na hora de voltar, ao anoitecer,
armou-se um toró que não tinha mais tamanho. A esposa pediu a chave do carro. O
marido estava pra lá de Bagdá, mas insistiu previsivelmente em dirigir. Ela
sugeriu passarem a noite no local, havia essa opção. Ele disse que ia trabalhar
logo cedo, e tinha que dormir em casa.
A tempestade caiu, o
carro fez-se ao asfalto, e felizmente as crianças estavam exaustas do domingo e
se enrodilharam no banco de trás. Era água de quase não se ver um palmo à
frente, e ela estava reduzida a um trapo de nervos quando eles finalmente
chegaram ao bairro, à rua, à casa. Ele alinhou o carro à calçada e desacordou sobre
o volante.
Ela insistiu muito,
depois fez a única coisa que podia fazer. Levou as crianças para dentro,
primeiro uma, depois a outra, mandou deitarem nas poltronas preferidas, voltou,
abriu o carro (felizmente agora estava só um chuvisco), agarrou-o pelos suvacos
e o trouxe para dentro de casa. No outro dia ele acordou com o despertador
pré-programado e foi trabalhar assim como se nada.
A História #2 fala de
outro cara que tomou umas e outras, voltou para casa, abriu de longe o portão,
subiu a rampa com o carro, entrou na garagem são e salvo. A sensação de são e
salvo foi tão forte que ele apagou. Os faróis do carro continuaram acesos, o
motor ligado. O carro todo zunia, fremia e trepidava em torno dele. Ao cabo de
algum tempo, ele entreabriu os olhos. Viu o brilho cegante daqueles faróis refletidos
na parede branca do fundo da garagem, a um metro das luzes. Pisou no freio com
tanta força que partiu ossos, rompeu ligamentos.
A terceira é a de um
respeitável casal que fazia de vez em quando umas viagens do sertão para a
capital, com parada em uma cidade no meio do trajeto. A esposa e o marido se
alternavam ao volante. Numa das vezes, ela o deixou nessa cidade do meio e
prosseguiu rumo à capital, no litoral do Estado. E a certa altura, já chegando
naqueles subúrbios, teve uma espécie de susto, não sei se porque precisou frear
de repente. Alguma coisa desse tipo a sobressaltou, e ela pensou: “Meu Deus,
mas eu já estou aqui? Eu não me lembro de ter dirigido até aqui. Quem dirigiu?
Porque eu só estou acordando pra
valer agora.”
A pergunta
interessante é de fato “quem dirigiu”, porque quem dirigiu foi a mesma pessoa.
Mas dirigir é (como muitas outras, aliás) uma atividade que ganha uma certa
autonomia. Também depende do motorista. Um motorista pode dirigir assim de modo
meio sonambúlico e não sofrer nenhum problema grave, porque dirige com
prudência e os reflexos visuais e motores estão em ordem.
Há vários níveis, como
constatou Paul McCartney durante uma viagem lisérgica dos Beatles, da qual ele
emergiu com esta única frase, dando provas de ser mais minimalista do que Yoko
Ono.
Na primeira história
acima, eu pressuponho que o motorista estava bêbado mas era um bom motorista, e
isso prevaleceu sobre a bebida. Não aconselho a ninguém (como se fosse
preciso). Acho que estatisticamente há mais motoristas bêbados sem acidentes do
que com acidentes. O que não vale como desculpa.
No caso do meio, o da
freiada cegante, o que vejo é o grau de reflexo, de adestramento, de
autocondicionamento. Vai bater e você
ao volante de toneladas de tralha com metal e vidros. Pela força da pisada e
pela rapidez do reflexo, é um preparo comparável ao de um campeão do tênis. Devia
existir um Teste Voight-Kampff só para medir isso.
O último caso é o mais
interessante, porque facilmente pode ser considerado um estado alterado de
consciência. A causa pode ser a auto-segurança de quem não vai fazer bobagem
por sua iniciativa. Todos veem que a pessoa
está acordada, a parte sensorial toda ativa, bota bagagem na mala do carro,
abastece, conversa com um e outro, pega o volante, e lá vem aquela imensa fita
solitária fluindo à sua frente.
Podemos postular, pelo
menos em termos de dramaturgia, a existência de um sistema emocional, que
naquelas horas de preparativos e na viagem de rotina continuava ali, mas
adormecido, não tinha sido chamado a abrir os olhos. A freiada brusca atrás do
caminhão, nas pistas paralelas de acesso ao subúrbio, acordou uma ninhada de aplicativos
que desde o despertar estavam em modo espera: medo, susto, estranheza daquilo
tudo, aquela sensação estrídula de ser dois.
Há vários níveis, também
diria o inefável Colin Wilson, que nunca, diante de um fato, hesitou em
produzir uma teoria. A consciência não é uma coisa, é um conjunto fluido, mas voluntariamente
estável, de processos que se complementam. Como descrevê-los? Em termos que a gente visualize melhor.
John R. Searle,
professor de filosofia, disse uma vez:
“Por não
entendermos muito bem o modo como a mente humana funciona, somos tentados o
tempo inteiro a compará-la com o tipo mais recente de tecnologia. Na minha infância, sempre nos asseguravam que
a mente era uma espécie de central telefônica – o que mais poderia ser,
afinal? Depois, descobri, divertido, que
Sherrington, o grande neuro-cientista britânico, comparava a mente a um sistema
telegráfico. Freud a comparava com
freqüência a sistemas hidráulicos e eletromagnéticos. Leibnitz a comparava a um moinho, e agora,
evidentemente, a metáfora é o computador digital”.