Uma amiga minha, metade francesa metade paraibana, me
disse uma vez que viajar pelo Nordeste é fazer uma viagem no tempo. A pessoa
desembarca em João Pessoa, e está no tempo presente. Pega um carro, segue pela
BR-230 rumo ao sertão, e a cada trecho vai se sentindo na década de 1960, na
década de 1930, no século XIX...
Como toda fala que sintetiza uma situação complexa, é um
exagero, e é uma verdade evidente. Temos uma tendência a pregar bandeirinhas
cronológicas em certo tipo de tecnologia, de comportamento humano, de
legislação pública. Famílias que tentam se perpetuar no poder? Estamos na era
da monarquia! Execuções sumárias e tolerância à tortura? Estamos na Idade Média!
Homens que espancam mulheres? Estamos na Idade da Pedra! Espaçonaves robóticas
desembarcando em Marte? Estamos no futuro.
Na vida real, tudo isso coexiste aos trancos e barrancos
– e sempre foi assim.
Cinema, literatura, etc. nos permitem contar histórias em
que momentos que consideramos “típicos dos dias de hoje” surgem em filmes
feitos 50 ou 100 anos atrás, em livros escritos 200 ou 300 anos atrás.
Temos uma tendência a ver o passado como uma coisa
estática, presa num só formato. Vendo a foto de uma nuvem, imaginamos, sem
pensar muito, que a nuvem era daquele jeito o tempo todo. Quando vemos um filme
de vikings, pensamos que o mundo deles era daquele jeito o tempo todo.
Mesmo quando o cinema nos mostra um conflito, é um
conflito que parece estático. É um movimento, mas um movimento que não avança,
como o movimento de um jogo de fliperama ou de um totó-bola, onde tudo se agita
muito mas dentro de um retângulo rígido de limitações e invariantes.
(cartaz de Shane em espanhol)
Os Brutos Também
Amam (“Shane”, 1953) de George Stevens é, do ponto de vista histórico, um
western ilustrando o conflito entre agricultores e criadores de gado. Os
agricultores têm a sua terrinha, sua lavoura para subsistência e para um
pequeno comércio. Os criadores de gado são a Modernidade, fazem altos
investimentos, precisam de muito, mas muito terreno mesmo, para expandir seus
rebanhos; e acabam tomando a terra dos agricultores. A época é logo após a
Guerra Civil, ou seja, aproximadamente a década de 1870.
O Indomado
(“Hud”, 1961) de Martin Ritt é sobre a América de cem anos depois. Ali, no
Texas, são os criadores de gado que estão estabelecidos e representam a
Tradição. E o petróleo representa a Modernidade. Todo mundo no Texas está
vendendo suas terras para as empresas petrolíferas, e há toda uma filmografia
sobre essa época de transição. Um grande filme a respeito é Assim Caminha a Humanidade (“Giant”, 1956)
de George Stevens, onde a descoberta do petróleo desequilibra relações de poder
onde até então mandavam os criadores de gado.
O roteiro (baseado num romance de Larry McMurtry) é de Harriet Frank Jr. e Irving Ravetch. Hud Bannon (Paul Newman) é o mau-caráter charmoso que
leva todo mundo na conversa, menos seu pai Homer Bannon, um sertanejo da velha
estirpe, que se recusa a permitir a exploração do petróleo porque é um tipo de
atividade econômica inconcebível para ele.
O que é que eu posso fazer com um punhado de poços de petróleo? Eu não
posso cavalgar todo dia por entre eles como faço com meu gado. Não posso ajudá-los
a crescer, tratar deles, laçá-los, correr atrás deles... nada. Não posso sentir
o menor orgulho por eles, porque eles não são uma coisa feita por mim.
O velho fazendeiro (Melvyn Douglas) tem essa percepção
“humanista” do trabalho como algo que envolve o esforço humano, a convivência
humana (mesmo que seja desumano com o gado), mas em todo caso algo que mobiliza
energias, esforço, conhecimento, afetividade. Um trabalho real. Comparado com isso,
furar um buraco e puxar um líquido lá do fundo para ganhar milhões de dólares
parece uma espécie de prostituição.
Eu diria que hoje em dia há muitos industriais produtivos
que veem com olhos parecidos o Capitalismo Financeiro, que em grande parte do
seu tempo não cria uma bolacha ou um par de sapatos, é apenas dinheiro fictício
gerando dinheiro fictício.
E não se trata apenas da substituição de atividades econômicas.
Existe também uma ética antiga (que chamei mais acima de “sertaneja”) por uma
ética moderna. O meio do faroeste já foi movido por uma ética e um código de
honra cavalarianos; basta lembrar o famoso “Código de Honra do Cowboy”
propagado pelo ator Gene Autry, um documento hoje comovente pelas suas boas
intenções e altruísmo.
Sobre esse código das antigas instaurou-se o
salve-se-quem-puder da Modernidade, a corrida da morte em busca do lucro a
qualquer custo.
Isso se revela na longa sequência em que Homer Bannon é
informado de que todo seu rebanho pode estar com febre aftosa, e que talvez tenha
que ser abatido. O que faz Hud Bannon, o filho mau-caráter? Aconselha o velho a
passar o rebanho adiante, vendê-lo antes que a notícia se espalhe.
– Pegue o telefone e venda todas as reses. Você ainda não está com as
mãos atadas. Posso despachar o rebanho inteiro antes mesmo que comecem os
testes.
– Passar adiante uma mercadoria que pode estar estragada, para os meus
vizinhos que estão de boa fé?
– Você ainda não tem certeza se está estragada ou não. Posso despachar
tudo para o norte antes que a notícia se espalhe.
– E correr o risco de espalhar uma epidemia no país inteiro?
– O país inteiro vive de epidemias. Onde é que você vive?! Epidemia de
controle de preços pelas corporações, programas escrotos de TV, trambiques no
imposto de renda, relatórios de despesas falsificados... Quantos homens
honestos você conhece? Se tirar um pelo outro, só fica Abraham Lincoln.
A cena é de 1961, mas estamos em pleno século 21, porque
é esta a mentalidade que vigora.
No filme O Dia
Antes do Fim – Margin Call (“Margin Call”, 2011) de J. C. Chandor,
funcionários de uma grande financeira novaiorquina descobrem que todos os seus
papéis estão “bichados”, prestes a perder todo o valor. O CEO (Jeremy Irons) adota
a solução proposta por Jared Cohen (Simon Baker): vender, num mutirão de 24
horas ininterruptas, todos os papéis sem valor a investidores desinformados e
de boa fé, que não têm como saber que os papéis não valem nada. Cada
funcionário receberá um bônus de mais de um milhão de dólares se vender a cota que
lhe cabe.
O filme se baseia em fatos reais ocorridos na crise de
2008 (“A Crise Que Ainda Não Acabou”) e na atuação das firmas Goldman Sachs e
Lehman Brothers. Ou seja: as reses com febre aftosa foram vendidas como reses
sadias, e contaminaram o rebanho mundial, ajudando a provocar uma epidemia de
falências, crises políticas e, paradoxalmente, a transferência de um poder
político cada vez maior para os administradores de empresas assim.
No filme O Terceiro
Homem (“The Third Man”, 1949) de Carol Reed, o espertalhão é Harry Lime
(Orson Welles), que na Viena destroçada pela II Guerra e sofrendo uma epidemia
de meningite dá um jeito de enriquecer vendendo vacinas adulteradas, cuja
aplicação não apenas não salva as crianças a que elas se destinam, como
acarreta problemas ainda mais graves.
Confrontado por seu amigo Holly (Joseph Cotten), no alto
da montanha-russa de um parque, Harry Lime mostra a multidão minúscula lá
embaixo e diz:
– Olha, nunca me senti à vontade com essas coisas. Vítimas? Não
seja melodramático. Olhe lá pra baixo. Me diga. Você ficaria mesmo com
pena se um daqueles pontinhos ali parasse de se mexer de repente? Se eu lhe
oferecesse 20 mil libras por cada pontinho que parasse de se mexer, hein, meu
velho, você me diria mesmo que não queria? Ou você ficaria calculando quantos
pontinhos daria para poupar?
Hud Bannon, Jared Cohen e Harry Lime são a Modernidade, são
o Espírito do Tempo, são as forças que movem o mundo de hoje na direção em que
ele está indo.