O cinema de Federico Fellini sempre circulou em torno de
meia dúzia de temas, e um dos mais constantes é o que hoje chamaríamos de show business, mas na Itália onde ele se
tornou diretor tinha o nome de varietà. É o
nosso teatro de variedades, centrado não numa obra dramatúrgica mas numa
sucessão de pequenos esquetes ou entremezes, números musicais, números de
mágica de salão, quadros humorísticos, danças, contação de piadas (o que hoje
chamamos de stand-up comedy) e assim
por diante.
É o mundo dos artistas mambembes, das companhias
ambulantes que vão de cidade em cidade na esperança de faturar uns trocados
enquanto vivem o "momento mágico do palco”, que para muitos deles, pobretões e
esfomeados, parece ser paga suficiente.
Este primeiro filme de Fellini foi dirigido em parceria com
o mais experiente Alberto Lattuada. Luci
del Varietà (“Mulheres e Luzes", 1951) é a história de Checco dal Monte
(interpretado por Peppino de Filippo), uma mistura de canastrão e
dono-de-companhia, e sua trupe de artistas mambembes, viajando de trem (e de
carroça, e a pé) pelas cidadezinhas do interior. Checco se apaixona por
Liliana, uma moça bonita (Carla del Poggio) doida para virar artista; e causa
uma grande decepção em Melina – Giulieta Masina no papel da mulher um pouco
mais velha, mais vivida, mais realista, e que lê com olhos de raios-X o
entusiasmo do companheiro pela nova estrela da companhia.
Não muito distante (pela data, inclusive) daquelas
chanchadas nacionais em que o trêfego Zé Trindade, casado com a ameaçadora
Violeta Ferraz, ficava todo de risadinhas e salamaleques rumo a vedetes como
Anilza Leoni e outras.
Se o tema for do interesse de algum leitor, sugiro ver The Travelling Players, de Theo
Angelopoulos (1975), filme grego que acompanha um grupo similar de vaudeville ambulante, desta vez na
Grécia, e com um viés trágico percorrido pela II Guerra e a ditadura militar
que foi imposta ao país logo depois. Há cenas em que Angelopoulos parece estar
citando diretamente o filme de Fellini/Lattuada – o dia nasce e os atores andam
de rua afora, sonolentos, malas na mão, rumo à estação do trem e à próxima
aventura de bilheteria.
(The Travelling Players)
Não é a única referência que me veio à mente quando vi
agora Mulheres e Luzes. Aqui, a
primeira dança da bela Liliana, ainda sem jeito, ainda uma estranha na
companhia, acaba provocando aplausos quando sua roupa se rasga. O número,
incorporando o detalhe, torna-se sucesso nas noites seguintes. Em Viva Maria (1965, Louis Malle) acontece
algo semelhante nos primeiros números de dança da amadora Maria II (Brigitte
Bardot) com a profissional Maria I (Jeanne Moreau).
Os críticos têm comentado também a semelhança do enredo
com o de A Malvada (“All About Eve”, 1950)
– a atriz jovem, bela e ambiciosa que rouba o marido e a carreira de uma atriz
mais experiente. Fellini e Alberto Lattuada, os dois diretores, colocaram suas
respectivas esposas (Giulieta Masina e Carla del Poggio) nesses papéis, mas ao
contrário do filme norte-americano a ênfase deles é no personagem masculino, em
que Peppino de Filippo arrasta a asa à jovem enquanto é ridicularizado por
todo o mundo.
“Quebrando” uma companhia atrás da outra, Checco dal
Monte se endivida, mete os pés pelas mãos, mas não desiste nem da beldade (que
o explora até não poder mais) nem do palco.
Vem daí uma das cenas famosas do
filme. Desalentado e sem grana, impedido de entrar na pensão onde estava em
dívida, ele caminha de madrugada pelas ruas desertas da cidade, na companhia de
um norte-americano negro, trumpetista, um dos muitos soldados do exército dos
EUA que se deixaram ficar na Itália depois do fim da guerra. Os dois se
deparam com uma moça ao violão (apresentada como “a grande artista brasileira,
Moema”) que não é outra senão Vanja Orico, que poucos anos depois ficaria
famosa aparecendo em O
Cangaceiro (1953), de Lima Barreto.
(Vanja Orico)
É curioso ver no filme de estréia de Fellini uma cantora
entoando “Meu Limão, Meu Limoeiro” em puro português. Não é surpreendente, no
entanto – é bom lembrar que a década de 40, entrando pela de 50, foi o auge do
baião de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, e muitos filmes estrangeiros da
época incluíam canções brasileiras em sua trilha. Foi também o caso de Noites Brancas (1957) de Luchino
Visconti, onde escutamos “Muié Rendeira”, a composição de Zé do Norte tornada
famosa em O Cangaceiro.
E o próprio Lattuada viria a incluir em seu Anna (1951) um nímero musical cantado
por Silvana Mangano, “El negro Zumbón”, um dos mais conhecidos baiões compostos
fora do Brasil – a música é de Armando Trovajoli, grande “trilheiro” do cinema
italiano, e letra de Francesco Giordano.
Aqui, “Meu Limão, Meu Limoeiro”:
https://www.youtube.com/watch?v=CoKUmGP9FCw&ab_channel=gelsomminna
E aqui, “Sodade, Meu Bem, Soidade” (O Cangaceiro):
https://www.youtube.com/watch?v=_rqMBScsrgY&ab_channel=RADIOSANTOS%28REM%29
Fellini, mesmo em seu primeiro filme (e um filme
co-dirigido por um amigo mais experiente) já era o cineasta do grotesco e do
bizarro. Encontrei aqui neste filme uma cena de submundo que seria depois
recriada na tela pelo carioca Miguel Borges. São os homens que “dormem na
corda”, ou seja, sentados num banco comprido e debruçados sobre uma longa corda
amarrada horizontalmente. Quando o dia amanhece, o dono do pulgueiro desamarra
a corda, todo mundo tomba para a frente, levanta e vai embora.
E há a cena inesquecível de quando a companhia de vaudeville se apresenta numa cidadezinha
e desperta a simpatia de um ricaço local, que convida a todos para jantar, na
esperança de exibir seus próprios dotes artísticos (cantando o “Figaro”) e de
tirar uma casquinha da desejada-das-gentes, Liliana. A companhia está
esfaimada, e o jantar é uma longa cena em que a câmera percorre a mesa
mostrando uma dúzia de rostos que mastigam com concentração, voracidade e
êxtase, sem trocar uma palavra sequer.