domingo, 25 de abril de 2010
1956) “Dualismo” de Olavo Bilac (16.6.2009)
Aprendi de cor este soneto de Bilac ainda na infância. Meu pai arrancou uma página de revista em que ele vinha impresso, com uma foto do poeta ao lado, emoldurou-o e pendurou-o na parede da sala. Vez em quando, ao longo dos anos, eu parava e relia. Entranhou-se na minha memória como água na esponja. Um dia, em plena senilidade, terei esquecido meu nome mas serei capaz de balbuciar: “Não és bom nem és mau – és triste e humano, / vives ansiando em maldições e preces / como se a arder no coração tivesse / o tumulto e o clamor de um largo oceano”.
Neste primeiro quarteto, Bilac parece apaziguar os remorsos de um amigo, ou os seus próprios. Já começa nesta primeira estrofe (com bom/mau, maldições/preces) o magnífico jogo de antíteses que será mantido até o fim. Bilac sugere que o que fazemos depende menos de uma escolha ética nossa do que do tumulto mental que nos arrasta pela vida afora. O segundo quarteto diz: “Pobre, no bem como no mal padeces / e rolando num vórtice vesano / oscilas entre a crença e o desengano / entre esperanças e desinteresses”. Surge a única palavra obscura do texto, “vesano”, derivado de “vesânia”, loucura. E o poeta repisa o caráter dilacerado da alma humana, com mais uma trinca de dualidades no 1o., 3o. e 4o. versos.
O soneto cresce a partir do primeiro terceto: “Capaz de horrores e de ações sublimes / não ficas das virtudes satisfeito / nem te arrependes, infeliz, dos crimes”. É um traço curioso de uma certa mentalidade torturada ocidental, homens que “não crêem em deus mas têm medo do inferno”, que vivem equilibrados num fio e podem praticar a qualquer momento os atos mais aterradores ou mais altruístas. E ele conclui: “E, no perpétuo ideal que te devora / residem juntamente no teu peito / um demônio que ruge e um Deus que chora”.
Não vou enumerar os polos opostos restantes que fazem desse poema um dos mais típicos desta fase de Bilac (como “Inania Verba”, já comentado nesta coluna) em que ele escolhe com rara habilidade símbolos que se traduzem em palavras que guardam simetria formal, sonora, etc. Este verso final, uma das “chaves de ouro” mais belas de Bilac, exprime o dilema de um poeta fortemente emotivo e reprimido. É um verso nietzschiano, e o filósofo talvez perguntasse, com arrogância: “E o que é mais digno: rugir, ou chorar?”. O Deus que chora é o mesmo que nunca fica satisfeito com as virtudes que cultiva; o demônio que ruge é o que não se arrepende dos próprios crimes. O primeiro deles é o Bilac público, sempre polido, cuidadoso, cioso de sua imagem. O segundo talvez seja o que Bilac poderia ter sido em outras circunstâncias. Diz-se que o poeta tinha um laivo homossexual enrustido, mas as imagens femininas em sua poesia são as mais eróticas de sua época. Não me parece mera retórica: Bilac tinha fixação erótica no corpo feminino. Era um sensualista que, em outra época, talvez fosse um grande conquistador de moças e rapazes. Mais um dualismo.
1955) As dívidas de honra (14.6.2009)
(Mark Felt)
Num artigo em meu blog (“Garganta Profunda”, 4 de agosto de 2005) discuti a questão ética enfrentada por dois norte-americanos que ajudaram a derrubar o corrupto governo Nixon: Mark Felt, o diretor do FBI que repassou à imprensa informações secretas sobre o caso Watergate (e ganhou o apelido “Garganta Profunda”, porque na época ninguém sabia de sua identidade) e o ex-funcionário do governo Daniel Ellsberg, que se convenceu do erro militar e ético que era a Guerra do Vietnam e divulgou os famosos “Papéis do Pentágono”.
O que têm eles em comum? Apenas o fato de que são traidores. Traíram seus patrões, traíram seus colegas de profissão e companheiros de trabalho, mas o fizeram em nome de princípios que, para eles, estavam acima da dignidade profissional.
Existirá algum princípio moral absoluto, superior a todos os outros? No caso de Felt e Ellsberg o que os levou à delação e à traição (que em tese estão entre os atos mais vergonhosos) foi a convicção moral de que rebaixando-se dessa forma estavam se sacrificando por uma causa nobre.
É o mesmo princípio em que se baseia o “Disque Denúncia” usado hoje no Brasil para combater o tráfico de drogas e o crime organizado.
É o mesmo que a Rússia estalinista usava, incentivando as crianças a delatarem os próprios pais se os vissem envolvidos em atividades anti-comunistas.
Estou enfileirando na mesma prateleira (dirão alguns) coisas muito diferentes; mas o gesto é o mesmo. E o termo vil, cheio de vergonha, é o mesmo: judas, calabar, traíra.
Em seu livro Borges, Adolfo Bioy Casares cita (p. 738) um comentário do escritor argentino: “Kant dizia que nunca se deve mentir. Seu exemplo é de que se uma pessoa que pretende matar um homem pergunta se ele passou por aqui, devemos dizer a verdade, mesmo que a consequência disto seja uma morte”.
É uma espécie cega de honestidade a que eu chamaria de “honestidade autista”, uma condição incapaz de comparar duas opções morais. Assim como se diz que uma criança autista interpreta literalmente o que ouve e não percebe segundas intenções (humor, ironia, etc.) quem age assim não percebe que não existem verdades absolutas nem compromissos absolutos com a verdade.
Borges ironiza: “Claro, Kant era o homem mais inteligente do mundo, o mais sutil, etc.”
À página 846, Borges fala sobre dívidas de honra. Dá o exemplo de um homem que após uma noite de jogatina num clube de Buenos Aires perdeu tudo que tinha. No dia seguinte, recusou-se a pagar a dívida porque “não podia jogar na miséria sua mulher e seus filhos por causa do capricho de uma noite”.
Esse indivíduo, diz Borges, “foi olhado por todos com horror, como se fosse um leproso, mas ninguém pensava que pior do que ele agia o que tinha ganho no jogo” (e insistia em cobrar a dívida). Para os que estavam em volta, “não observar as dívidas de honra seria cair no anarquismo”.
Se queremos conhecer alguém basta saber qual é a última instância moral que ele se recusa a infringir.
1954) A mania de exatidão (13.6.2009)
(quadro de Georges Seurat)
Acho incômodo conversar com pessoas de mentalidade muito minuciosa, cuja mente parece uma folha de papel milimetrado, onde tudo tem que ocupar uma coordenada precisa, punctual (para distinguir de “pontual”, cumpridor de horários).
Chega a conta do bar, para uma turma de cinco pessoas, eu dou uma olhada e anuncio a todos: “Deu 130”. Meu colega do lado corrige: “Não, deu 132”. Bem – se é para dividir por cinco, a diferença vai se diluir em meros centavos, aos quais não dou importância.
Alguém pergunta: “Que horas são?”. Eu digo: “Duas e meia”. O outro corrige: “Na verdade, duas e 28”. E assim vai.
Não digo que ele está errado. Está mais certo do que eu. Mas em certas circunstâncias quem pergunta não quer o número exato, quer apenas ter uma idéia. Quer saber se a conta deu mais de cem reais. Ou se já passam das duas horas. Eu, pelo menos, quando pergunto, pergunto com esse intuito.
É diferente, claro, quando precisamos lidar com uma cifra exata – para anotar no canhoto o valor de um cheque, ou para saber se vamos chegar a tempo para o filme que começa às oito em ponto. Em casos assim, qualquer minutinho faz diferença.
Mas o maníaco por exatidão não relaxa. “Deu muita gente no Fla-Flu?”, pergunta alguém. Eu respondo: “Mais de trinta mil”. Por mim, tá respondido. Não foram 10 mil, nem 50 mil. Mas o colega acode, pressuroso, jornal em punho: “31.230 pagantes, 34.870 presentes”. Nada contra – mas não creio que a resposta dele responda aquela pergunta mais do que a minha.
Também ocorre no discurso literário. Vez por outra leio num romance qualquer: “Entramos no escritório dos advogados e fomos recebidos por um homem alto, aparentando 41 anos de idade...” Por que essa exatidão? Qual a diferença entre aparentar 40 e aparentar 41 anos?
Quando eu avalio idades das pessoas, geralmente é em saltos de 5 anos. Esse aqui tem cara de 30, o que está ao lado parece ter 35, o de lá deve ter uns 40... É uma faixa de probabilidade. Não consigo imaginar que detalhes podem dar a alguém essa sintonia fina de perceber diferenças de um ano apenas.
Os escritores realistas, no entanto, são viciados em exatidão. Acham que isto confere credibilidade. “Eu estava ao telefone quando entrou na sala uma morena curvilínea, de cabelos longos, de 1,77 de altura...” Como ele sabia que não eram 1,76?
Note que se o discurso literário é feito em nome do chamado “narrador onisciente” tudo bem, porque este, por convenção literária, pode nos informar até a quantidade de átomos que tem em cada um dos fios de cabelo desta beldade. Mas que personagem é este que num relance fotografa a altura exata de outra pessoa? O mundo excessivamente nítido em que vivem me incomoda.
No que se refere a números, sou meio difuso. A menos que haja uma necessidade de ordem prática, objetiva, capto apenas os grandes volumes e as grandes massas, não ligo para contornos e detalhes. Como dizia Caetano, “pense Seurat, pense impressionista”.
1953) O Brasil no topo (12.6.2009)
Em apenas dois jogos, a Seleção Brasileira fez muita gente morder a língua, inclusive eu, que não botava fé em que o time de Dunga vencesse Uruguai e Paraguai na mesma rodada. Venceu e venceu bem, principalmente no primeiro jogo. Terminada a partida em Montevidéu, com 4x0 no placar, um amigo meu comentou: “Ninguém ganhou esse bolo”. Só quem pode ter previsto um resultado assim, principalmente quando não ganhávamos “lá dentro” há mais de 30 anos, seria uma dessas mães ou tias da família que entram no bolo só de farra, e cravam, invariavelmente, uma goleada a favor do Brasil.
O Brasil contou com a sorte no gol que Daniel Alves fez lá de longe, mas os demais foram gols trabalhados com consciência, inclusive o do pênalte sofrido e cobrado por Kaká. A defesa esteve brilhante, desarmando e rebatendo tudo, principalmente quando o Uruguai, depois do primeiro gol, deu um sufoco contínuo de uns quinze minutos, em que Julio César fez milagres. O placar moral seria de uns 5x2, mas foi uma goleada que nem os uruguaios contestaram.
Vencer o Paraguai “aqui dentro” era igualmente difícil. O adversário é mais fraco historicamente mas vive um momento melhor, e vinha na liderança das Eliminatórias. E já sabemos que qualquer time, quando vem jogar aqui no Brasil, bota a defesa na pequena área, o meio de campo na marca do pênalte e o ataque na meia-lua. Talvez por chegar com bafejos de líder o Paraguai saiu para o jogo e fez um gol contando com a sorte. Robinho, que ainda hoje não é um bom finalizador, acertou um chute difícil e empatou o jogo.
No segundo tempo Nilmar fez o segundo. É um jogador leve, ágil, inteligente, um dos melhores atacantes em ação no Brasil. Ele e Robinho são a dupla perfeita para um jogo em que seja preciso fazer tabelas, infiltrações rápidas ou contra-ataques. O jogo só não acabou em clima de euforia porque, sendo um jogo aberto, sem muita retranca, permaneceu indefinido até acabar. O Brasil perdeu pelo menos três chances claras de gol (uma com Robinho e duas com Alexandre Pato), e o Paraguai umas duas, de modo que até o final perdurou uma certa ansiedade.
Dunga é um técnico contestado, e não seria minha escolha. Mas está conseguindo aos poucos os resultados necessários, num estilo devagar-e-sempre. Sabe armar uma boa defesa e protegê-la bem, mas no ataque parece não ter muitas idéias e ficar perguntando aos jogadores o que fazer. Sofreu o diabo com a instabilidade dos atacantes. Luís Fabiano, desde o ano passado, vem sendo a salvação da lavoura. Pode ser que Nilmar se encaixe bem neste time, no qual, ao contrário de muitos jornalistas, não vejo lugar para Ronaldo Fenômeno. Ronaldinho Gaúcho talvez se recupere daqui para a Copa, mas também não sou otimista. Acho que o miolo da defesa da Seleção está perfeito, embora os laterais mereçam mais estudo. Na frente, temos Kaká, Robinho, Fabiano, Nilmar, Pato... O time está amadurecendo, e não precisa ser agora. É daqui a um ano.
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