quinta-feira, 19 de novembro de 2009

1379) “Pré-História do Futuro” (15.8.2007)




No confronto de idéias entre a Cidade e o Sertão há um mito poderoso: o da Aventura, que cada qual, curiosamente, reivindica para si. 

Para os urbanos, a Cidade é uma colmeia fervilhante de eventos extraordinários, e o Sertão é um ermo sonolento e cheio de mosquitos onde nada acontece. São muitos os celebradores da cidade, desde Baudelaire e Poe até Balzac e Chesterton. Para esses autores, na cidade existe uma aventura em cada esquina. Mesmo um sertanista convicto como Ariano Suassuna coloca na boca de Quaderna, aos 10 anos de idade, esta exclamação deslumbrada com a vida na cidade (mesmo que sendo a Vila de Taperoá): 

“Somente naquela minha primeira manhã na Vila eu já tinha entrado em contato com a rua do sexo, da embriaguez, do jogo e dos desmandos do pecado; com o teatro; com a miséria degradante do Alto; com o esgoto do crime, na Cadeia; e com o anúncio de uma guerra iminente a se travar entre as forças de meu Padrinho e as de Antonio Moraes – e Samuel ainda achava que ali na Vila não acontecia nada!”

Já a vida aventureira e solta, a cavalo, nas planícies, correndo atrás do gado ou enfrentando tiroteios é a base onde se construiu o faroeste americano. Perto disso, a vida engravatada e burocrática das cidades é uma cadeia. 

Isto me lembra um romance ficção científica do francês Stefan Wul, Pré-História do Futuro (“Niourk”, 1957), ambientado num mundo futuro pós-apocalipse nuclear, quando os oceanos secaram e as metrópoles como Nova York estão tomadas pelo mato. O herói é um rapaz marginalizado em sua tribo por ser negro. Eles vivem de caçar polvos e comer seus cérebros. 

O rapaz negro foge da tribo e vai parar em Niourk, a grande metrópole em ruínas. Ali ele encontra astronautas que vêm à Terra para pesquisas arqueológicas, fica amigo deles, e percebe que está passando por uma mutação que lhe dá super-inteligência e super-poderes. 

É uma longa história; no final, o rapaz negro abre mão de todos esses poderes e até da possibilidade de reviver a antiga civilização urbana e tecnológica; e volta aos pântanos do antigo Oceano Atlântico, junto a sua velha tribo, para caçar e viver – diz ele – “A única vida que vale a pena ser vivida”. A vida da aventura.

Estes julgamentos são visivelmente apaixonados, afetivos. A aventura está no lugar que amamos. 

Para cada obra que exalta e revela a aventura urbana, temos outra que explora o tédio urbano, a rotina, a falta de perspectiva, o massacre do espírito pela claustrofobia da selva de cimento. 

Para cada obra que exalta e revela a aventura sertaneja, encontramos outra que desmascara a solidão e o silêncio sem fim das campinas, os vilarejos imóveis onde tudo que se faz é espantar moscas, a cidadezinha qualquer do “Êta vida besta, meu Deus”. 

Se a única vida que vale a pena ser vivida é a da aventura, a aventura está em nós mesmos, está em quem sabe ir procurá-la, seja nos arranha-céus e nos morros, seja nas caatingas e nas vilas.






1378) O sertão e o mar (14.8.2007)




(Icapuí, Ceará)

Podemos dividir a intelectualidade brasileira em dois grandes partidos: os que preferem Machado de Assis e os que preferem José de Alencar.

Notem que o sujeito não precisa desgostar do outro autor, ele apenas prefere um, identifica-se com o mundo dele, a mentalidade dele.

Glauber Rocha, em sua fase terminal, foi um alencarista ferrenho. Sentava o malho no pobre do Machado naqueles seus artigos cheios de K, Y e Z.

Outro alencarista era Sílvio Romero – na verdade, este era menos um caso de alencarista do que de anti-machadista. Romero chamava as obras de Machado de “comédias de almanaque”, criticava seu pessimismo que só servia para iludir alguns simplórios que achavam aquilo uma maravilha.

Quem equacionou essa questão de maneira mais algébrica foi Ariano Suassuna em As Infâncias de Quaderna. No Folheto 63, “Os Cortiços da Cidade e os Guerreiros do Sertão”, ele diz, através do personagem Samuel (o defensor da cultura ibérica), que desde a vinda da Coroa portuguesa o Brasil se dividiu:

“De um lado, os urbanistas cosmopolitas e ocidentalistas, os quais, sob o chamado espírito de civilização, pretendem aproximar o Brasil das elites européias; do lado oposto, os sertanistas, que sob o espírito da conquista, pretendem – a meu ver erradamente – realizar o nacionalismo através de uma fusão grosseira da épica com um certo tradicional-populismo que no nosso caso tem sido o escárnio da Nação e da Tradição!” 

E Samuel conclui indicando os autores-símbolo das duas correntes: Machado e Euclides da Cunha.

A descrição de Ariano é feita através do seu adversário ideológico, porque todo mundo sabe que entre Euclides e Machado o autor da Pedra do Reino escolherá sempre Euclides.

O importante, contudo é essa divisão teórica entre os Urbanistas (que incluem de Machado até Rubem Fonseca) e os Sertanistas (de Alencar até Graciliano, Zé Lins, Rachel de Queiroz, etc.). Essas duas correntes exprimem, por exemplo, as duas colonizações do Nordeste: a que foi feita pelo litoral em nome dos governos, e a que foi feita pelo interior, subindo o Rio São Francisco, em nome dos desbravadores anônimos.

O Brasil tem essas duas camadas, sendo que hoje em dia a camada Urbanista, civilizatória, se sobrepõe (em termos de poder político e econômico, e em termos de visibilidade) à camada Sertanista.

Hoje, dois terços de nossa população vivem nas cidades. Mas grande parte desses dois terços migraram do “sertão” (tomado aqui em seu sentido mais amplo e simbólico). A civilização urbana parece ser nosso destino evolutivo, ou pelo menos é nesse rumo que o mundo tem se encaminhado até agora. Mas quando esse mundo Urbanista entra em crise, fica sem valores e à deriva, ou sente-se à falta de um tutano, de uma medula, é no “sertão” que vai procurá-los.

A Cidade é a nossa face pública, racionalista. O Sertão é o nosso Inconsciente profundo, de onde nascem nossas emoções e onde pulsa “a única vida que vale a pena ser vivida”, como dizia Stefan Wul em Pré-História do Futuro.








1377) O Bosque de Birnam (12.8.2007)



Macbeth é um nobre escocês que certa noite hospeda o rei em seu castelo. Quando o rei está dormindo, Macbeth entra no quarto, corta-lhe a garganta e assume o trono da Escócia, de espada em punho, olhando em redor com aquela cara de “Que foi que viu? Vai encarar?!” Como dizia Dom Pedro Dinis Quaderna, uma maneira muito européia e fidalga de tornar-se rei.

Preocupado, Macbeth vai se consultar com as feiticeiras locais, e elas lhe dizem que, entre outros sinais, ele só será derrubado do trono “quanto o bosque de Birnam chegar a Dunsinane”, que é o castelo onde ele mora. É um pouco como dizer – quando a Floresta da Tijuca chegar ao Palácio do Catete. Macbeth sente firmeza e começa a praticar os maiores despautérios, até que os outros nobres mobilizam as tropas e marcham contra seu castelo. Ao passarem por Birnam, eles, sem sequer saberem da profecia, cortam os galhos das árvores e os empunham, para disfarçar o número de seus soldados. Macbeth recebe o alarma, vai até a muralha de Dunsinane, e o que vê no horizonte? O bosque de Birnam marchando na direção do seu castelo.

É vezo das profecias parecerem impossíveis e depois se concretizarem graças a um pulo-do-gato qualquer. Há um livro notável e pouco conhecido de Malba Tahan intitulado Sob o Olhar de Deus, que em sua primeira edição tinha o título “O Aviso da Morte”, mais descritivo do seu conteúdo. Célio Musafir, um escritor de sucesso, recebe uma noite a visita da Morte, que faz um pacto com ele: quando chegar a hora de levá-lo embora, lhe dará um aviso. Aliviado com esta promessa, Musafir passa a viajar, ter aventuras, fazer caçadas, escalar montanhas, etc., confiante de que a Morte cumprirá a palavra. Anos depois ela volta a lhe aparecer e diz que está na hora. Ele reclama que não recebeu aviso nenhum. E a Morte diz: “Meu amigo! E aquelas avalanches na montanha, e aquele tigre que quase o alcançou, e aquele seu barco que naufragou, etc. – isso não foi aviso suficiente de que eu estava chegando perto?!”

Compreensivelmente, ele diz que não entendeu assim. Quer um aviso claro, inconfundível; e a Morte diz: “Então tá bom. Escolha o aviso”. Ele pensa um pouco e diz: “Quero que o aviso seja esta cena: uma mulher de preto, sentada num piano, à luz de velas, tocando a Marcha Fúnebre de Chopin”. A Morte aceita: “Tá legal. Quando chegar sua hora, você verá exatamente isso”. E desaparece.

Musafir respira aliviado e pensa: “Bom, tudo que eu tenho a fazer daqui em diante é deixar de ir a concertos de piano”. E vai à janela, para fechá-la e ir dormir. Quando chega lá, vê do lado oposto da rua que na mansão em frente está havendo uma festa: pela janela ele vê a sala da mansão, e bem ali, no meio, adivinhem o quê. Ele vacila, cambaleia, leva a mão ao coração e (a frase final é uma citação de Dante) “caiu como um corpo morto cai”. Bem feito. Ele, um homem culto, leitor dos clássicos, deveria saber que o bosque de Birnam sempre chega a Dunsinane.