quarta-feira, 29 de junho de 2011

2595) Diretores e idéias (29.6.2011)




Dias atrás me referi a Hitchcock como um diretor sem idéias. Perguntaram-me por que motivo não gosto dele. A verdade é que talvez eu goste de Hitchcock ainda mais do que alguns dos fãs que o defendem. Mas existem os artistas que são somente artistas, embora sejam Titãs da Literatura ou Gênios da Humanidade; e existem os artistas que têm idéias próprias sobre o mundo. Em qualquer categoria de atividade há as pessoas que têm idéias próprias e as que não as têm: matemáticos, pintores, taxistas, roqueiros, políticos, bancários, antropólogos, o escambau.

Peço perdão se estou sendo injusto, mas não me consta que João Gilberto, Buster Keaton, Chuck Berry, Castro Alves, Nureyev, Roberto Carlos, Basquiat, Paul McCartney ou Jackson do Pandeiro tivessem idéias próprias sobre o mundo. São estúpidos, sem personalidade? Longe disso. São artistas geniais (sou fã de todos eles), mas sua visão das coisas não vai além da visão coletiva das sociedade em que estavam mergulhados. Viviam suas contradições, suas dúvidas, suas descobertas; envolviam-se nas lutas do seu tempo; usavam seu talento com força máxima para exprimir suas opiniões, suas emoções, suas observações, mas isto não era o bastante para erguê-los acima do oceano mental em que flutuavam. 

Para isto, o artista, genial ou não, precisa de idéias próprias, precisa de um mínimo daquilo que os alemães chamam de “Weltanschauung”, visão-do-mundo, palavra da moda nos anos 1960 em que fiz minha cabeça. Precisa ter idéias pessoais, fruto de um ponto de vista que é só seu e de mais ninguém, produto da salada pessoal, cultural, afetiva e intelectual que cada um de nós tem e é única, irrepetível, inimitável.

Quem, então, tem essas famosas idéias próprias? Em mais uma lista feita ao acaso, posso citar Ingmar Bergman, João Cabral, Rimbaud, Buñuel, Bob Dylan, Guimarães Rosa, Borges, Ariano Suassuna, Brecht, Maiakóvski, e por aí vai. 

Em cada um deles, vemos, ao lado de uma obra notável, uma interpretação pessoal do mundo que vai além da obra em si, torna-se um pensamento. Lembrem daquelas coleçõezinhas que têm títulos como O Pensamento Vivo de Fulano. Eu consigo imaginar um livro intitulado O Pensamento Vivo de Jean-Luc Godard, mas não consigo imaginar O Pensamento Vivo de John Ford. Ambos são grandes diretores, mas Godard tinha um conjunto de idéias extra-cinema e John Ford (estarei sendo injusto?) parece que não.

Diretores como Spielberg, Hitchcock, Sérgio Leone, Don Siegel, Howard Hawks (e outros) são cineastas, ponto final. Indivíduos com uma compreensão instintiva da alma humana, dos dramas humanos, e com a capacidade de exprimir isto através da narrativa, dos atores, da câmara. Mas não me dão a impressão de serem pensadores, de serem pessoas que se destacariam caso não fossem cineastas. 

Uns não são inferiores aos outros, porque ninguém é obrigado a ter uma visão do mundo própria (eu mesmo não sei se tenho). Mas essa distinção existe, é real, e é importante.