domingo, 30 de setembro de 2012
2990) Vício digital (30.9.2012)
A Internet tanto ajuda quanto atrapalha um escritor. É como ter na mesa ao lado, no escritório, uma secretária eficientíssima, que faz tudo e sabe tudo, mas insiste em trabalhar usando fio dental. Toda vez que o sujeito faz um ponto/parágrafo, vem a precisão de dar uma olhada. E se chegou a resposta àquele email ansioso que mandei ontem para a editora? E se alguém tiver postado algo interessante no Facebook? E se no Twitter tiver acabado de aparecer um link que vai me dar de bandeja o tema da coluna de amanhã? E se o saite da CNN tiver uma revelação bombástica sobre a campanha presidencial nos EUA? E se alguém tiver postado um comentário interessante no meu Blog? Por falar nisso, quantos acessos o blog teve hoje?
Muitos escritores experimentam isto de 10 em 10 minutos enquanto escrevem. Um artigo no The Telegraph me faz compartilhar o calvário de alguns escritores ingleses contemporâneos, que, pasmem, chegam a instalar no computador programas destinados a atrapalhar seu acesso à Internet enquanto escrevem. Zadie Smith (White Teeth) usa dois programas, chamados Freedom (também utilizado por Nick Hornby, Dave Eggers e Naomi Klein) e Self-Control.
Quem melhor explica isso é Ned Beauman (The Teleportation Accident), nascido em 1985 e totalmente integrado no redemoinho eletrônico. “Eu uso K9, um aplicativo que bloqueia certas páginas em alguns websaites”, diz ele, “e uso um bloqueador de anúncios para bloquear a seção de comentários nos saites. Quando estou trabalhando uso Nanny, aplicativo do Google Chrome, e uso SelfControl para bloquear alguns outros saites”. Quais? Ele responde: “Virtualmente todos os saites de jornais, revistas, blogs e o Twitter”.
Está cada vez mais fácil baixar um aplicativo para amordaçar o computador do que simplesmente adquirir o autodomínio necessário para trabalhar cinco ou seis horas sem abrir um navegador. Cinco ou seis horas? Estou sendo utópico. Não me lembro a última vez em que trabalhei duas horas seguidas sem dar um pulo nos usuais suspeitos (email, Facebook, Twitter, Wikipedia, Terra, CNN, StereoMood, Mundo Fantasmo).
Que trauma será esse? Falta de vergonha, diria Seu Lunga, e o inglês Will Self, nascido em 1961, afirma: “Internet não tem nada a ver com a escrita de ficção, que é a expressão de verdades que só são obtidas através da observação e introspecção. É um instrumento incrível e seria idiotice não usá-lo, mas é uma coisa que atrapalha a escrita propriamente dita”. Não custa nada fechar todas as janelas, deixar aberto somente o Word, e dizer: “Só conecto de novo daqui a 3 horas, e durante 30 minutos”. Se não conseguir... é falta de vergonha mesmo.
sábado, 29 de setembro de 2012
2989) Antologias de FC (29.9.2012)
As antologias de contos tiveram um papel muito importante na FC ao longo de décadas. As antologias dos “melhores” do ano, clicando uma polaróide do que foi aquele ano (o exemplo mais presente são as antologias de Gardner Dozois); as antologias de contos inéditos, revelando novas histórias e novos autores; as antologias de clássicos obscuros ou esquecidos; as antologias temáticas de todos os tipos. É justamente essa variedade de abordagens que dá a importância coletiva das antologias, porque cada uma delas faz um recorte diferente, seja na seleção do que é inédito, seja na pesquisa e escolha do que já existe.
Roger Elwood é um editor norte-americano que no espaço de poucos anos, entre as décadas de 1960-1970, lançou dezenas de antologias originais, tendo a certa altura açambarcado para si um quarto do mercado de contos nos EUA. Fala-se que editou cerca de 80 ao todo, e surgiu até o termo “elwoodização” para descrever a saturação de um mercado editorial específico. A Encyclopedia of SF observa que ele é um cristão devoto, sendo também autor de várias obras evangélicas e inspiracionais. Não me lembro de ter alguma antologia de Elwood na minha coleção e não sei avaliar seu valor, mas o personagem mereceria uma tese. Pode ter sido uma tentativa de hubbardização.
Um dos tipos de antologias que mais aprecio é o modelo personalíssimo criado por Judith Merrill em sua série The Year’s Best S-F (é esta a grafia). Consta que foram doze volumes, dos quais tenho seis. JM fazia um balanço que ia muito além do mercado de revistas de FC (1956-1968). O volume de 1963 traz um poema de Conrad Aiken, poema em prosa de John dos Passos (um fragmento de Midcentury, de 1961), o conto (de estréia!) do físico Leo Szilard, cartum de Jules Feiffer, versos de Paul Dehn ilustrados por Edward Gorey, um conto de Lawrence Durrell – e, claro, histórias de autores como Fritz Leiber, Fredric Brown, James Blish, John Wyndham, Anne McCaffrey e Cordwainer Smith.
O que isto prova? Para mim, prova que também é possível ter um modelo de antologia que mesmo privilegiando o conto e mesmo privilegiando a FC não vê problema em usar outros ingredientes. Não é uma antologia de contos, é uma antologia de idéias. A antologia capta e herda um certo espírito eclético (inclusive na apresentação gráfica) das revistas de FC. Uma antologia organizada pela presença de idéias-FC – e aí cabe ao organizador saber o que cada peça está fazendo ali. Uma antologia pode também ter algo de revista, ter algo de almanaque, misturar poemas, cartuns, não-ficção, fotografias, contos mainstream. Desde que tudo isso funcione dentro de um conceito geral.
sexta-feira, 28 de setembro de 2012
2988) A Vida e os Tempos de Ivan Denissaev (28.9.2012)
Cap. 2 – De como Ivan Denissaev era de uma família tão pobre
que não fazia idéia do que fosse tundra, mujique, ícone, longilíneo, essa zorra
toda.
Cap. 3 – De como o alistamento compulsório ao exército
czarista ensinou a Ivan o manejo do alfabeto e da baioneta.
Cap. 4 – De como Ivan viveu o primeiro grande momento de sua
vida ao descer a escadaria de Odessa mandando bala naquele magote de
desordeiros (ele é o quinto par de botas da esquerda para a direita).
Cap. 5 - De como Ivan tornou-se sub-secretário de
Inteligência do Czar, e nessa qualidade sua primeira providência foi redigir e
distribuir no país, misturando seu aprendizado do colégio ao do quartel, um
livro com um manifesto contra o Czar, uma tortuosa análise política dos países
eslavos, um hino revolucionário, e, nas últimas páginas, algumas fórmulas
químicas de uso prático, numa das quais ao algarismo de um ingrediente foi
discretamente anteposto outro que o multiplicou; e com isso nos dois anos
seguintes três em cada quatro terroristas que tentavam fabricar explosivos iam
pelos ares, poupando esse trabalho ao governo.
Cap. 6 – De como ele foi promovido a oficial do exército
czarista, traiu o czar durante um chá com Kerensky, e participou de reuniões
clandestinas onde nunca distinguiu com clareza o que queriam os mencheviques e
o que queriam os bolcheviques.
Cap. 7 – De como Ivan, durante a tomada do Palácio de
Inverno, entrincheirou-se atrás de uma coluna e, coerente consigo mesmo, atirou
nas tropas invasoras e nas tropas defensoras, esperando para ver para que lado
a batalha pendia.
Cap. 8 – De como a vitória dos insurretos catapultou Ivan ao
cargo de Comissário do Povo Soviético durante a Guerra Civil, quando ele
aproveitou para desviar armas, munições e verbas para seu povoado, e comprar
para si mesmo um automóvel, um aquecedor central e um Ovo Fabergé.
Cap. 9 – De como Ivan tornou-se o braço direito de Josef
Stálin, a ponto de deixar crescer um bigode igualzinho ao do ditador.
quinta-feira, 27 de setembro de 2012
2987) Zumbi a passeio (27.9.2012)
“Felisberto! Leve o
lixo pra jogar lá fora!”.
Eu já estava quase no portão quando ouvi a voz de Dalva, e gritei de volta: “Não posso agora! Estou levando Zombe pra passear!”.
Zombe é o nome do zumbi da gente, e às vezes eu fico imaginando a cara do meu pai se ele tivesse sobrevivido à Guerra Canibal e visse nosso estilo de vida hoje. Ele provavelmente iria dizer: “Não importa quantos apocalipses a humanidade tenha que passar, ela sempre encontra um jeito de regredir à pequena-burguesia suburbana!”.
Meu pai foi devorado quando eu tinha 12 anos mas me lembro até hoje das aulas dele, porque ele não conversava, ele dava aula o tempo todo, era incapaz de pegar um pão na mesa sem dar uma aula sobre a Crise do Trigo Asiático. Ele sempre disse que a Epidemia Zumbi era uma trama de umas organizações que eu nunca entendi. Quando cresci fiquei sabendo que foi acidente mesmo.
Eu já estava quase no portão quando ouvi a voz de Dalva, e gritei de volta: “Não posso agora! Estou levando Zombe pra passear!”.
Zombe é o nome do zumbi da gente, e às vezes eu fico imaginando a cara do meu pai se ele tivesse sobrevivido à Guerra Canibal e visse nosso estilo de vida hoje. Ele provavelmente iria dizer: “Não importa quantos apocalipses a humanidade tenha que passar, ela sempre encontra um jeito de regredir à pequena-burguesia suburbana!”.
Meu pai foi devorado quando eu tinha 12 anos mas me lembro até hoje das aulas dele, porque ele não conversava, ele dava aula o tempo todo, era incapaz de pegar um pão na mesa sem dar uma aula sobre a Crise do Trigo Asiático. Ele sempre disse que a Epidemia Zumbi era uma trama de umas organizações que eu nunca entendi. Quando cresci fiquei sabendo que foi acidente mesmo.
De qualquer modo, fui na casinha, botei a coleira em Zombe e
saí. Fim da tarde todo mundo se encontra na padaria. Com uma passadinha no
açougue, onde cada um compra um osso pra distrair seu pet.
Zombe gosta de costela, bem crua. Dê aquela costeletazinha básica e ele passa meia hora de cócoras, entretido, enquanto a gente troca uma idéia, comenta o futebol. Claro, futebol acabou, mas a gente tem as gravações; eu e uns amigos do meu prédio estamos acompanhando o campeonato carioca de 2002, um jogo por dia, proibido spoilers.
Eu saio pouco de casa; tenho 44 anos e sou o mais velho da minha rua. Só saio de casa armado e com Zombe. Gente com fome é pior do que zumbi.
Zombe gosta de costela, bem crua. Dê aquela costeletazinha básica e ele passa meia hora de cócoras, entretido, enquanto a gente troca uma idéia, comenta o futebol. Claro, futebol acabou, mas a gente tem as gravações; eu e uns amigos do meu prédio estamos acompanhando o campeonato carioca de 2002, um jogo por dia, proibido spoilers.
Eu saio pouco de casa; tenho 44 anos e sou o mais velho da minha rua. Só saio de casa armado e com Zombe. Gente com fome é pior do que zumbi.
Sou um dos poucos que conheceram o mundo antigo, um mundo onde os zumbis eram uma ameaça e não nossos cães de guarda quimicamente domesticados. Foram vinte anos de carnificina recíproca até que conseguimos amestrá-los. Hoje, não viveríamos sem eles, que nos defendem de nós mesmos.
O mundo colapsou, todo mundo só come o que planta, cria ou fabrica. Comércio, só de bairro. Não há mais política, indústria, capital financeiro, exércitos, guerras; e isto é um baita dum consolo por não existirem mais universidades, esportes, estações de TV, cinema, restaurantes e bares.
Na minha cidade somos (li ontem) um milhão de humanos, e só 120 mil possuem zumbis para se defender do restante. Dalva diz que sempre haverá ricos e pobres.
Puxo a coleira de Zombe e arrasto-o de volta para casa. Falem de apocalipse, falem que vivemos num inferno, mas para mim qualquer mundo é um paraíso se nele sou eu quem puxa alguém pela coleira.
quarta-feira, 26 de setembro de 2012
2986) O fanático sorridente (26.9.2012)
Sou agnóstico mas considero a religião uma forma importante
de conhecimento intuitivo do mundo e de relacionamento interpessoal. Sem as religiões à minha volta, minha vida ficaria
empobrecida, mesmo que eu não concorde com as premissas delas (existência de
mundo espiritual, existência de seres superiores que nos avaliam e nos julgam,
existência do Céu e do Inferno, etc.). Fazem parte da cultura que me cerca. Por
outro lado, não preciso de religião. Para explicar o Universo, a Ciência tem me
quebrado o maior galho. Para conviver
com a humanidade, tenho uma espécie de humanismo doméstico, que não queima
incenso em nenhum altar. Se um dia eu
mudar de idéia e me converter a alguma fé, serei o primeiro a avisar a todo mundo.
Por que não?
Aqui no Brasil, uma das primeiras providências da Casa
Grande foi abrir uma capela pertinho da Senzala. Quando um povo domina e
escraviza outro, não basta destruir seus armamentos, é preciso destruir seus
deuses também. Os espanhóis queimaram milhares de códices maias, mas se fossem
os maias que tivessem invadido a Espanha teriam feito o mesmo com as catedrais
(os republicanos queimaram centenas delas na Guerra Civil). Hoje circula nas
redes sociais, numa campanha contra a evangelização forçada dos índios, uma
imagem orgulhosa de um jovem índio brasileiro dizendo: “Seu mito não é melhor
do que o meu”. O problema é que quem acredita em mitos acha sempre que mito é só
o dos outros – o seu é a verdade. A fórmula de toda crença requer pelo menos um
átomo de fanatismo, porque crer é ter certeza, e o fanatismo não passa de
certeza. Uma certeza ansiosa para se expandir, e que não aceita ser questionada
ou relativizada pela existência de certezas opostas. Não é preciso desprezar
nem odiar os fanáticos. Devemos apenas enquadrá-los, impor limites civis e
coletivos a sua atuação, impedir que infernizem a vida alheia com sua hipótese
de Paraíso. Podemos perdoá-los, porque é evidente que não sabem o que fazem.
Vejam bem – não falo dos caras que empunham archotes
acesos e enforcam gente. Falo dos
fanáticos pacíficos, cuja única arma é o altofalante na casa vizinha bradando
aleluias e hosanas. (Confesso que nessas horas quem tem vontade de empunhar archotes
e enforcar gente sou eu.) Alguém já disse que fanático é um sujeito que nunca
muda de opinião, nem de assunto. E vou mais além – é o cara para quem o simples
fato de você acreditar em algo diferente exige que você seja imediatamente
convencido a mudar de idéia. O quê? Não concorda com minha definição,
amigo? Beleza! Fique com a sua que eu fico com a minha.
Basta não tocar na minha campainha, e dar uma abaixada no som.
terça-feira, 25 de setembro de 2012
2985) Quero morar na Suécia (25.9.2012)
As autoridades da Suécia estão inaugurando uma experiência de engenharia social (existe este termo?) para organizar certos setores de estudo, trabalho, etc. em função dos nossos diferentes ciclos de atividade biológica. Há pessoas que acordam a mil por hora, com a corda toda, e às 10 da noite já estão cabeceando de sono; e pessoas que se arrastam para fora da cama, de manhã, como trapos embrutecidos, mas vão ganhando forças ao longo do dia, e depois da meia-noite são capazes de qualquer façanha intelectual (sem falar nas outras). Por que isto? Dizem os cientistas (não só os suecos) que existem dois tipos de pessoas a que eles chamam “A” e “B”. A pessoa tipo “A” tem um ciclo biológico de 23 horas; a pessoa “B” tem um ciclo de 25 a 27 horas. São estas pessoas “B” que são mais produtivas no final do dia e acordam com sacrifício.
Erika
Augustinsson é vice-presidente da B-Samfundet (“Sociedade B”), um movimento que
pretende abrir espaços para que as pessoas com estas características (e que
talvez sejam uma minoria) possam estudar e trabalhar em horários mais adaptados
ao seu ciclo de atividade. Pessoas B
(como é o meu caso, aliás) são frequentemente chamadas de preguiçosas porque
têm dificuldade de acordar cedo para ir à aula ou ao trabalho. (Curiosamente,
quando elas estão acordadas na madruga, com todas as turbinas mentais ligadas
na potência máxima, ninguém vê, porque está todo mundo dormindo.)
Diz
Erika: "Nosso objetivo é acabar com as rígidas disciplinas de horário da
sociedade industrial, em que todos chegam ao mesmo tempo e saem na mesma
hora". A industrialização exige a uniformização, ou seja, todo mundo
chegando e saindo ao mesmo tempo, todo mundo se comportando de maneira ordenada
e previsível. Exceções não são bem
vindas, porque para lidar com elas é preciso criar e manter diferentes
cronogramas, e isso atrapalha a Produtividade (essa deusa grega invisível, que
só se deixa perceber pelas benesses que distribui aos seus sacerdotes).
O
esquema vai ser inaugurado com uma escola secundária de Gotemburgo, que a
partir de setembro oferecerá turnos opcionais entre as 20 e as 8:00 horas. Eu sempre fui um aluno medíocre quando
estudei de manhã, e minha melhor fase estudantil foi quando passei para o turno
da noite. Ainda hoje, sair da cama é como escalar um penhasco, mas depois que
anoitece a única coisa que peço é que não me atrapalhem, porque preciso
recuperar o tempo perdido. Assim como muita gente já conseguiu trabalhar em
casa (sem perder 3 ou 4 horas no trânsito), muita gente pode vir a conseguir essa
coisa tão simples: ser aproveitado durante o seu melhor momento.
domingo, 23 de setembro de 2012
2984) O fim do mundo (23.9.2012)
Peço desculpas pelo tom catastrófico deste título. Dada a importância
do assunto, pensei em intitular esta coluna “Mulher pelada!”, para atrair mais
leitores, mas o título acima me parece mais honesto em função do conteúdo. Ver
e rever o filme Trabalho Interno (Inside Job, 2010), documentário de Charles
Ferguson sobre a crise financeira de 2008 (que não acabou ainda – o mundo
continua vivo, respirando com a ajuda de aparelhos) me leva a pensar neste
episódio emblemático do gangsterismo denominado “capitalismo financeiro”, que
arruinou centenas de milhões de famílias pelo mundo afora. O filme ganhou o
Oscar de Melhor Documentário, uma atitude corajosa da Academia, ou talvez nem
tanto - fico imaginando quantos dos seus membros perderam suas poupanças devido
às maracutaias que o filme denuncia e expõe.
Duas coisas aconteceram. De um lado, a omissão dos governos
em fiscalizar esse mercado, impor limites, atribuir responsabilidades,
investigar os delitos e punir os transgressores. (É para isso que existem os
governos, amigos, e isso, por incrível que pareça, não é cerceamento das
liberdades individuais. Pelo contrário.) Do outro lado, a emergência de uma
casta de executivos, economistas, altos funcionários, advogados e políticos que
descobriram uma maneira rápida de fabricar dinheiro imaginário tendo como matéria-prima
o dinheiro real dos correntistas e aplicadores.
Esse dinheiro real era multiplicado 100 ou 200 vezes numa ciranda de
transações cada vez maiores, pagando dividendos fantásticos. E criando uma
situação de extremo risco, porque era um castelo de cartas. No dia em que
tombou a primeira, tombaram todas.
Quando os correntistas e aplicadores perguntavam timidamente
se aquilo era seguro, todos os consultores diziam que sim, sem dúvida. Mesmo
sabendo que não era. É impressionante a
cara-de-pau deles no filme, interrogados nas CPIs, tirando o seu da reta e
dizendo que o que tinham passado para os clientes “era apenas uma opinião”, e
que os clientes seguiram aquela opinião porque quiseram. Uma super-fraude
organizada para enriquecer às custas dos leigos; uma farra que durou quase uma
década.
Eu já tinha visto esta história por alto nos
telejornais da época, mas é outra coisa ver os principais trambiqueiros (e os
principais denunciantes) entrevistados por quem entende do assunto. Não vou
transcrever aqui a cadeia de fatos, os números, os episódios. Está tudo no
filme (em qualquer locadora, com versão comentada pelo diretor, ou para
download aqui, com legendas: http://bit.ly/QseKmX),
no websaite do filme (http://www.sonyclassics.com/insidejob/), e
por aí afora. Poderia se intitular: ”O Começo do Fim”.
sexta-feira, 21 de setembro de 2012
2983) "Um Livro de Nonsense" (22.9.2012)
Entre os muitos centenários
comemorados este ano (Luiz Gonzaga, Nelson Rodrigues, Adoniran Barbosa, Jorge
Amado, Herivelto Martins, Mazzaropi, etc.) há um (na verdade, um bicentenário)
que quase passava despercebido em nosso país, por ser de um poeta estrangeiro e
obscuro. Em 1812 nasceu Edward Lear, poeta e ilustrador inglês, um dos grandes
mestres do “nonsense” ou do absurdo.
Lear foi apontado como influência em autores tão diferentes quando John
Lennon e James Joyce, e embora não tenha sido nunca um dos “grandes nomes” da
poesia inglesa tem em torno de si um pequeno culto de admiradores dedicados.
Tão dedicados que enfrentam a complicada tarefa de verter
para outras línguas os seus versinhos sem sentido, que ele mesmo ilustrava de
maneira muito divertida. Lear cultivou o limerick,, uma forma de poesia inglesa
que consiste numa estrofe de cinco versos onde o 1, o 2 e o 5 são longos e
rimam entre si, e o 3 e o 4 são curtos e rimam um com o outro. O limerick é
tipicamente uma estrofe meio absurda e meio obscena para ser cantada em público
enquanto se toma cerveja num bar. Para ter uma idéia de como se canta, lembrem
a melodia do desenho animado de Popeye, aquela que diz “Oh Popeye the sailor
man...” Um limerick se encaixa
aproximadamente numa melodia como aquela.
Vinicius Alves arriscou-se a
traduzir e homenagear Lear em seu centenário, e publicou este ano Um Livro de
Nonsense (Florianópolis: Bernúncia, 2012), um livro destinado a “crianças de 8
a 88 anos”, com 44 limericks de Lear. O livro traz na página esquerda o
original inglês (com a ilustração do autor) e na página oposta a tradução, que
sempre toma inúmeras liberdades, mantendo uma certa semelhança com o original
mas pulando para direções inesperadas. Lear empregava muitos nomes próprios
(pessoas e lugares) em suas rimas, e o tradutor brasileiro vê-se forçado a
inventar outros, que sugerem novas rimas, e assim por diante. Vinicius Alves
também interfere (de forma positiva) na estrutura do limerick de Lear, o qual
tinha o hábito de repetir na última linha a frase da primeira; alguns
tradutores optam por evitar essa repetição, criando um verso novo. (Eu teria
feito o mesmo.)
2982) Escrever e respirar (21.9.2012)
(Londres, 1940)
Suponhamos
que daqui a 100 anos a atual crise ambiental se agravou a um tal ponto que a
poluição envenenou a atmosfera de modo irremediável. Para sobreviver, a
humanidade construiu imensas usinas produtoras de cilindros de oxigênio, que
são acoplados aos nossos narizes desde o momento em que o cordão umbilical do
bebê é cortado na maternidade. Todo ser humano vive feito um mergulhador, com
aquele trambolho de metal numa mochila às costas e os tubos flexíveis
conduzindo aos pulmões o gás indispensável à vida. É de graça? Quem dera. As indústrias e os governos cobram, e cobram
caro por isso. Mas todo mundo paga, ou melhor, quem está vivo é porque consegue
pagar. Os que não conseguiram não pertencem mais à paisagem.
Um
belo dia, um grupo de indústrias independentes inventa um processo químico de
limpar a atmosfera e num piscar de olhos, em 20 ou 30 anos, o ar volta a ser
uniformemente respirável, ou pelo menos fica igual a este ar que respiramos em
2012. E agora? O mundo entra em crise.
Dezenas de milhões de desempregados superlotam a Praça Tahir, a Plaza de
Mayo, Wall Street, o Vale do Anhangabaú. “Queremos de volta a indústria do oxigênio”,
bradam eles, arquejantes (e meio bêbados, claro, seus pulmões não estavam
acostumados àquela overdose). Os governos arrancam os cabelos porque vão ficar
sem os 71% de impostos que cobravam sobre a indústria respiratória. Filósofos
ponderam: “Respirar de graça empobrece o senso de responsabilidade dos
cidadãos. E esse desperdício de oxigênio não-respirado, francamente!”.
quinta-feira, 20 de setembro de 2012
2981) Galera e games (20.9.2012)
Num
ótimo ensaio na revista Serrote (http://bit.ly/NLRZYc),
o escritor Daniel Galera examina a experiência dos videogames e procura apontar
o que ela tem de diferente, de novo e de útil para nós. Essa discussão é
parecida com a de quase um século atrás sobre “o específico fílmico”. O
específico fílmico era, segundo os teóricos, um modo de experimentar o mundo
através do cinema que não podia ser proporcionado pela literatura, pelo teatro,
por nenhuma outra arte. Claro que cada
teórico via esse “específico” de uma maneira diferente. Para Rudolf Arnheim, por exemplo, eram as
limitações da imagem cinematográfica que produziam sua linguagem nova, única: o
fato de ser limitada por um retângulo, de ver as coisas por um só ângulo de
cada vez, etc.
Galera
indica uma diferença essencial nos games, o que ele chama de “narrativa
procedimental”, o fato de que cada jogo precisa ser jogado de maneira
ligeiramente diferente, e que é somente jogando que o jogador aprende o modo de
jogar o jogo e o objetivo do jogo. Isso
está na raiz da interatividade do jogo, do fato de que ele exige ações e
decisões do jogador, coisa que o espectador cinematográfico não precisa
executar. No cinema, existe apenas a ação intelectual de interpretar as
imagens, mas o espectador não toma decisões sobre o que vai aparecer na tela em
seguida. Nesse sentido, o “específico fílmico” requer a observação, e o
“específico guêimico” (desculpa aí!) exige a interatividade.
quarta-feira, 19 de setembro de 2012
2980) Nina vs Carminha (19.9.2012)
Não,
amigos, eu não acompanho a novela Avenida Brasil. Aliás, faz anos que a única
novela que acompanho é o Campeonato Brasileiro, onde também há heróis e vilões,
suspenses e reviravoltas, tragédias e farsas, inícios empolgantes, barrigas
intermináveis e nem sempre um final feliz. Mesmo assim, sou um admirador do
gênero telenovelesco, ao contrário do que geralmente se pensa dos intelectuais.
Gosto de futebol, cordel, forró, pulp fiction, de tudo que é popularesco; como
não gostarei de telenovela? A diferença, acho, é que eu não gosto de qualquer
telenovela, só gosto das que prestam.
Li
comentários recentes de outros jornalistas, como Maria do Rosário Caetano, em
seu Almanakito eletrônico, que disse dias atrás: “Que mal o ‘esticamento’ de
Avenida Brasil está fazendo a esta telenovela, heim??? Sem assunto e sem
poder resolver a trama, João E. Carneiro está cometendo terríveis atentados à
verossimilhança e enchendo linguiça até mais não poder! Quem ainda aguenta as
caretas e esgares da Carminha? E o chove não-molha do casal Caruso-Giardini? E
Cadinho e suas três mulheres (aliás, este sempre foi um dos pontos fracos da
novela, porque caricato demais!!!)”.
E
ela cita Zuenir Ventura, que comentou, aludindo à cena do dinheiro roubado a
Nina após sair do banco: “Nina, moça viajada, é, na verdade uma tonta, ou pensa
que a gente é. Além de desconhecer a existência de cheque e transferências
bancárias, não sabe que os bancos possuem cofres para guardar em segurança
as fotos que fez de Max e Carminha se beijando e escondeu na casa dos
outros".
terça-feira, 18 de setembro de 2012
2979) O mundo islâmico (18.9.2012)
Fico com a
pulga atrás da orelha quando leio na imprensa generalizações do tipo “os
argentinos são egocêntricos”, “os baianos são preguiçosos”, “os políticos são
desonestos”, “os sertanejos são simplórios”, “os cientistas são insensíveis”… Pobre
imprensa: tão sufocada pelos prazos curtos, tão obrigada a traficar clichês. Todo
clichê parece fazer sentido, porque (é triste, mas é verdade) o alcance mental
de muita gente só vai até aí. Para quem raciocina desse jeito, todas as
categorias acima são homogêneas, compartilham as mesmas características. Meus
camaradas, nenhuma categoria no mundo é homogênea. Talvez os átomos de um
elemento químico sejam todos iguais, mas mesmo nesse caso eu não boto a mão no
fogo.
O websaite
da emissora árabe Al-Jazeera publicou um artigo da antropóloga Sarah Kendzior (http://aje.me/UaDEcd)
criticando o uso indiscriminado da expressão “o mundo islâmico”, um conceito
que envolve numerosos países e centenas de milhões de pessoas. Algo de uma complexidade que dá tontura só de
pensar, e ainda assim lemos todo dia expressões como “as mulheres não têm
liberdade no mundo islâmico…”. Dizer isso
é deixar de lado incontáveis diferenças políticas, econômicas e históricas entre
todos esses países que cultivam a mesma religião.
Diz ela: “Após
a destruição da embaixada dos EUA em Benghazi e as mortes de quatro
norte-americanos, aconteceu um protesto contra as pessoas que os mataram.
Cidadãos líbios ergueram cartazes em inglês dizendo ‘Benghazi é contra o
terrorismo’, e “Desculpem, americanos, estas não são ações do nosso Islã e do
Profeta’. (…) Mas explicações assim não deviam ser necessárias. Não se deveria
imaginar que pessoas comuns compartilham as idéias de criminosos violentos que
pertencem à mesma fé”.
domingo, 16 de setembro de 2012
2978) Tempestade de Dylan (16.9.2012)
O
novo disco de Bob Dylan, Tempest está chegando às lojas (ou melhor, já pode
ser ripado livremente). O Bardo aproveitou a ocasião para dar mais uma
entrevista à revista Rolling Stone, na qual solta o verbo sobre os críticos
com uma irritação que há um bom tempo não demonstrava (“all those motherfuckers
can rot in hell”). Bem, como é tempo de política, ele deve estar se dirigindo
aos críticos republicanos.
Já
escutei uma faixa no YouTube, “Duquesne Whistle”, que mais uma vez não é rock, começa
como uma daquelas cantigas “honey pie” dos anos 1930, com uma bateriazinha
básica, guitarra slide, órgão de apoio... Tem um clima de botecos clandestinos
da Lei Seca, ainda com um glitter e um charme dos anos 1920, mas já com um
cheiro de fumaça, poeira e pólvora da Depressão dos 30. Não é rock, como aliás
não têm sido os últimos álbuns de Dylan. É uma raiz melódica do rock, uma raiz
mais remota que o blues, ainda que menos poderosa. Curiosamente, uma raiz que
Dylan compartilha com os Beatles, cuja música entre 1967 e 1969 bebeu nessa
fonte “antiquada”, graças principalmente a Paul McCartney, cujo pai tinha sido
músico de banda nesse período.
Dylan
retoma na entrevista a discussão sobre os versos que andou “pedindo emprestado”
a outros autores em letras de canções recentes. Os casos mais notórios são o
livro Confessions of a Yakuza de Junichi Saga e os poemas de Henry Timrod
(1828-1867), dos quais Dylan teria usado frases inteiras. Diz ele:
“No
folk e no jazz a citação é uma tradição rica e enriquecedora. Alguém aí já ouviu
falar em Henry Timrod? Quem de vocês leu os livros dele ultimamente? E quem foi
que o trouxe à evidência agora? Quem fez vocês se interessarem por ele?
Perguntem aos descendentes dele o que acham dessa discussão. E se vocês pensam
que é fácil citá-lo, e que isso pode lhes ser útil, vão em frente e vejam o que
conseguem. Estou trabalhando dentro da minha arte, dentro das regras e das
limitações dela. Existe aí gente autorizada que pode explicar isso melhor do
que eu. Chama-se ‘escrever canções’. Tem a ver com melodia e ritmo, e depois
disso vale tudo. Tudo que você usa fica sendo seu. Todos nós fazemos isso”.
sábado, 15 de setembro de 2012
2977) Na festa do mundo (15.9.2012)
(foto: "Paris, 1924", Henri Manuel)
"O mundo era uma festa, uma noite estrelada, o terraço de uma cobertura aberta para o oceano, a avenida da praia percorrida por pares de faróis em trânsito incessante, os edifícios com janelas iluminadas e terraços onde pessoas dançavam, gritavam rindo para nós, erguiam o copo numa saudação alegre à distância, sem nem saber que éramos.
"Nós mesmos não sabíamos
quem éramos, e isso não tinha importância; a vida era uma coisa tão boa que nos
poupava de ser bons, era tão acelerada que nos poupava da menor iniciativa. Erguíamos os braços com as taças se
derramando, ouviam-se gritinhos femininos de prazer, e nos saudávamos como se
toda noite fosse uma festa de reveillon, como se no futuro alguém fosse ler em
todas as lápides: “Eles viveram como se toda noite fosse um reveillon”.
"Isso éramos nós, na pedra, no mármore e no
bronze. A vida era uma comemoração do mero fato de haver a vida. Uma celebração abstrata, um brinde e um beijo
a toda e qualquer coisa, fosse um aniversário, um casamento, uma vitória, um
festejo em comum. Os seres humanos do nosso mundo não perguntavam o antigo “quem somos, de onde viemos e para
onde vamos”. Perguntavam: Como foi a
festa de ontem? Como vamos nos preparar para a festa de hoje? Alguém sabe onde tem festa amanhã?
"Vivíamos erguendo os copos, arremessando
serpentinas do nosso balcão ao balcão do sobrado em frente, vendo a rua
fervilhar de dançarinos, o mundo era uma festa, e estávamos celebrando. As águas subiam, e estávamos celebrando. As
luzes falhavam, a comida acabava, a bebida estava quente, mas tudo era motivo
para novos risos, novos gracejos, e celebração.
"Onde havia uma avenida era
agora correnteza; passavam boiando reses, carros, pessoas. Tudo era espetáculo
para nossos comentários espirituosos, nossas apostas repentinas, nossos
brindes. Entrava noite e saía noite,
nascia manhã e findava tarde, e íamos de lancha ao clube para onde antes íamos
de carro, e onde os salões superiores estavam sempre apinhados de multidão e
música, mesmo que lá embaixo a piscina estivesse submersa no lamaçal. Subiam
colunas de fumaça, e apostávamos se o vento as empurraria para o nascente ou o
poente. Prédios ardiam, e alguém murmurava um verso sobre “a beleza ancestral
do fogo”. As tropas chacinavam multidões
famintas e tudo parecia um videogame. Da
vida só entendíamos o que ela tinha de festa, e é no espírito de festa que
hoje, entre as ruínas, tomamos a sopa rude dos desabrigados que nos acolheram
em seus barracos, e brindamos, com estes canecos enferrujados e esta cachaça
impura, ao mundo que deixou de existir."
sexta-feira, 14 de setembro de 2012
2976) "Trabalho Interno" (14.9.2012)
Em setembro de 2001, as Torres Gêmeas de Nova York foram
derrubadas por aviões terroristas e o mundo inteiro ficou chocado. Dá para
entender – morreram quase 3 mil pessoas, o prejuízo material foi enorme, e tudo
isto foi obra de um atentado feito com enorme frieza e desprezo pela vida
humana.
Sete anos depois, um atentado de proporções muito maiores, inimagináveis,
foi cometido. Em vítimas fatais deve ter feito um número equivalente; quanto ao
prejuízo material, foi milhares de vezes maior.
No atentado das Torres, algumas centenas de empresas tiveram um forte
abalo. No de 2008, bilhões de pessoas foram (e ainda estão sendo) sacrificadas.
O “atentado” de 2008 foi a queda de dominós provocada por
especulações financeiras de Wall Street e arredores. A coisa explodiu em 2008, mas
os “aviões” já vinham nessa direção há muito tempo. Muita gente alertou, mas o enriquecimento
brutal de alguns milhares de financistas e executivos funcionou como uma
espécie de droga. Estava todo mundo bêbado de dinheiro, todo mundo cheirado de
dinheiro. Dinheiro é a mais viciante das
drogas. Quando veio a rebordosa, milhões de norte-americanos perderam suas
casas, seus empregos, suas economias da vida toda. Se a gente juntar os suicídios, os enfartes,
as mortes por causa da brusca penúria financeira de quem perdeu a poupança de
toda a vida, dá mais vítimas do que a queda das Torres.
O filme Trabalho Interno (Inside Job, 2010) de Charles
Ferguson é um documentário com entrevistas com os envolvidos (claro que nem
todos aceitaram falar) e explicações simples de economia que até um leigo
absoluto como eu entende por alto. O que aconteceu, basicamente, foi que o
governo deixou aos poucos de regular as atividades financeiras e permitiu
operações de alto risco,que enriqueciam os primeiros operadores e deixavam a
conta para ser paga por quem viesse depois. É o famoso golpe da “pirâmide” (ou
“Ponzi scheme” como se diz em inglês) que no Brasil se conhece tão bem.
quinta-feira, 13 de setembro de 2012
2975) "Godard: The Game" (13.9.2012)
"É irônico que um dos videogames mais populares de 2031 se baseie, ao
invés de numa HQ de super-heróis, na obra de um diretor tido como um dos mais
herméticos e de menor índice de entretenimento do século 20.
"Explica-se pelo fato de que Jean-Luc Godard,
que em seus filmes cultivava uma intenção fanática de não emocionar o público,
baseava-se quase sempre num tipo de literatura que visava o contrário. Pode-se assim dizer (como grande parte da
“intelligentzia” tem se queixado) que o game é infiel ao espírito de Godard;
mas a verdade é que ao lançar mão de suas fontes de inspiração (o romance e o
filme “noir” americanos, as histórias em quadrinhos, a cultura de massas, etc.)
os produtores e game designers da Omegaville Inc. produziram um dos mais
excitantes conjuntos de aventuras dos últimos tempos.
"Aqui, os godardmaníacos encontrarão inúmeras narrativas entrecruzadas,
numa webwork hábil e que felizmente não se sente obrigada a dar muitas
explicações.
"O jogador que perseguir a
trama policial de Made in USA pode se envolver a qualquer instante no
thriller político de O Pequeno Soldado, e sair deste para um ambiente de
guerra de Les Carabiniers. Nana, a
prostituta de Viver a Vida, é inteligentemente utilizada como ponte por onde
o jogador passa de uma para outra das histórias parisienses: a aventura
criminal de Acossado, os pequenos delitos de Bande à part, as conspirações
subversivas de A Chinesa, as intrigas amorosas de Masculino Feminino, Uma
mulher é uma mulher, etc.
"A lamentar apenas a ausência de uma trama de
FC: os direitos de Alphaville foram comprados por outra empresa e deverão
resultar num game independente. Mas
Lemmy Caution, personagem daquele filme, é uma figura onipresente, com sua
imagem de avatar frankmilleriano.
"Só
resta avisar ao jogador que quando os desfechos de todas as tramas se
entrelaçam e elas começam a colapsar uma a uma, entramos no universo de O
desprezo, o universo de um filme (no caso, um videogame) que está sendo feito,
e todos os mistérios se esclarecem nessa nova situação.
"Um final metalinguístico (que não é nem um
pouco prejudicado por essa revelação) bem à altura do diretor que fez do cinema
o tema principal de seus filmes. Aqui, o game é o tema principal do game, e o
jogador sabe disto desde os primeiros movimentos. Cotação: 5 estrelas."
quarta-feira, 12 de setembro de 2012
2974) Paralímpico? (12.9.2012)
Não
sou a única pessoa que se surpreendeu ao ser avisado, pela TV, que os Jogos
Paraolímpicos chamam-se agora Jogos Paralímpicos. Não vi a menor razão para
isso, porque mesmo que fosse necessário eliminar uma dessas vogais do meio da
palavra (“...ao...”) o resultado, ao meu ver, deveria ser algo como
“parolímpico”. Por que? Porque olímpico vem de Olimpíadas, palavra
que por sua vez vem de Olimpo, o monte Olimpo da Grécia, onde viviam
virtualmente os deuses antigos. Pra mim não faz o menor sentido mutilar a raiz
da palavra amputando esse “O” inicial. Se alguma vogal tem que cair, que caia a
do prefixo, ora. Não dizemos “hidrelétrico”?
O
saite oficial do Comitê Paralímpico Internacional diz apenas: “A palavra
paralímpico deriva da preposição grega ‘para’ (= ao lado de, ou ao longo de) e
a palavra ‘Olímpico’. Seu significado é que os Jogos Paralímpicos são jogos
paralelos às Olimpíadas, e ilustram como os dois movimentos existem lado a
lado”. Ninguém me explicou até hoje por
que motivo os ingleses derrubaram o “O” olímpico, e espero que haja uma boa
razão linguística e morfológica para esse absurdo, porque sentido aparente não há
nenhum. (Talvez quisessem evitar a semelhança com “parole”, liberdade
condicional?...)
O
professor Pasquale Cipro Neto veio ao meu socorro em sua coluna (intitulada
“Paralímpico: haja bobagem e submissão”) na Folha de SP (http://bit.ly/RnCAwl), que cito a seguir:
“A
formação de ‘paraolímpico’ é semelhante à de termos como ‘gastroenterologista’,
‘gastroenterite’, ‘hidroelétrico/a’, ‘socioeconômico’, das quais existem formas
variantes, em que se suprime a vogal/fonema final do primeiro elemento (mas
nunca a vogal/fonema inicial do segundo elemento): ‘gastrenterologia’, ‘gastrenterite’,
‘hidrelétrico/a’, ‘socieconômico’. O uso não registra preferência por um
determinado tipo de processo: se tomarmos a dupla ‘hidroelétrico/hidrelétrico’,
por exemplo, veremos que a mais usada sem dúvida é a segunda; se tomarmos ‘socioeconômico/socieconômico’,
veremos que a vitória é da primeira. O fato é que em português poderíamos
perfeitamente ter também a forma ‘parolímpico’, mas nunca ‘paralímpico’, que,
pelo jeito, não passa de macaquice, explicitação do invencível complexo de
vira-lata (como dizia o grande Nélson Rodrigues)”.
terça-feira, 11 de setembro de 2012
2973) Roberto Silva (11.9.2012)
“Hoje não tem ensaio na Escola de Samba... / O morro está
triste e o pandeiro calado”. A manhã de domingo trouxe a notícia temida há
muito tempo: a morte de Roberto Silva, o maior sambista brasileiro. Tinha 92
anos, e meses atrás eu lera que estava muito doente. Soube agora que tinha câncer de
próstata. Os sambas de Roberto Silva
marcaram minha infância e adolescência, porque foi durante os anos 1950-60 que
ele lançou sua coleção de quatro LPs Descendo o Morro, cujas canções tocaram
nas rádios do Brasil inteiro. Veio a Jovem Guarda, veio o Tropicalismo, o
Rock-BR, e Roberto desapareceu. Ressurgiu com força total aos 80 anos, e foi num
artigo de Ruy Castro que fiquei sabendo do relançamento em CD da série
Descendo o Morro, um CD duplo que traz todos os quatro discos.
Maior sambista brasileiro?
Que história é essa? E Paulinho da Viola, Martinho da Vila, etc.? Bem, em primeiro lugar Roberto corre noutra
raia, porque é mais cantor do que compositor, é do tempo do cantor intérprete,
que grava as composições alheias. Em segundo lugar, se você fizer uma enquete
com todos os candidatos a maior sambista brasileiro e tocar no nome “Roberto
Silva”, o mais provável é que todos eles ponham um joelho em terra e peçam-lhe
a bênção. Ele foi um artista fundador de um estilo, com sua voz grave,
encorpada, expressiva, capaz de sutilezas de ironia ou de romance; uma espécie
de Orlando Silva com gingado de malandro e repertório de morro.
Tive a alegria de vê-lo ao vivo no Cine Odeon, na Cinelândia,
num histórico show de samba em que ele subia ao palco acompanhado de uns 20
músicos para cantar seus grandes sucessos como “Amanhã eu volto”, “Ai que
saudade da Amélia”, “Emília”, “Errei, erramos”, “Falsa baiana”, “Agora é cinza”
e por aí vai. Como todos os cantores de
sua época, gravou diversos estilos, incluindo bolero e samba-canção. Uma das
minhas preferidas é “Jornal da Morte”, que comentei nesta coluna no ano passado
(http://bit.ly/RA39i1).
domingo, 9 de setembro de 2012
2972) Os precogs de Dick (9.9.2012)
(Philip K. Dick)
Em Realidades Adaptadas, coletânea de contos de Philip K.
Dick (Ed. Aleph, 2012), aparecem alguns contos do princípio da década de 1950
em que Dick começou a fazer experiências com os personagens a que viria a
chamar de “precogs”, pessoas dotadas de precognição, a capacidade de adivinhar
o futuro. A palavra “adivinhar”, neste caso, é um barbarismo, e a usei apenas
para denunciar o quanto os maus hábitos verbais prejudicam nossa capacidade de
entender as coisas. Adivinhar é pensar numa coisa de maneira meio aleatória,
sem justificativa, sem nenhum esforço especial, e aquilo depois se revela
verdadeiro. Não é isso que acontece com os precogs de Dick. O conto “Relatório
Minoritário” (que deu origem ao filme Minority Report, de Spielberg) ajudou
muito a popularizar esse conceito. Os
precogs são capazes de antever os diversos futuros possíveis a partir de um
determinado momento; enquanto certos atos não são praticados, vários resultados
podem coexistir. O presente, para eles,
é como um dado rolando, só que eles conseguem perceber que há mais fatores
induzindo que dê, por exemplo, o 2 e o 5 do que o 4 ou o 3 – e essas condições
mudam sem parar, a cada minuto que passa.
O que acontece, segundo Dick, é que esses futuros possíveis
são instáveis. A melhor comparação com isso, na vida real, é a cobrança de um
pênalti no futebol. Quando o jogador parte para a bola, várias coisas podem
acontecer, na verdade estão a “um tantinho assim” de acontecer, mas estão
sujeitas a micro-decisões que o chutador e o goleiro tomarão nos segundos
finais. No conto de Dick, os três
precogs que trabalham para a polícia preveem os crimes antes que eles sejam
cometidos, mas nunca há 100% de certeza de que o crime acontecerá, como no
pênalti não se tem certeza de que o gol acontecerá. Daí que a visão de cada
“precog” dê origem a um relatório sobre esse crime possível, e quando dois
desses relatórios (a maioria) coincidem, a polícia entra em ação para fazer com
que o crime não aconteça. A trama do conto de Dick é baseada na existência do terceiro,
o “relatório minoritário”, que ele usa para tornar o enredo mais surpreendente,
cheio de reviravoltas.
sábado, 8 de setembro de 2012
2971) O tradutor e o estilo (8.9.2012)
(Sarolta Ban)
Uma
obra literária consta basicamente de enredo e estilo. A história que é contada
e as palavras escolhidas para contar essa história. (Sim, sei que tem muito
mais coisas, mas bora em frente.) Tem gente boa de enredo e que escreve apenas
mais-ou-menos, e tem gente que escreve super bem mas só imagina histórias
banais. A grande e a pequena literatura estão cheias de exemplos.
Essa
divisão de tarefas mentais explica, parcialmente, a existência de grandes
tradutores. Tem gente que diz que o tradutor é um escritor frustrado. Não vejo bem assim. Há mil influências
pessoais e variáveis de vida que conduzem um indivíduo a essa profissão quase
mediúnica, mas eu diria que muitos tradutores são pessoas que são refinadas em
estilo mas não têm (ou não tentam ter) capacidade fabulatória, capacidade para
inventar histórias, imaginar personagens a partir do zero, produzir peripécias.
Escritores assim muitas vezes tornam-se tradutores, porque na tradução é
proibido mexer no enredo, mas é preciso saber reproduzir inúmeros estilos.
O
que é traduzir? É escrever um livro que
já está escrito, só que escrevê-lo em português. O livro está lá, prontinho da
silva, em russo, alemão ou espanhol. O
tradutor não pode cortar cenas nem adicionar cenas. Não pode mudar o desfecho. Não pode reduzir
uma descrição demasiado longa, mesmo que não goste dela. Não pode alterar um
diálogo. Por outro lado, toda essa lista do “não pode” pode ser revertida,
positivamente, para um “não precisa”: ele não precisa fazer nada disso, porque
já está feito, o autor russo ou alemão já se deu o trabalho de arrancar tudo a
fórceps do próprio cérebro, e entregou a história finalizada para que ele, o
tradutor, faça o que mais gosta: tecer sua prosa como uma aranha tece sua teia. E acreditem, amigos, existem poucos prazeres
superiores ao de tecer mentalmente uma frase inteira e colocá-la no papel antes
que o vento (ou a campainha do telefone) a leve embora.
sexta-feira, 7 de setembro de 2012
2970) Anedota búlgara (7.9.2012)
(Drummond jovem)
Faz muito
tempo que os czares saíram da paisagem política do mundo, e periga uma boa
parte dos jovens de hoje não terem a menor idéia do que significa essa palavra.
Ela deriva, aliás, do título de “César” que os imperadores romanos passaram a
se atribuir em homenagem a Julio César; o termo gerou “Czar” em russo e
“Kaiser” em alemão. Mas no tempo em que Carlos Drummond publicou seu primeiro
livro, Alguma Poesia, ou seja, em 1930, os czares tinham desaparecido há bem
pouco tempo, mais precisamente em 1917, quando a Revolução Russa não apenas os arrancou
do poder mas fuzilou sumariamente a família inteira, crianças inclusive. Os
czares foram no século 19 um símbolo da sofisticação e da gastança desbragada
de todos os potentados. O Museu Hermitage, em São Petersburgo, é um resíduo da
riqueza cultural patrocinada pelos czares, cujos equivalentes no mundo de hoje
seriam os xeiques de Dubai e seus palácios de mil-e-uma-noites high-tech.
Em todo caso, Drummond não se referia aos czares da Rússia,
mas aos da Bulgária, em seu poema “Anedota Búlgara”, que diz: “Era uma vez um
czar naturalista que caçava homens. / Quando lhe disseram que também se caçam
borboletas e andorinhas, / ficou muito espantado / e achou uma barbaridade”. A
Bulgária teve seus próprios czares até 1943, quando morreu o último deles,
Bóris III, que era apenas oito anos mais velho do que o próprio Drummond. Não
deve ser ele o personagem do poema, pois consta que era um bom sujeito, tendo
inclusive peitado Hitler durante a II Guerra e se recusado a permitir a
extradição de judeus.
quinta-feira, 6 de setembro de 2012
2969) A arte do photoshop (6.9.2012)
O
termo “photoshop” virou hoje em dia sinônimo de alteração, interferência ou
falsificação de uma imagem. A técnica digital fez com que até um desocupado e
leigo como eu seja capaz de pegar uma foto e apagar a presença de uma pessoa,
coisa que antigamente só o Departamento de Propaganda do Kremlin era capaz de
fazer. Engana-se quem pensa que isso surgiu com a imagem digital. No tempo do
negativo em celulóide e da cópia em papel havia mil técnicas para interferir na
imagem, como aliás o Kremlin (e o Pentágono) faziam a dar com o pau. Claro que
nem sempre isso era feito por manipulações maquiavélicas. Os fotógrafos antigos
interferiam na imagem, em geral, para obter efeitos estéticos mais
interessantes, ou até (vejam só a ironia!) para produzir imagens mais parecidas
com a realidade (ou com o modo como a realidade é vista a olho nu). Os
negativos antigos, por exemplo, reagiam de forma desigual à luminosidade do céu
e à luz refletida na paisagem, de modo que era hábito, cem anos atrás, tirar
duas fotos do mesmo ângulo, com medições de luz diferentes, e depois recortar e
colar o céu de uma e a paisagem de outra.
A
interferência na imagem, portanto, pode ter como objetivo produzir: 1) imagens
mais realistas; 2) imagens fantásticas ou impossíveis; 3) imagens esteticamente
mais interessantes onde o realismo fica em segundo plano (as fotos do
Instagram, hoje em dia, produzem coloridos fantásticos que nossos olhos não
veem); 4) imagens que sutilmente querem se fazer passar por autênticas, sem dar
a perceber que foram manipuladas (o efeito Kremlin-Pentágono).
O
museu Metropolitan (Nova York) vai inaugurar em outubro uma exposição intitulada
“Falsificando: a Fotografia Manipulada Antes do Photoshop” (ver: http://bit.ly/KHaYSc), com mais de 200 amostras
produzidas entre as décadas de 1840 e 1990. São exibidas diversas técnicas de
manipulação: múltipla exposição (várias imagens num só negativo), imagens
combinadas (colagem de partes de diferentes negativos), fotomontagem, pintura e
retoque tanto de negativos quanto de cópias em papel.
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