sexta-feira, 7 de março de 2025

5159) Nós, os Imperfeccionistas (7.3.2025)



 
Fui inoculado muito cedo com o vírus do perfeccionismo (herdado do meu pai). Tanto que da adolescência em diante iniciei uma auto-cura libertária. 
 
Quem me ajudou muito foi outro colega de doença, Guimarães Rosa, rasurador emérito, corrigidor incansável. 
 
O Narrador do conto “São Marcos” (Sagarana, 1956) é uma espécie de grafiteiro avant la lettre, à frente do seu tempo. Quando faz suas caminhadas no mato, ele rabisca coisas nos bambus que vicejam à beira de um rio. Descobre que outra pessoa (que ele batiza de “Quem-Será”) faz o mesmo. 



("São Marcos", ilustração de Poty) 

 
Os dois começam uma espécie de desafio. Cada vez que um avista um rabisco do outro, escreve uma “resposta” embaixo. É um dos episódios mais divertidos do conto, que tem vários. O problema é que o Narrador começa a se espinhar de dúvidas, de hesitações, acha que está perdendo terreno para o outro. E rabisca, num impulso de impaciência: 
 
Ou a perfeição, ou a pândega!
 
Esta fórmula brincalhona me tirou um Himalaia das costas. Dali em diante, toda vez que a Perfeição se revelava inatingível eu resvalava para a farsa, o gracejo, a bagunça, a desafinação no coro, o atrapalho no trabalho. Dane-se a Perfeição. 
 
Não estou defendendo o desleixo preguiçoso, o descuido negligente, o malfeitismo, o labacé dos incompetentes. Quero dizer apenas que a Perfeição não existe, é uma ilusão conceitual, assim como o horizonte é uma ilusão de ótica. Os dois são úteis para medir e avaliar o ponto em que estamos, ou em que rumo estamos indo. Mas como objetivo, ao pé da letra, a Perfeição e o Horizonte não precisam ser levados muito a sério. 
 
Sempre que me envolvi com algum trabalho relativo a música ou teatro, procurei defender a idéia de que a Expressão é mais importante do que a Perfeição. Atores e músicos que buscam essa miragem da perfeição vão ficando cada vez mais inexpressivos quanto mais pensam estar se aproximando dela. 
 
-- Quer dizer então que não existe obra de arte perfeita? 
 
-- Se existir, é uma estátua de mármore, grega, de mil anos atrás. Uma banda brasileira tocando em cima de um palco, diante de gente de verdade, não precisa disso, precisa de Expressão. 




Por que? Talvez porque na nossa cabeça “perfeição” é ausência de erros. As pessoas ficam se preocupando em não errar, e quando você se preocupa acima-de-tudo em não errar, acaba se robotizando, se apequenando, se tolhendo cada vez mais. E eu digo: Erre à vontade, mas acerte mais ainda. 
 
A Arte – principalmente a que se pratica num palco, diante de gente – não pode temer os pequenos erros, senão não consegue nunca os grandes acertos. 
 
Não pode ser feita com uma mentalidade de futebol, onde 1x0 é uma vitória satisfatória, desde que o “zero erro” esteja garantido. 
 
Tem que ser como um jogo de basquete, placar de 120 x 85, e pronto. Ninguém no basquetebol pensa em ganhar “de zero”. Pensa apenas em tentar acertar, tentar, tentar, o tempo todo. 



(Stanley Kubrick)

 
A indústria cultural e o mundo das artes cultivam o mito do artista obsessivo, perfeccionista, exigente. Alguém que cobra de cada pessoa o máximo-do-máximo, o que quer atingir patamares impensáveis de qualidade, brilhantismo, impecabilidade técnica, perfeição. 
 
O Cinema é um universo onde o perfeccionismo é supervalorizado. O cinema industrial, fortemente competitivo, precisa jogar seus produtos no mercado sob uma chuva de hipérboles. “O melhor filme”, “feito com o maior elenco”, “dirigido pelo cineasta mais exigente do mundo”. 
 
Li recentemente sobre um diretor contemporâneo que examinou e recusou 70 modelos de sapatos a serem usados por um ator coadjuvante, e só se deu por satisfeito com o 71º. par. O que significa isto? Ânsia de perfeição? Para mim, é neurose e incapacidade de decidir. Mas a crítica vê isso como a qualidade de um artista “com um nível de exigência superior ao dos simples mortais”. 



(Clint Eastwood)

 
Clint Eastwood, com mais de 90 anos, dirige uma média de um filme por ano. Dá instruções, a equipe monta o set, ele faz alguns poucos takes de cada cena. Na montagem, examina os takes e  explica ao montador o que pretende; depois, vai jogar golfe. No fim da tarde, volta lá e o montador mostra o que fez. Ele faz pequenas correções, e pronto. 
 
Há diretores que passam um dia inteiro para cortar um fotograma, e depois outro dia inteiro para colocá-lo de volta. Isto é a busca da Perfeição? Para mim, é sinal de excesso de escrúpulos, como o daquelas pessoas que lavam as mãos 200 vezes por dia com medo de micróbios. 
 
Gosto dos Imperfeccionistas, cineastas a quem não incomoda muito uma imagem levemente desfocada, uma câmera tremida, um leve vacilo do ator, desde que o resto esteja ótimo.  O público não percebe. Quem se preocupa com isso é o espectador chato, que vai ao cinema com cadernetinha para anotar erros de continuidade, ou anacronismos (“O filme se passa em 1952, mas esse modelo de camionete só foi lançado em 1953...”). 
 
Os Perfeccionistas acabam sempre superados com o passar do tempo, pois a técnica não pára de evoluir, e os filmes deles, 20 ou 30 anos depois, estarão cheios de “defeitos novos”, defeitos que não existiam na época em que os filmes foram feitos, mas que o público de 2055 irá perceber como defeitos, insuficiências. 
 
Já os Imperfeccionistas, que não esquentam a cabeça com as “coisinhas que poderiam ter sido melhoradas”, têm a seu favor o trunfo da verdade. Se o seu filme é verdadeiro, se tem vigor narrativo, se tem presença humana, se cria na tela um mundo acreditável com revelações aceitáveis, ninguém vai ligar para a parede-de-compensado que balança ou para a luz que piscou. 




(Glauber Rocha)

 
 
 
 
 
 















terça-feira, 4 de março de 2025

5158) Dylan: um completo desconhecido (4.3.2025)

 


Bob Dylan chegou ao Greenwich Village em 1961 como “um completo desconhecido”. Para ser mais preciso, chegou lá em dezembro de 1960, mas 1961 foi o ano em que ele, dormindo numa longa fileira de sofás numa longa fileira de apartamentos de novos amigos, começou a preparar o começo de sua carreira musical. 
 
Não poderia haver momento melhor. Em 1952, tinha sido publicada a Anthology of American Folk Music, editada por Harry Smith, um cineasta underground excêntrico, obsessivo, que, entre outras preciosidades, tinha uma coleção de 10 mil discos em 78 rotações. Desse acervo Smith selecionou 84 faixas para a Antologia: canções rurais, blues, números instrumentais, velhas baladas irlandesas e escocesas, música gravadas obscuramente por artistas que àquela altura já haviam sumido do mapa por completo. 

 
Em Nova York já havia, e muito forte, no pós-guerra, um movimento de jovens cantores e compositores resgatando a canção popular norte-americana, fugindo aos lugares comuns da música fonográfica da época, às músicas de sucesso das big bands e dos crooners, bem como das cançonetas pop que tocavam no rádio. A “Antologia” trouxe uma material colhido na fonte e ajudou a municiar esses aristas, que por um lado se engajavam nos protestos pelos Direitos Civis, e por outro reproduziam à sua maneira, no Village, o estilo de vida dos boêmios existencialistas franceses em Saint Germain des Près ou Montmartre. 




Dylan chegou nesse ambiente já com algumas canções prontas, entre elas a “Canção para Woody”, uma homenagem aos artistas obscuros da América profunda, agora tornados os novos ídolos dos jovens cantores novaiorquinos: 
 
Esta canção é para você, para Sonny, para Leadbelly,
e todo o pessoal que viajou ao seu lado.
Um brinde aos corações e às mãos desses homens
que chegam com a poeira e vão embora com o vento. 
 
Esta é a primeira canção que Timothée Chalamet canta no filme A Complete Unknown quando chega a um hospital para visitar seu ídolo Woody Guthrie. Já em seus últimos anos de vida, Guthrie era o grande nome dessa canção voz-e-violão que fazia a ponte entre a população rural, um planeta tão remoto, e essa Nova York com fumaças de locomotiva do mundo. 
 
Um pouco da juventude e das canções de Guthrie está no filme de Hal Ashby Esta Terra é Minha Terra (“Bound for Glory”, 1976), onde o poeta andarilho é interpretado por David Carradine. 



O filme de James Mangold passa a acompanhar o jovem Dylan na trajetória que ele cumpriu dali até 1965: três discos de canções folk em que (como disse um crítico na época) ouvia-se um rapaz de pouco mais de 20 anos cantando com a voz roufenha e os versos apocalípticos de um velho de 60. Depois, um álbum mais intimista, Another Side of Bob Dylan (1964), com 11 faixas gravadas todas no dia 9 de junho de 1964: voz, violão e gaita. 
 
Começa nesse período a transição que enfureceu os puristas da época, quando Dylan, recém-coroado como o novo Príncipe da Música Folk ou coisa parecida, exaltado pelos jovens militantes de esquerda, autor de canções já clássicas como “Blowin’ in the Wind”, “The Times They Are a-Changing” e “A Hard Rain’s a-Gonna Fall”, fez-se acompanhar de uma banda de rock, aderiu à guitarra elétrica, e mergulhou de cabeça numa produção espantosa de letras satíricas, surreais, sem nenhuma mensagem social explícita. E isto provocou um verdadeiro terremoto na música folk que o acolhera quando ele chegou lá como “um completo desconhecido”. 
 
Este é um resumo do filme, que sofre com a superficialidade e a compressão de toda cine-biografia (e até de biografias em livros de 700 páginas) quando é preciso descrever e reproduzir um complexo ambiente cultural e as discussões que fervilham dentro dele – e fazer isso em poucos minutos, sem muita teorização ou discursos explicativos, e tendo em mente que a grande maioria do público conhece aqueles fatos por alto (quando muito) e está mais interessada no toma-lá-dá-cá das relações humanas (“com qual das duas namoradas ele vai ficar”, “a qual dos amigos ele vai ceder?”) do que nos retratos de época. 
 
De minha parte, gostei bastante das cenas do Festival de Newport (onde Dylan, em anos sucessivos, tinha se tornado a grande surpresa e a grande atração), inclusive a explosiva apresentação final, quando ele foi vaiado ao se apresentar com guitarras elétricas. 
 
Tudo um resumo apressado, é claro. Para reproduzir a complexidade de conflitos emotivos, políticos, sentimentais, mercadológicos e simbólicos envolvidos num Festival como aquele, era preciso que o filme inteiro fosse dedicado a ele. 


 (Bob Dylan e Pete Seeger, em Newport)


(Edward Norton e Timothée Chalamet)

 
Pete Seeger, numa ótima interpretação de Edward Norton, era um sofrido árbitro nesse conflito, pela amizade paternal com Dylan e pela fidelidade para com a folk music tradicional. Falou-se muito, depois do episódio, que Seeger teria ficado tão furioso com a presença das guitarras elétricas que foi buscar um machado para cortar os cabos da aparelhagem de som. 
 
Mais recentemente, divulgou-se na Internet uma carta que ele teria escrito a Dylan depois, esclarecendo o incidente e desculpando-se. 
 
Bob! Alguém me disse que você também acha que eu não gostei do fato de você usar guitarra elétrica em 1965. Já desmenti isto muitas vezes. Eu estava furioso era com o som distorcido – ninguém conseguia escutar os versos de “Maggie’s Farm” – e corri para a mesa de som que controlava o PA. Eles disseram: “Está do jeito que eles pediram”. Eu gritei: “Pois se eu tivesse um machado, eu cortava esse cabo!”, e acho que foi essa frase que ficaram citando. Meu maior erro foi não ter subido ao palco para confrontar os que vaiavam você. Eu devia ter dito: “Howlin’ Wolf usa guitarra elétrica, por que Bob não pode usar?” Em todo caso, vida que segue. Abração. Pete. 
(trad. BT)
 
A versão “se eu tivesse um machado” é bem plausível – afinal, Seeger é o autor de “If I Had a Hammer”, que minha geração conheceu na voz de Rita Pavone como “Datemi un Martello”.
 
O filme A Complete Unknown tem limitações inevitáveis, mas serve, principalmente para o público jovem, como um flash de um tempo pré-digital, pré-internet, pré-celular, pré-tudo, um tempo em que sucesso artístico e sucesso comercial criavam seus caminhos de uma maneira que a cada década vai ficando menos óbvia e menos eficaz.
 
A reconstituição visual de época é uma das melhores coisas do filme, juntamente com a performance de Timothée Chalamet, que ensaiou (dizem) cinco anos para fazer esse papel. É um ator jovem, energético, que merece atenção; mas é principalmente como cantor que ele se destaca. Não é fácil cantar o repertório de Dylan, em que o fraseado é único, os cortes para respiração são imprevisíveis, e o canto vale menos pela afinação musical das notas do que na ênfase poderosa que Dylan impõe nos seus versos.


 

Chalamet consegue a proeza de cantar parecido com Dylan sem imitar a voz rouca e nasal de Dylan. Não é pouco. Nas cenas de palco e de canto, o ator cresce, perde o ar de menino mimado, chama para si um pouco do magnetismo que tinha a presença física de Dylan nesse período.
 
Nesta segunda-feira, 3 de março, fiz uma “live” para o Encontro da Nova Consciência, de Campina Grande, com o título “A Verdadeira História de Bob Dylan”. Um papo ao vivo em que desenvolvi mais longamente os temas acima, e que pode ser acessado no YouTube por aqui:
 
https://www.youtube.com/watch?v=500oHQNzRi4&t=2040s