Está em cartaz por aí o filme Não, Não Olhe (“Nope”, 2022) de Jordan Peele, uma mistura de horror
e ficção científica, do mesmo diretor do ótimo Corra! (“Get Out”, 2017).
Corra! é aquela
história do rapaz negro que começa a namorar uma garota branca. Ela é rica, linda,
e parece muito apaixonada por ele. Convida-o então para aquele momento mais temível na
carreira de um namorado: um fim de semana na casa dos pais dela, “para que
vocês se conheçam melhor...” O rapaz
preferiria, talvez, ser esfolado vivo por lagostas gigantes, mas a garota é tão
legal e tão bonitinha que ele vai.
Não vou me deter nesse filme aí, basta dizer que as
lagostas teriam sido preferíveis.
O ótimo ator Daniel Kaluuya volta neste filme. Ele é “O.
J.”, e faz parte de uma família de adestradores de cavalos. O pai morreu em
circunstâncias charles-forteanas: uma moeda caiu do céu e perfurou-lhe o
crânio. Esse fato inicial dá o tom do filme. Coisas improváveis acontecem. E
não são improváveis na vida real, que derrapa no bizarro o tempo todo. São
improváveis no cinema de Hollywood, a mais invulnerável das bolhas narrativas.
No rancho que “O.J.” mora, com sua irmã Emerald (Keke Palmer), os
cavalos começam a desaparecer. O mesmo parece estar acontecendo no rancho
vizinho, onde são encenados espetáculos ao vivo de cowboys. O. J. e Emerald
chegam à conclusão de que se trata de um OVNI que abduz os cavalos, e pedem auxílio
a alguns malucos. Para destruir o OVNI e salvar a Humanidade? Não, apenas isto:
filmá-lo e vender as imagens por uma grana interplanetária.
O filme tem um orçamento até respeitável (custou 68
milhões e rendeu o dobro, até agora), mas é um filme “B” em muitos sentidos,
mas principalmente no fato de ligar um foda-se para as convenções de sucesso.
Procurarei não dar muitos spoilers, afinal o filme mal
estreou. Prefiro falar sobre alguns temas que correm ao longo dele.
O filme tem um conceito interessante sobre os alienígenas.
Começa com um mero disco voador, bem convencional, sendo avistado nos céus, mas
evolui depois para uma forma orgânica e bem realizada, que em certos momentos
lembra os seres submarinos de O Segredo
do Abismo (1989) de James Cameron.
E tem um precedente ilustre: o conto de Conan Doyle, “O
Horror nas Alturas” (“The Horror of the Heights”, 1922, em Tales of Terror and Mystery), onde ele postula a existência de
monstros aéreos, gelatinosos e meio transparentes, que esvoaçam quase
invisíveis nas camadas mais elevadas da atmosfera. O conto é das primeiras
décadas da aviação, e Doyle, bom escritor de ficção científica, rapidamente se
volta para esses novos campos inexplorados.
Um explorador pode descer em nosso planeta mil vezes seguidas e nunca
avistar com um tigre. E contudo os tigres existem, e se ele se deparar com um
deles na selva, pode ser devorado. Existem selvas na atmosfera superior, e elas
são habitadas por criaturas piores que os tigres.
(Daniel Kaluuya, em "Corra!")
O racismo era o tema principal
do filme Corra!, onde um rapaz negro,
ao ser atraído para dentro de uma família de brancos, descobre que eles querem
destruí-lo e metaforicamente “devorá-lo”. Ele reage com violência e consegue se
safar, mediante uma verdadeira carnificina. Em Nope, o mesmo ator (Daniel Kaluuya) é ameaçado pela criatura
alienígena, que tenta devorá-lo fisicamente; ele e seus amigos reagem com
violência contra a criatura.
No primeiro filme, o tema
racial está claramente colocado, o tempo inteiro. Em Nope, não: é como se os personagens fossem “pessoas”, apenas, pois
o alienígena está à apenas procura de criaturas vivas – ele mostra aliás uma
certa preferência pela carne dos cavalos. O monstro não distingue raças; aos
olhos dele, somos todos iguais. Os negros (O. J. e Emerald) estão ali
representando a raça humana.
Falei acima que é um “filme B”,
e é preciso qualificar isto um pouco. No tempo em que os cinemas dos EUA tinham
programação dupla, o filme “A” era aquele em cujo sucesso se apostava mais; o
“B” era o contrapeso, o complemento da programação.
Nem sempre o filme “A” era o
mais caro e o “B” mais barato. Era um pouco como o Lado A e o Lado B dos discos
“compactos”, que traziam uma canção de cada lado. Nos discos, apostava-se no
sucesso do Lado A e no Lado B colocava-se uma canção menor, guardando as
melhores para o Lado A de novo disco a ser lançado no mês que vem.
Daí surgiu essa idéia – que me
atrai – de que filme B, por esse conceito, é o filme que não se propõe a ser um
enorme sucesso, que quer apenas se pagar e encaminhar o próximo. O filme A é
aquele onde se espera ganhar bastante dinheiro, então se gasta mais grana; e já
que se gasta mais grana a necessidade de retorno vai aumentando, em efeito
cascata.
Expectativa de sucesso é uma
desgraça, no cinema de Hollywood. Significa que todos os executivos num raio de
quilômetros vão querer assistir as primeiras versões do filme pré-editado e dar
palpite: “Muda a trilha sonora... Corta vinte minutos... Tira essa atriz e
refilma as cenas dela... Bota uns números musicais pra alegrar...” É o verdadeiro horror nas alturas.
Não, Não Olhe tem algo de Bacurau
(Kleber Mendonça e Juliano Dornelles, 2019), em sua ambientação meio desértica,
remota, longe dos centros urbanos, com pessoas de poucos recursos tentando
enfrentar uma ameaça externa que (um detalhe simbólico nos dois filmes) corta
sua eletricidade e sua conexão, ou seja, começa por eliminar “virtualmente” as
pessoas. Depois disso, elas se tornam apenas “carne viva” em fuga, tentando se
esconder. Ou reagir.
Tem algo também de Repo Man (Alex Cox, 1984), com a
presença de um alienígena misterioso fazendo estragos e da reação meio desorientada
de um grupo de pessoas comuns. Os protagonistas não são os cientistas atômicos
e os generais do Exército de tantos “filmes de monstros da FC”. São gente
comum, jovem, que ouve rock, que tem algum conhecimento prático de tecnologia e
algumas noções meio fantasiosas sobre vida extraterrestre, uma mistura de
cultura de almanaque com teoria da conspiração.
O filme é sobre isso, não é uma
simples exibição de efeitos especiais (que aliás são bastante razoáveis). A
todo instante aparecem algumas situações bizarras que são típicas do cinema
autoral, e que no caso de um “Filme A” teriam que ser submetidas as uma
verdadeira bateria de interrogatórios de executivos de estúdio, que são, por
definição, a espécie alienígena mais antropófaga e robotizada.
“O estranho, o bizarro, o
inesperado” – esse era o mantra do seriado Acredite...
Se Quiser, sucesso de muitos anos na TV, inclusive no Brasil. O Believe It Or Not de Robert L. Ripley surgiu nos jornais impressos em
1919, o mesmo ano do clássico The
Book of the Damned de Charles Fort, que explorava este mesmo território.
São idéias fantasiosas, lúdicas, que
não pretendem convencer ninguém, e nesse aspecto essencial diferem das atuais
teorias terraplanistas, sempre evangelizadoras em benefício próprio. A
fascinação pelo que é bizarro e inexplicável nada tem de ciência: é narrativa
em estado puro, narrativa imaginativa popularesca. O caldo nutriente de onde
surgiu a ficção científica de cem anos atrás.