quinta-feira, 29 de março de 2012

2830) “Fellini: The Game” (29.3.2012)



Você acorda num quarto de hotel, veste o terno que tira do armário. Ao se olhar no espelho, vê Marcello Mastroianni. 

A porta se abre. Você começa a ser assediado por produtores cobrando prazos, assistentes de direção em busca de tarefas, atores e atrizes à espera da hora do teste, jornalistas fazendo perguntas equivocadas, e todos insistindo que devem começar a rodar o filme o mais depressa possível, mas que ainda não têm o roteiro. 

Suas tentativas de fazer um filme serão, daí em diante, “O Jogo”. Você tem vários roteiros prontos para filmar: conquistas românticas e duelos de espadas em Casanova, prodígios, combates e superpoderes em Satyricon, nostalgia provinciana em Os Boas Vidas, delírios do cotidiano em Julieta dos Espíritos... 

Fellini: The Game foi ironizado por parte da crítica, ao ser lançado em 2025, como um “Windows Movie Maker para velhinhos”. Errado. Cada título da obra inteira de Fellini está aqui em estado potencial, esperando para ser refeito à maneira do jogador, e sabendo que ninguém conseguirá, mesmo que tente, refilmar o que Fellini filmou. (Assim como o Pierre Menard, de Jorge Luís Borges, dificilmente conseguiria reescrever o Dom Quixote, como pretendia.) 

Tomando como ponto de partida a indecisão criativa do diretor Guido em Oito e Meio, o jogo se transforma na possibilidade de montar 17 quebra-cabeças diferentes, 17 filmes que, de acordo com a inclinação do jogador podem ser minuciosamente reconstituídos ou completamente alterados do começo ao fim. 

É um jogo para quem sente prazer em dirigir uma equipe de cinema, e de fato é emocionante quando, depois de horas explicando tudo e ensaiando, o diretor consegue reconstituir na tela uma versão autêntica da cena do navio em Amarcord ou a melodia das taças de cristal em E la nave va, ou a festa de carnaval em Os Boas Vidas

E é ao mesmo tempo um jogo de personagens femininas de rara complexidade em busca do amor (Cabiria), da paz de espírito (Giulieta dos Espíritos), da sobrevivência num mundo bruto e mouco (Gelsomina de A Estrada) ou da dominação mundial pura e simples (Cidade das Mulheres). Poucos jogos atuais têm feito tanto sucesso no segmento de mulheres de 20 a 45 anos. 

Os videogames surgiram amparados no binômio ação-aventura, modelo que entrou em crise com o esvaziamento do militarismo. Nesta metade do século, a tendência à introspecção é irreversível. Os jogos estão se transformando cada vez mais em aventuras narrativas cujo inexorável realismo gráfico tem em contrapartida uma profundidade psicológica que o cinema do século 20 (hoje tão homenageado) pôde apenas aflorar. Cotação: 5 estrelas.