quarta-feira, 27 de junho de 2012

2907) Um pequeno tesouro (27.6.2012)








Era tia-avó da minha esposa, e morava sozinha num casarão, numa capital nordestina cujo nome não preciso revelar. Quando tive que deixar São Paulo e passar uma semana lá, para trabalhar numa auditoria, minha mulher telefonou-lhe sem me consultar e as duas resolveram que eu me hospedaria na casa dela (a tia aproveitaria para me conhecer e, segundo minha mulher, “dar a nota”). Ficar na casa de uma pessoa de 70 anos não estava nos meus planos. Não que pretendesse cair na farra. Mas depois de um dia duro de trabalho, discutindo, argumentando, a única coisa que me interessa é tomar um banho, e depois dois uísques, sozinho, em silêncio, na beira da piscina do hotel. Mas esposa é esposa, e lá fui eu.

Dona Frederica me surpreendeu, não apenas por aparentar bem menos idade, mas porque na primeira noite em que voltei encontrei-a escutando música diante de uma garrafa de Dimple e um balde de gelo. Sentei ao lado e enveredamos numa longa cadeia de associação de idéias envolvendo boleros cubanos, orquestras tropicais e a arte da dança de salão, que ela me confessou não praticar há vinte anos, desde a morte do marido. Na segunda noite lá estava o Dimple, e desta vez conversamos sobre horóscopo, tipos psicológicos; ela contou “causos” saborosamente escabrosos ocorridos com amigas de juventude. Na terceira noite, Dimple e cinema (ela adorava musicais da Metro).

E assim foi, até que em minha última noite lá ela falou da mãe, e que a mãe lhe deixara um pequeno tesouro. Eu gostaria de vê-lo?... Diante da inevitável resposta, trouxe à sala uma caixinha laqueada, com cheiro de perfume antigo. Abri-a. Dentro era forrada de veludo, e havia uma folha de caderno amarelecida, dobrada, e sobre ela um anel de prata com pedra vermelha. Ela me disse que a mãe lhe dera a caixa ao morrer, sem mais explicações além de “É meu tesouro”. “É valioso?”, perguntei. “Mandei examinar, disseram que é bijuteria”, disse ela; “certamente tinha valor sentimental”. Retirei o papel do fundo da caixa, desdobrei-o. Era uma folha de caderno manuscrita, em tinta esmaecida e caligrafia equilibrada, com algumas poucas correções; o rascunho de um poema, dizendo algo como “No tempo de meu Pae, sob estes galhos...”. Perguntei o que era, ela deu de ombros: “Lembrança de um professor que ela teve, ao que parece. Valor sentimental”. Guardei o presente, devolvi-o, filosofamos um pouco sobre o sentido da palavra tesouro, sobre o sentido da palavra valor. “Veja como são as coisas”, disse ela, “isto aqui não tem valor nenhum, mas eu não venderia nem por mil reais”. Servi as duas últimas doses, brindamos e no outro dia vim embora.