sábado, 30 de abril de 2022

4818) A solidão dos fantasmas (30.4.2022)




Num conto de Karen Blixen, “A ceia em Elsinore” (Seven Gothic Tales, 1934), ambientado na primeira metade dos anos 1800, duas irmãs idosas reencontram o irmão que não viam há muitos anos. Tinham tido a notícia da morte dele em outro continente, e agora é sob a forma de fantasma que ele reaparece às duas. Elas não se assustam; pelo contrário. Sentam-se os três à mesa, e começam a relembrar episódios do passado, versos, cantigas da juventude... Aos poucos, ele restaura diante das irmãs a imagem de “um homem que está à vontade na companhia de outras pessoas”.
 
A certa altura, o fantasma começa a perguntar pelos idosos da família. E tio Fulano, ainda está vivo? E tia Sicrana?... E nesse momento a voz da narradora diz:
 
[Fanny] sentiu-se deprimida nesse instante. Todas aquelas pessoas já tinham morrido; ele deveria estar informado sobre isto. A solidão do seu irmão já morto fez descer uma nuvem sombria sobre seu coração.
 
Existe em nossa cultura a noção um tanto vaga de que os mortos vão todos para um mesmo lugar. Mesmo as pessoas que não acreditam exatamente numa divisão do tipo “céu, inferno e purgatório” imaginam que do lado de lá estão as almas de todos os que já se foram, e que de certo modo elas têm mais mobilidade do que temos nós aqui. Lá, seremos puro espírito. Aqui, somos acima de tudo este corpo pesadão, carente de cuidados, criador de problemas.
 
Não. O susto de Fanny é quando constata que os membros da família De Coninck, quando morrem, não ficam reunidos num feriadão eterno, sob o sol e as sombrinhas do relvado, ou aconchegados diante da lareira em tempos de neve. Cada um dos De Coninck que morre (é isto que depreendemos da leitura), vai para um lugar qualquer, e lá fica só. Talvez seja por isso que quando as irmãs lhe perguntam onde ele está agora, o rapaz responde laconicamente: “No inferno”, e não dê mais detalhes.



(Karen Blixen)
 
Crenças religiosas ocupam um espaço à parte, em relação à literatura, que tem suas próprias regras e seus objetivos. Karen Blixen, ou “Isak Dinesen”, como costumava assinar seus livros, está inventando para seu fantasma um destino que ela não pede emprestado a ninguém além da sua imaginação. E tem tanta liberdade para isto quanto May Sinclair, que num de seus contos faz o protagonista, um filósofo, encontrar-se no Além com Immanuel Kant e ter longas e agradáveis discussões filosóficas com ele. Em literatura, quem manda é o Autor. E a Autora.
 
Seria possível supor (literariamente, mesmo que não religiosamente) que as almas humanas não preexistem ao nascimento. Elas se formam no instante da concepção (ou do nascimento, como o autor preferir). Crescem com a pessoa, sofrem, aprendem, desenvolvem-se, enriquecem junto com a pessoa. E no instante da morte, essas almas separam-se pela primeira vez do corpo que lhes deu vida.
 
Para onde vão? O autor pode supor então que umas poderão se agrupar, segundo algum critério de afinidade. E outras ficarão sozinhas.
 
Talvez tenha sido este o castigo de Morten De Coninck, o filho caçula da família. Belo, inteligente, audaz. Fidalgo que se torna pirata, assassino, um aventureiro de sangue nobre que abandonou a família para se tornar um salteador dos mares, e acabar morrendo na forca, num país tropical do Caribe.
 
Rubem Fonseca, num dos seus livros (não lembro agora qual) narra o episódio do homem que, já com a corda no pescoço e os pés sobre o alçapão do cadafalso, pede ao carrasco que lhe conceda um minuto a mais de vida. O carrasco diz: “Para que?”. Ele responde: “Para que eu possa me lembrar por mais um minuto da Bela Eliza.”  E Fonseca completa dizendo que a Bela Eliza não se trata de uma mulher: era o navio com que o jovem pirata aterrorizou os mares.
 
Foi deste conto de Isak Dinesen que Fonseca extraiu esta citação (que eu me lembre, ele não cita a fonte), e o curioso jogo de ambiguidades que ela encerra. Quando ouvimos o pedido do condenado, pensamos que ele quer se lembrar, por mais um minuto, de alguma das muitas mulheres que amou, mas em seguida descobrimos tratar-se de um barco. Mas as duas irmãs de Morten são Fernande (“Fanny”) e Eliza (“Lizzie”). Ele batizou o barco com o nome da irmã, e há mais de um indício de amor incestuoso entre eles.
 
Talvez não uma paixão, mas aquele narcisismo estético e espiritual dos ricos que se consideram superiores a todo mundo, em beleza, em talentos, em encantos. Após o sumiço de Morten – que larga uma noiva no caminho do altar, e desaparece para sempre – Fanny e Lizzie não se casam, embora sejam disputadas pelos “melhores partidos” da Dinamarca na era napoleônica.


("Elsinore", René Magritte, 1944)
 
Uma velha criada da família, Madame Baeck, pensa que “...não tinham sido capazes de encontrar nenhum homem que fosse digno delas, exceto o irmão”. As belas de Elsinore, diz a narradora, mesmo depois dos trinta anos “podiam usar as jovens da cidade para limpar o chão”. São aquelas famílias que evoluem numa sucessão de castelos, mansões, cabriolés, bailes, recepções, reuniões de Estado, casamentos; uma elite “de dinheiro antigo” cada vez mais restrita a si mesma, cada vez mais isolada.
 
Morten procura (conscientemente ou não) romper com isso, larga a noiva fidalga, assume de vez o papel guerreiro que já tinha experimentado no combate a Napoleão. Foge para longe, torna-se fazendeiro e senhor de escravos nas Antilhas. Perde tudo, e acaba morrendo na forca.
 
E indo para esse lugar que ele qualifica como “o inferno”, um lugar onde não se tem notícias do mundo em que habitara.
 
Quando Morten surge na mesa para se reencontrar com as irmãs, ele explica: “Pude vir agora, como vocês estão vendo, porque o Estreito está congelado. Num caso assim, posso vir. É uma regra”.



O Estreito a que ele se refere é a faixa de mar entre Elsinore (“Helsingor”, em dinamarquês) e o porto sueco de Helsingborg. (Os dois nomes não deixam de sugerir “hell”; e Karen Blixen, como se sabe, escrevia seus contos diretamente em inglês.) São apenas quatro quilômetros de mar separando os dois portos. A imagem sugerida por Blixen é que esse estreito representa, de certo modo, a separação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Quando o mar se solidifica no Estreito, as almas podem passar.
 
No fim do conto, o relógio bate meia-noite e o espírito de Morten desaparece da mesa onde está junto às irmãs.
 
[Fanny] ficou imóvel por um longo tempo, sem fazer nenhum gesto. E da noite de inverno lá fora, da direção do norte, veio um ruído profundo, ressoante, como o eco de um disparo de canhão. As crianças de Elsinore conheciam bem o seu significado: era o gelo se partindo em algum lugar, produzindo uma comprida fenda. (trad. BT)
 
Partindo-se o gelo, parte-se a ponte entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, e Morten (o nome não é escolhido por acaso) volta para o lugar onde não vê ninguém.



("Sete Narrativas Góticas", Ed. Sesi/Senai)