Tenho uma birra com o Capitalismo, assim como certas
pessoas têm birra com o inverno ou com o verão. Ou seja: como não posso fazer
nada para mudá-lo, fico falando mal, pra liberar pressão.
Faço muitas críticas a esse sistema, mas me criei dentro
dele e consigo viver assim, numa boa. Sou um subproduto dele. Mesmo sabendo que
o Capitalismo, pelo menos em suas pulsações mais ousadas dos tempos mais
recentes, está destruindo o mundo.
O capitalismo de livre mercado tem o lado bom da gente
poder trocar de trabalho quando convém, poder fazer dois ou três trabalhos ao
mesmo tempo, coisas totalmente diversas, ter sempre meia dúzia de alternativas
de projetos ou de encomendas, discutir pagamento na base do cada-caso-é-um-caso.
Prefiro ganhar a vida assim, como faço há décadas, do que
viver numa burocracia estatal. Passar quarenta anos na fila ascendente de
promoção funcional dos assistentes-secretários de Medicina de Enredo na
Secretaria de Dramaturgia do Ministério das Mensagens da República Popular da
Ruritânia. Um regime político onde não há espaço para freelancers não me
interessa.
Por falar em distopias e ficção científica, Ted Chiang é
um dos contistas mais inventivos e rigorosos de sua geração, conhecido principalmente
pelos contos reunidos no volume História
da sua vida e outros contos (Intrínseca, 2016, trad. Edmundo Barreiros).
O conto-título foi filmado como A Chegada (Arrival, 2016) por Denis Villeneuve. Outros contos ganharam
numerosos prêmios literários, entre eles o Hugo, o Nebula, o Locus e o Theodore
Sturgeon Award.
Num pequeno ensaio encomendado pelo saite Buzzfeed, em
dezembro de 2017, Ted Chiang comentou um debate abordado pelo mega-empresário
Elon Musk, ao afirmar diante da National Governors Association que a
inteligência artificial é um risco fundamental para a espécie humana.
Musk ilustrou isto com o exemplo de uma Inteligência
Artificial que recebe instruções para colher morangos.
– Parece inofensivo, mas quando a I. A. começar a redesenhar
a si mesma para se tornar mais eficiente, talvez ela conclua que a melhor
maneira de cumprir totalmente sua missão seria destruir a civilização e
converter toda a superfície da Terra em campos de morango.
Musk parece não se dar conta do caráter ominoso e
eldritchiano que subitamente impregna a inocente canção dos Beatles, “Strawberry
Fields Forever”. Mas decerto não era isso que Elon Musk tinha em mente. O que
ele sugere é apenas que essa I. A., tentando executar uma tarefa aparentemente
inócua, optou pela extinção da humanidade puramente como um efeito colateral
não previsto.
Chiang escreve FC, mas na hora de interpretar o
apocalipse espreitado ele não vem com reptilianos ou mutantes. A Inteligência
Artificial (pensa ele) não será um robô mecânico meramente desregulado: será um
composto de inteligência humanas, turbinadas por informática, tomando decisões
que são inalcançáveis pela mente individual de cada um de nós. Chiang pergunta:
– Quem é que persegue os seus objetivos com um foco quase
monomaníaco, cego às possíveis consequências? Quem é que adota uma abordagem de
terra arrasada quando se trata de expandir sua fatia do mercado? Essa
Inteligência hipotética que planta morangos faz apenas o que toda empresa startup no ramo da tecnologia gostaria de
fazer: crescer a uma taxa exponencial e destruir todos os seus competidores até
atingir o monopólio absoluto.
Como escritor e bom visualizador de futuros insólitos,
Chiang vê um certo modelamento de modos locais de pensar durante a construção
de todas as etapas que estão conduzindo à inteligência artificial.
– Quando o Vale de Silício tenta imaginar a
superinteligência, o que acaba resultando disso é um capitalismo sem rédeas nem
limites.
Chiang argumenta que uma característica essencial da
inteligência deveria ser a metacognição, a capacidade de avaliar com clareza
seu próprio comportamento. O ser humano é assim, muitos animais não o são. E
esse tipo de insight, de
auto-vislumbre, seria um bom teste ao qual submeter as superinteligências que
estão por vir.
Chiang sabe que as guerras do futuro podem até ser
atômicas, mas com certeza absoluta serão semióticas. Há uma guerra de sinais,
de linguagens, de códigos.
– Já vivemos cercados por um tipo de máquina que
demonstra uma ausência completa de insight:
nós as chamamos de corporações. Corporações não são coisas autônomas, é claro,
e os humanos que as põem em ação são presumivelmente capazes desse insight. Mas o uso dele não é
recompensado pelo capitalismo. Pelo contrário: o capitalismo esforça-se para erodir
nas pessoas essa capacidade, exigindo que elas substituam seu julgamento
pessoal do que é “bom” por “o que quer que o mercado decida”.
Perguntaram a Chiang se não seríamos capazes de orientar
essas Inteligências Artificiais a trabalhar em benefício do ser humano,
obrigando seus parâmetros a servirem aos nossos. Ele ripostou: Como poderemos
fazer isso, se o mais fácil não fizemos, que teria sido ensinar um senso de
ética às corporações, garantir que o Facebook e a Amazon estivessem de fato
voltados para o bem do público?
A Inteligência Artificial surgirá não como produto
militar, mas como subproduto corporativo. Vai gerar a guerra sem quartel das
corporações, no mercado financeiro, no do petróleo, no das armas, onde quer que
haja um terreno a ser conquistado e um mercado a ser imposto.
Bilionários como Bill Gates e Elon Musk presumem que uma
Inteligência Artificial super eficiente não se deteria diante de nada para
alcançar seus objetivos, porque foi justamente essa a atitude que eles próprios
assumiram.
Diz ele: “claro que eles não viam nada de errado com essa
estratégia, quando eram eles que a estavam pondo em prática; foi somente a
possibilidade de alguém ser ainda mais capaz do que eles que começou a lhes
causar preocupação.”
Antes que alguém comece a achar que os dois bilionários são
comunistas, ou que Chiang o é, seria útil consultar uma porção de documentários
contemporâneos que têm essa mesma posição cética diante da largueza ética de
nossas corporações. The Corporation,
onde as corporações são comparadas a sociopatas capazes de qualquer coisa para
não terem sua vontade negada. Ou Salvando
o Capitalismo (Netflix), onde um ex-conselheiro de Bill Clinton e Barack
Obama sai pelo país conversando com eleitores ou partidários de Trump.
Todos concordam que as leis que regulam o capital nos EUA
e no mundo estão gerando uma distorção absurda, insustentável. Não se trata de
evitar que o Comunismo arrombe a janela e entre, e sim de evitar que o dono da
casa a bote abaixo em busca de um tesouro que não existe.
A riqueza virtual de trilhões de dólares, pela qual as
corporações ficam se batendo, parece com a fortuna imaginária de um doido de
Guimarães Rosa, o “Coletor”, que faz uma aparição fugaz no conto “O Recado do
Morro”. É um maluco inofensivo que costuma sair de cidade afora, riscando
números em folhas de papel, no chão, nas árvores, por toda parte. Gosta em particular do enorme muro branco da
igreja, por ter muito mais espaço onde escrever:
“Ia alinhando números tão desacabados de compridos, que pessoa nenhuma
não era capaz de tabuar: seus ouros, suas casas, suas terras, suas boiadas no
invernar, sua cavalaria de ótimas eguadas, seus contos-de-réis em numerário,
cada lançamento daqueles era feito uma correição de formiguinhas pretas
enfileiradas. Aquele homem tinha uma
felicidade enorme.”