terça-feira, 11 de agosto de 2009

1196) Ariano e a música americana (12.1.2007)


(Woody Guthrie)

Na recente entrevista que fez para o Fantástico com Ariano Suassuna, o repórter Geneton Moraes Neto perguntou mais uma vez ao autor da Pedra do Reino o que ele achava de Madona e de Michael Jackson. Digo "mais uma vez" embora não saiba se Geneton já lhe tinha feito esta pergunta. É possível que não, e que não quisesse ser o último jornalista brasileiro a fazê-la. A impressão que eu tenho é de que todo mundo que entrevista o escritor a faz. Por quê? Em primeiro lugar (acho) porque jornalistas pensam que um indivíduo inteligente tem sempre alguma coisa inteligente a dizer sobre um assunto pelo qual não se interessa nem um pouco. Daí ficarem perguntando a atores de cinema o que eles acham da Guerra no Iraque, ou a socialites o que elas acham das pesquisas de célula-tronco.

Em segundo lugar, porque existe um prazer perverso nos entrevistadores em exibir as limitações do entrevistado. Ariano dedicou pouquíssimo tempo de sua vida ao estudo da música pop norte-americana, se é que dedicou algum; e não tem interesse pelo contexto industrial-cultural que a produziu. Dificilmente terá algo de original a dizer a respeito, não porque lhe falte inteligência, mas por absoluta falta de identificação com o assunto. Fico pensando se Guimarães Rosa já teve que dar opinião sobre a música de Little Richard, e se alguém já perguntou a João Cabral de Melo Neto se ele gostava do som de James Brown.

Em terceiro lugar, existe nos jornalistas a atração irresistível pela opinião sincera, dita de maneira curta e grossa. "Detesto. Acho uma idiotice. Não vale nada." Estas expressões são cada vez mais raras na indústria cultural, onde ninguém tem coragem de dizer em público o que pensa do trabalho dos colegas, e deixa para dizê-lo "em off", alimentando as revistas de fofocas. Diante dos microfones, todo mundo gosta de tudo, para não se comprometer. As entrevistas e debates viram uma rasgação-de-seda permanente onde o entrevistado desmancha-se em elogios que soam tão falsos quando as promessas dos políticos ou os elogios da propaganda. Quando aparece um sujeito que diz que não gosta, os entrevistadores se assanham. Não porque estejam a favor do não-gostador ou do não-gostado, mas porque o "não-gostar" é notícia. Tanto é assim que há também os não-gostadores profissionais, os sujeitos que só dão entrevistas falando mal de todo mundo e descendo a ripa no trabalho alheio. Toda regra serve de adubo às próprias exceções.

Se os jornalistas gostam tanto de música americana, por que não perguntam a Ariano sobre a música de Woody Guthrie, o cantador de esquerda que viajou o país inteiro durante a Grande Depressão, cantando e compondo para mineiros, lavradores, operários? Guthrie é tão representativo da América quanto Madona, ou mais. Pode ser que Ariano nunca tenha ouvido as músicas dele; pode ser até que os próprios jornalistas conheçam melhor o "corpus" da obra musical de Madonna do que as canções de Woody Guthrie. O que nos diz coisas interessantes sobre este Brasil tão pressuroso em tomar as dores da música americana.

1195) O avião na esteira rolante (11.1.2007)


(Ilustração: Carlos Magno "Maninho")

Sou um leigo quase total em ciências físicas, o que não me impede de admirar à distância as façanhas dos que as praticam, assim como admiro as façanhas dos ginastas ou nadadores olímpicos via TV. Nunca estudei Física, Química ou Biologia no colégio, pois sou do tempo em que a gente podia optar pelo Curso Clássico ou pelo Curso Científico (claro que optei pelo Clássico). Talvez venha daí, com um certo paradoxo, a minha admiração por estas disciplinas. Porque nunca tive que virar noites estudando mecânica-dos-fluidos ou cadeias-de-aminoácidos e precisando de 7 na prova final. Poupado destes traumas, vejo a Ciência como um mundo de assombrosos mistérios que -- como é grande o poder da Natureza! -- admitem respostas, desde que conheçamos as regras e os processos.

No saite BoingBoing os leitores estão engajados desde dezembro na discussão de um problema simples de Mecânica que me deixa meio embasbacado. Não porque o problema seja difícil; à primeira vista parece fácil. Mas porque os leitores têm se dividido em dois grupos antagônicos, ambos cobertos de argumentos para defender suas respostas. O problema proposto é o seguinte. Suponhamos que um avião comum está pousado sobre uma imensa esteira rolante que tem a largura e a extensão de uma pista de decolagem. O avião liga os motores para dar aquela taxiada inicial, rolar pela pista e levantar vôo. O problema é que a cada distância que ele percorre para a frente a esteira rola o-mesmo-tanto no sentido oposto. O avião conseguirá ou não decolar?

Quem quiser ver a discussão no saite pode ir para: http://www.boingboing.net/2006/12/11/airplanetreadmill_pr.html. Das dezenas de "posts" que li me pareceu que o avião pode, sim decolar. Não me pergunte por quê. O mais importante não é apenas o veredito de sim ou não. É a quantidade de fatores ocultos que estão em jogo. As diferentes possibilidades de atrito entre a esteira e as rodas do avião. O limite de aceleração possível da esteira. O atrito (desprezível, ou não?) dos rolamentos internos das rodas. A natureza da propulsão do jato. As diferentes aplicações da Segunda e da Terceira Lei de Newton. E por aí vai.

Um poeta, desses que se limitam a tirar o chapéu quando cruzam com um cientista na rua, dirá: "Ah, que besteira, esses caras perdem horas discutindo o sexo-dos-anjos". Data vênia, nobre colega! Discutir a possibilidade de um avião decolar em condições fora do comum é algo que pode salvar centenas de vidas, mais cedo ou mais tarde. Em circunstâncias excepcionais (ou seja, num acidente) um piloto tem que já ter pensado nesses assuntos, para poder tomar uma decisão rápida. A vantagem de discutir Ciência é que essa discussão pode salvar nossa vida um dia. A vantagem de discutir Poesia é que de Poesia ninguém morre, então consideremo-la como nosso playground, nossa hora-do-recreio, nossas férias-remuneradas.

1194) O xadrez como arte (10.1.2007)



O valor simbólico do xadrez como estilização da guerra é um lugar comum. Algumas pessoas estão levando isto a um notável grau de estetização. Os artistas Debbie e Larry Kline estão colocando à venda no saite MegaChess (http://www.megachess.com/sunusualstuff.htm) um jogo de xadrez intitulado "The Game at Hand", em que as peças brancas e pretas simbolizam respectivamente a coalizão liderada pelos EUA no Iraque/Afeganistão e os terroristas islâmicos. As peças são feitas manualmente, uma a uma, o que faz com que o jogo completo, incluindo tabuleiro, caixas, etc., custe a pechincha de 4.350 dólares.

O mais interessante do jogo (que aliás não me parece muito "jogável", do ponto de vista de quem vai usá-lo para uma partida de verdade) é a concepção que os artistas dão a cada uma das peças, feitas em cerâmica. Vejamos as Brancas, em primeiro lugar. O Rei é representado por três pilhas de moedas douradas, de diferentes tamanhos, que vistas de certo ângulo parecem duas e lembram um pouco a silhueta do falecido World Trade Center. A Dama ou Rainha é uma reprodução estilizada da Estátua da Liberdade. Visto em conjunto, o casal real é simbólico e expressivo. Os Bispos brancos são representados por duas figuras religiosas: um Papa católico e um Rabino judeu, com vestes longas, bem parecidas. Os dois Cavalos são representados por um tanque e um avião-caça pilotados por dois soldados. As duas Torres são, adequadamente, representadas por duas construções bem sólidas: uma miniatura do Pentágono e outra da Casa Branca. E os oito peões, claro são pequenos soldados de metranca em punho.

E quanto às peças pretas? Aqui vem um pulo-do-gato da imaginação dos artistas. Em vez de tentar encontrar equivalentes aos personagens das peças brancas (sob a forma de minaretes, califas, aiatolás, etc.) eles criaram dezesseis peças pretas praticamente iguais entre si, silhuetas negras vestidas de burka e chamadas de "Extremistas Islâmicos". É impossível distinguir quem é rei, dama, peão, cavalo, torre, bispo... Só é possível saber quem é quem se memorizarmos, ao longo da partida, onde cada peça estava na formação inicial -- o que não é tão difícil assim, para um enxadrista experimentado. Mas é um estresse a mais. E reproduz (pelas intenções dos artistas) a sensação de incerteza permanente de quem combate terroristas.

O xadrez fabricado pelo casal Kline não tem pretensões de jogabilidade, mas de alegoria. Suas peças brancas, representando o Ocidente capitalista, são fortemente individualizadas, distinguíveis entre si, e carregadas de um valor simbólico que se percebe ao primeiro olhar. Já as peças que representam as Pretas, o Oriente misterioso ou “o Eixo do Mal” como afirma George Bush, são incógnitas. Exprimem a ameaça onipresente. Exprimem a impessoalidade de criaturas sobre cuja natureza nunca podemos ter certeza alguma. Exprimem a maior ameaça ao Ocidente: sua imensa ignorância sobre o inimigo que enfrenta.

1193) Treze dias que abalaram o mundo (9.1.2007)



A TV exibiu nos primeiros dias de 2007 o filme Treze dias que abalaram o mundo, um thriller político de Roger Donaldson sobre a crise dos mísseis de Cuba em 1962. Para os que nem eram nascidos na época, basta resumir que os soviéticos instalaram uma base de mísseis atômicos em Cuba, de onde poderiam bombardear os EUA. O presidente John Kennedy ordenou um bloqueio naval a Cuba, e a retirada dos mísseis. Foram dias de negociações tensas, porque muitos oficiais soviéticos e americanos queriam a guerra atômica. Por quê? Meu palpite é que militares passam a vida inteira sendo preparados para a guerra, assim como jogadores de futebol se preparam para jogos. Imagine a inquietude de uma Seleção Brasileira que sabe ser muito boa, muito bem preparada, passa anos e anos treinando... e ninguém deixa ela jogar! Kennedy não deixou os militares americanos jogarem. Fez algumas concessões, os soviéticos retiraram os mísseis, e ficou por isso mesmo.

Os méritos do filme são a narrativa tensa e rápida, o bom elenco, e a impressão de verossimilhança que nos dá, mesmo com o desconto de alguns erros factuais e de interpretação, apontados por alguns críticos. Vemos intermináveis reuniões regadas a café e cigarros, bate-bocas ferozes tanto entre adversários ideológicos quanto entre parceiros que se gostam e se admiram, discussões que rodam, rodam, e voltam à estaca zero. A iminência de uma guerra nuclear tira o sono de todos, e há algo de kafkeano nesse grupo de homens preparadíssimos e poderosos sendo forçados a caminhar, sem poder fazer nada, na direção de um conflito que certamente mataria metade da população do mundo.

A direita norte-americana fez o que pôde para que o conflito fosse resolvido na bala. Os Kennedys (John e Bobby) conseguiram uma saída honrosa. Um ano depois, John foi fuzilado em Dallas; cinco anos após, Bobby também foi morto a tiros. Lembro de uma coluna de Arnaldo Jabor no Pasquim, na década de 1970, em que ele dizia: "Com a morte de Kennedy, a direita americana descobriu que tinha super-poderes. Foi como Superman, garoto, descobrindo que podia erguer um caminhão com uma mão só". Estas palavras têm uma amargura profética quando vemos hoje essa direita instalada na Casa Branca, invadindo países, e afundando-se em atoleiros militares que ela própria criou. O fato do filme de Donaldson ser um hino de admiração aos Kennedys talvez relativize sua crítica (há uma divisão nítida demais entre mocinhos e bandidos), mas, se não serve como documento veraz, que sirva como alegoria.

O mais impressionante é como dois sujeitos como os Kennedys foram simplesmente assassinados em público e ficou tudo por isto mesmo, como em qualquer republiqueta sul-americana. Inventaram dois bodes expiatórios para puxar o gatilho, e pronto. Um país que trata assim dois líderes políticos democraticamente eleitos acaba produzindo crias como Saddam Hussein.

1192) Incompatibilidade de gênios (7.1.2007)



Já falei aqui sobre a importância que teve, na minha infância, o fato de estudar em turmas onde se misturavam alunos de 12 até 20 anos (ver “Meus Ateneus”, 11.12.2005). Essa promiscuidade etária foi sofrida, mas muito educativa. Do mesmo modo, defendo a teoria de que meninos e meninas deviam estudar misturados desde cedo. Separar turmas masculinas e femininas, na infância, só faz isolar esses dois mundos que por si mesmos já são tão diferentes.

Há um artigo de G. K. Chesterton a este respeito, “Two stubborn pieces of iron”, em que ele diz que a co-educação não acarreta o menor perigo de tornar meninos e meninas todos iguais. São diferentes demais, diz Chesterton, são como dois pedaços teimosos de ferro: se quisermos que eles se fundam num só é preciso aquecê-los ao máximo, porque “as diferenças entre um homem e uma mulher são na melhor das hipóteses tão obstinadas e exasperantes que praticamente não podem ser superadas, a não ser numa atmosfera de ternura exagerada e interesse mútuo”. O amor e o desejo sexual atuam, neste caso, como motivações tão intensas que ambos os lados consideram, pela primeira vez, que vale a pena abrir mão de suas verdes convicções e dar um pouco de atenção àquelas criaturas chatas que até então eram objeto de desdém e galhofa.

Criar-se a uma distância excessiva pode produzir lacunas irremediáveis na comunicação. Vejam a Grã-Bretanha, por exemplo. Lá os carros têm o volante do lado direito e rodam no lado esquerdo das ruas e estradas. É uma simples convenção, mas só acontece porque o país é uma ilha. Se não o fosse, a partir de uma certa altura viaturas e estradas estariam se misturando às do país vizinho, e uma das duas convenções teria que se sobrepor à outra. Vejam o caso das concepções geográficas da China: lá, o Norte fica para baixo, e o Sul para cima. Claro que isto não é certo nem errado, é mera convenção, mas fica difícil usar noutro país um atlas impresso na China, mesmo com texto em outra língua. São dois exemplos de por que homens e mulheres pensam diferente.

Homens e mulheres devem ter direitos iguais e deveres iguais perante a lei. As exceções devem atentar para peculiaridades biológicas como gravidez, amamentação, etc. No mais, tudo deveria ser, se não compartilhado, vivenciado à vista uns dos outros, como aliás ocorre na maioria dos nossos colégios. As diferenças culturais são excessivas, enormes. Se os separarmos com um muro, acabaremos tendo de um lado uma horda de Schwarzennegers motorizados, e do outro um desfile de sílfides consumistas. Chesterton (cuja opinião neste caso difere da minha) diz: “É melhor que os sexos se desentendam entre si até se casarem. Não deviam ter conhecimento a respeito um do outro antes de terem a reverência e a caridade”. E neste ponto está certo. Meninos e meninas desentendem-se até o instante em que se sentem atraídos. Somente essa atração pode tornar possível algum tipo de entendimento entre os dois.

1191) Os “ensembles” musicais (6.1.2007)


("América Contemporânea")

Falarei sobre dois shows que vi no VII Mercado Cultural realizado recentemente em Salvador. O primeiro, “América Contemporânea”, reuniu músicos de diferentes países: Brasil (Benjamin e João Taubkin, Siba, Ari Collares, José Miguel Wisnik), Bolívia (Álvaro Montenegro), Venezuela (Aquiles Baez), Argentina (Carlos Aguirre), Chile (Christian Galvez), Colômbia (Lucía Pullido), Peru (Luís Solar). Olhando a ficha técnica o espectador mais cético pensa logo tratar-se de uma colcha-de-retalhos de música folclórica, mas não é o caso. Nada tenho contra o folclore ou contra a estética “colcha-de-retalhos”, mas o show América Contemporânea tem multi-instrumentistas passeando por regiões rítmicas e melódicas de cair o queixo. Tem de tudo, desde jazz até repente. É o tipo de show cuja divulgação se faz em cima de seu caráter pluri-nacional, mas que talvez funcionasse mais ainda se nos fosse possível comprar ingresso, sentar na poltrona e assistir o show sem saber quem é quem, e quem é de onde, entregando-nos ao prazer da música sem adjetivos.

O mesmo não se dá com o outro show, cuja fruição é valorizada pela informação do seu contexto. Durante o espetáculo, o grupo “Imigrassons” nos informa de que ele começou a nascer no Mercado Cultural de 2005, quando músicos de diferentes países, cada qual apresentando um trabalho diferente, começaram a trocar idéias e decidiram montar um espetáculo conjunto tendo como ponto de partida o tema “Migrações”. O grupo foi formado com os espanhóis Raúl Fernandez, Silvia Perez Cruz e Oriol Roca, os argentinos Guido Ivan Martinez Quinzio e Diego Alejandro, e o italiano Giovanni di Domenico. O show tem no repertório apenas cantigas (antigas e recentes) que falam da vida de migrantes, sendo algumas em catalão, outras em espanhol; e os números são intercalados com projeções de entrevistas de espanhóis que migraram para a América e vice-versa.

A criação de grupos ou “ensembles” desse tipo, ou seja, músicos que têm trabalhos pessoais, reúnem-se para um projeto específico, e depois separam-se de novo, tem sido uma tendência interessante das últimas décadas, inclusive no mundo do rock. Na música popular sempre existiram as “canjas”, as participações especiais, os “artistas convidados” que tinham uma presença de destaque no show de algum amigo. Mais recentemente, contudo, isto tem se transformado num formato mais ambicioso do ponto de vista das idéias e da criação musical. Não se trata de um encontro fortuito, mas de um encontro programado, agendado e intenso, mesmo que com prazo fixado para se concluir. Vejo nisto um sintoma de saúde da música popular. Quebra a tirania do grupo de sucesso, e o conceito empobrecedor de “artista exclusivo”. Favorece a troca de informações e de experiências, e multiplica as audiências ao reunir pessoas de diferentes origens, cada qual com seu público já formado. É um capítulo importante numa futura história do que está acontecendo à música de hoje.