sábado, 8 de agosto de 2009

1186) Compramos livros (31.12.2006)




(sebo em Old Delhi, foto de Geoff Peace)

Compramos livros (dizem nossos adversários) para impressionar pessoas ingênuas levando-as a presumir que sabemos de tudo que está contido naqueles volumes. 

Compramos livros (insistem eles) porque temos medo de ficar para trás no incessante rodízio de modas e tendências do mundo intelectual. 

Compramos livros para esconder por trás dessa barricada a nossa angustiada ignorância. Porque somos metidos-a-besta e inseguros, e os livros talvez possam intimidar interlocutores mais inseguros do que nós. É mais ou menos isto que pensa a “oposição”.

E na verdade não é nada disso. 

Cada um de nós poderia usar uma T-shirt onde estaria escrito: “Compro porque é vendido. Se fosse doado, eu aceitava”. 

Compramos livros porque achamos mais elegante e mais poética uma parede forrada de livros do que uma parede com dez Van Goghs. Sentimos, diante de uma sala recoberta de estantes, a paz de um jardineiro contemplando seus canteiros, e o orgulho de um general vendo desfilarem seus exércitos.

Compramos livros porque acreditamos que cada livro é um portal para um universo diferente e único, e multiplicamos assim as nossas chances de mudar o mundo de acordo com nossa veneta. 

Para um desavisado, as lombadas dos livros não passam de superfícies estreitas de papel com algumas palavras que as identificam. Para nós, a lombada, até mais do que a capa, é o rosto do livro, é o link mágico em que basta tocar com a ponta do dedo para fazer com que ele se desdobre em deslumbramento.

Compramos livros porque esta é a maneira mais simples de levá-los para passar uns dias conosco, descobrindo afinidades mútuas. 

E quando, na pior das hipóteses, vemos que não era nada do que tínhamos imaginado, ainda assim o livro preterido tem a paciência de deixar-se encostar num canto, durante meses, sem protestar. 

Comprar um livro é uma aposta renovada no prazer de ficar sabendo; no possibilidade de que verdades essenciais estejam nos aguardando em silêncio; na economia de tempo e de espaço que concentra em algumas centenas de páginas a sabedoria destilada em muitas centenas de vidas.

E não somos uma espécie em extinção. Na pior das hipóteses somos uma população que se reduz, mas, o que tem isto? Jamais trocaremos o ouro sólido do Aqui-e-Agora pelo cheque pré-datado da Posteridade. 

Não há prazer maior do que a fidelidade a quem se ama. Abrir um livro é ficar de mãos dadas com ele, conduzi-lo, deixar que nos conduza. Esse afeto madurado nas adegas da memória nos leva a ver os livros não mais como nossos pais e mestres, mas como nossos netos e discípulos. 

E a imaginarmos um futuro remoto com aposentadoria, paz doméstica, moeda estável, poupança aplicada na montagem de um Sebo. 

Ali, numa cadeira de balanço junto ao balcão, passaremos tardes tranqüilas, atendendo amigos antigos e fazendo amigos novos, sentados junto à porta onde estará afixado o modesto e orgulhosíssimo letreiro: “Compramos livros”.






1185) A vida de Rosa (30.12.2006)



A revista Piauí de dezembro traz um artigo de Cassiano Elek Machado sobre as dificuldades de se publicarem textos inéditos de Guimarães Rosa, devido aos empecilhos criados por seus herdeiros. Rosa foi casado com D. Lygia (Lili) com quem teve as filhas Vilma e Agnes. Quando foi trabalhar na embaixada brasileira em Hamburgo, em 1938, conheceu Aracy Moebius, com quem ficaria casado até falecer em 1967. Os direitos autorais de seu espólio pertencem à viúva Aracy e às duas filhas. Nem sempre chegam todos a um acordo sobre o que pode ou não ser publicado, e qual o preço a pagar. Este é o tema do artigo de Cassiano Elek, cuja leitura recomendo a todos os interessados em Rosa e na questão delicadíssima dos direitos autorais de um autor falecido.

Uma das questões levantadas no artigo é o direito de publicação do material deixado inédito por Rosa, principalmente cartas e diários. Existe hoje uma mini-indústria editorial acadêmica sobre a obra do escritor mineiro, e uma demanda insaciável por mais e mais material de análise. É muita gente pesquisando. Os dois volumes do Seminário Internacional Guimarães Rosa (1998-2000, 2001), da Editora PUC-Minas, com centenas de autores e ensaios acadêmicos, somam mais de 1.600 páginas. Alguns ensaios são brilhantes, outros nem tão brilhantes mas utilíssimos, outros de uma vacuidade espantosa. Mas tudo bem, a vida é assim mesmo. O que importa é que quem quiser se aprofundar na obra de Rosa tem onde ir buscar.

O problema é a vida pessoal. A família tem todo o direito de escolher o que preservar. Rosa sempre foi discreto, e seus herdeiros cantam no mesmo tom. E hoje em dia, vamos e venhamos, existe uma indústria do escândalo, da fofoca, do boato impresso. Gente ansiosa para descobrir (ou inventar) “podres” em pessoas famosas, até porque os famosos de hoje em dia – não na literatura, mas na TV, na música, na moda, na política – industrializam os boatos sobre si próprios, e faturam em cima deles. Qualquer família com um mínimo de dignidade e bom-senso se assusta e diz: “Tô fora”. Mesmo quando a intenção do biógrafo é séria.

Já reclamei aqui da inexistência de uma grande biografia de Rosa (“Uma biografia de Guimarães Rosa”, 19.8.2003). O fato da família fechar-se em copas, mesmo compreensível, é lamentável, porque essa biografia talvez só venha a ser escrita daqui a uma geração, quando será impossível entrevistar as pessoas que conviveram com o autor. A recente biografia de Roberto Carlos (cujo autor o “Rei” ameaça processar) nos lembra do perigo do biógrafo discordar do biografado; mas por outro lado, quem está interessado em ler uma biografia chapa-branca, em que o dono da história censurou os trechos de que não gostava? Dizem que Pilatos perguntou a Cristo: “Quid est veritas?” (“O que é a verdade?”), e este respondeu com um anagrama: “Est vir qui adest” (“O homem diante de ti”). Em alguns casos, nunca saberemos a verdade, e nunca enxergaremos o homem.

1184) Mortes absurdas (29.12.2006)




(Albert Camus)

Um filósofo como Albert Camus me repreenderia o título pela obviedade, pois para ele toda morte é absurda. Mas convenhamos que umas são mais (como direi?) pinturescas do que as outras, mais rococós, mais fora-de-esquadro. Por exemplo: agora em novembro, nos EUA, Mariesa Weber, de 38 anos, sumiu de casa um belo dia, e a família deu parte à polícia. Pensaram em seqüestro, mas ninguém fez contato. Aí, duas semanas depois, começaram a sentir um cheiro estranho. Alguém se lembrou de olhar atrás de uma estante, (que ficava um pouco afastada da parede) e encontrou o corpo de Mariesa, morta, de cabeça para baixo. Ao que parece, ela tinha subido numa escrivaninha e se inclinado sobre a estante para ajeitar um plugue numa tomada que ficava ali atrás. Escorregou, caiu de ponta-cabeça, e segundo a polícia ficou desacordada numa posição em que lhe era difícil respirar.

É o tipo de morte que (com todo o respeito) parece contar com uma certa boa-vontade involuntária por parte da vítima. Outros casos, contudo, são mais misteriosos. Em abril deste ano, na Itália, um casal de namorados morreu na mesma hora em dois acidentes diferentes, a quilômetros de distância um do outro. Mario Monucci, de 29 anos, morreu por volta da meia-noite na cidade de Forli, quando sua moto se chocou com um poste. Na mesma hora, o carro de sua namorada Simona Acciai, de 27 anos, saiu da estrada e caiu num fosso. A polícia local registrou os dois acidentes e só depois de algum tempo percebeu que o endereço das duas vítimas era o mesmo.

Romancista algum ousaria colocar este segundo episódio num romance. Por quê? Porque fatos assim só chamam a nossa atenção quando acontecem na vida real, onde não vigora nenhuma interferência roteirística. O que ocorre na vida ocorre por Acaso, e por isto as coincidências nos assombram. Num romance, uma coincidência nos faz dar de ombros: “E daí? Aconteceu assim porque o autor quis”. Usar coincidências, num texto de ficção, para resolver um problema dramático ou um nó narrativo é prova de preguiça ou de falta de talento.

Uma morte apenas esquisita, como a do primeiro caso narrado acima, poderia aparecer num romance sem nos causar muita estranheza. Seria meio sem sentido, meio improvável, mas teria o mesmo teor de estranheza que tem numa página de jornal. O segredo de usar episódios com este grau de improbabilidade é não dar-lhes uma função importante demais na trama – para não parecer que o autor recorreu a isto para facilitar as coisas em seu próprio proveito. Mortes casuais precisam ter no texto de ficção o mesmo caráter fraturado com que irrompem na vida real, como resultado de uma combinação boba de detalhes. Têm a verossimilhança dos fatos da vida quando nos pegam de surpresa, e nos mostram que por mais que planejemos a vida jamais aboliremos o Acaso, e que o que chamamos Destino não passa de uma rima entre dois Acasos sem outra relação entre si.