As crianças e os doidos, diz Paulo Rónai, são dois temas
que Guimarães Rosa gosta de explorar em seus contos de Primeiras Estórias (1962; 3ª. edição, 1967). Sempre com
conhecimento de causa. Ele dá ao leitor a sensação de que está mesmo vendo
aquilo acontecer, porque as crianças pensam e falam do jeito que ele está
descrevendo, e os doidos também.
É bom lembrar que na rubrica de “doidos” o prof. Rónai
inclui todos os maníacos mansos, os obcecados, os “pertubados”, os levemente
delirantes...
A “Partida do Audaz Navegante” é um conto sobre um grupo
de crianças, com foco em uma delas. O conto inteiro transcorre numas poucas
horas, num dia chuvoso, numa casa da zona rural. Chove e as crianças têm que
brincar dentro de casa. Estiou, e saem elas correndo para a beira do rio, para
avaliar as mudanças. As brincadeiras prosseguem, até que o trovão ribomba e a
mãe vem recolher a tropa de volta pra dentro.
É um conto simples, um desses famosos contos onde nada
acontece e de frase em frase um milagre desabrocha.
As crianças são três: Ciganinha, a mais velha, já se
botando com interesses de quase-moça; Pele, a do meio; e Brejeirinha, a mais
nova e a mais importante da história. Aliás, são quatro, porque tem o primo
Zito, que está passando uns dias na casa e mantém com Ciganinha uma tumultuosa amizade,
um tateante rascunho de namoro. E tem as figurantes de fundo: a Mãe, “a mais bela, a melhor”; Maria Eva, que
pelos diálogos interpretamos como uma criada da casa; e Nurka, a cadela.
Rosa conta essa historinha doméstica com um ponto de
vista infantil, um olhar de menina que ele consegue reproduzir. Jagunço,
matador e cruel quando necessário, seu olhar pode se ameninar dessa forma, e o
mundinho daquele sítio vai sendo revelado através de pequenas delicadezas
verbais:
“Suas meninas-dos-olhos brincavam com bonecas.” (p. 115)
“Ciganinha e Zito erguem olhos, só quase assustados. Quase, quase, se
entrefitaram, num não encontrar-se.” (p. 116)
“Eles dois estavam nas duas pontinhas da saudade” (p. 120)
Quando a gente estabelece, didático, aquela milenar
separação entre “literatura de enredo” e “literatura de estilo”, muita gente
entende “ter estilo” como escrever bnito, escrever de um jeito enfeitado; uma
concepção de “estilo” que contaminou muitas literaturas, principalmente a
nossa. Escrever com palavras bonitas. Escrever com frases bombásticas. Escrever
com citações dos clássicos. Escrever em estruturas sintáticas difíceis de
acompanhar, mas tecnicamente inatacáveis. Tudo isso constituía um estilo, por
mais desnecessário ou deslocado que fosse.
O estilo de Guimarães Rosa é geralmente compreendido num
conjunto de efeitos quase sempre presentes em quase todo texto seu:
--- sintaxe meio truncada,
cheia de solavancos;
--- abundância de neologismos
(palavras inventadas pelo autor) e arcaísmos (palavras que já existiam na
língua e o autor foi buscar no fundo do baú);
--- riqueza de símiles (comparações)
visuais e sonoros;
--- facilidade para adotar o
tom simbólico-declaratório que se vê nos provérbios, nos ditos folclóricos, nas
profecias religiosas;
--- convivência pacífica entre
a norma cultíssima e o linguajar solto, barbárico, bravio, da vida real;
--- originalidade na criação
de nomes próprios (pessoas, lugares)
... e mais alguns que não me
ocorrem agora.
As frases que citei acima, no entanto, mostram Rosa em
pleno domínio de um recurso de estilo que não é dele, é da Literatura em si – o
recurso de criar um “clima mental” através do uso de palavras e frases que
pertencem mais ao universo mental do Personagem do que ao do Autor (embora
este, obviamente, tenha acesso a ambos).
(ilustração: Luís Jardim)
Num conto sobre crianças, ele sabe reconstituir esse
mundinho infantil de ingenuidades e de sutilezas percebidas, de linguagem ora
infantilmente afetiva ora pomposamente semi-adulta. Estamos aqui de volta ao
mundo de ingenuidades geniais da Nhinhinha de “A Menina de Lá”, dos achados de
linguagem infantil – que no caso de Nhinhinha divergem para a “santidade”, e no
de Brejeirinha para a literatura...
Comentado aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/05/4580-menina-de-la-2152020.html
Essa pomposidade no bom sentido é que constitui o núcleo
do conto, que é a história do “Audaz Navegante” que Brejeirinha vai inventando
em voz alta, como uma novela de rádio criada de improviso, e até
interativamente porque as irmãs e os primos dão palpite o tempo todo.
E o estilo de Brejeirinha (uma menina que fala “não detendo em si o jato de contar” é
um esboço de prosa adulta concebida meio às cegas, meio na inocência, por quem
está começando a domar o cavalo brabo do idioma:
O Aldaz Navegante, que foi descobrir os outros lugares valetudinário.
Ele foi num navio, também, falcatruas. Foi de sozinho. Os lugares eram longe, e
o mar. O Aldaz Navegante estava com saudade, antes, da mãe dele, dos irmãos, do
pai. Ele não chorava. Ele precisava respectivo de ir. (p. 117)
E nessas pequenas amostras a gente já percebe a
existência de estilo. Brejeirinha é uma menina esperta, domina a leitura (“Pois eu li as 35 palavras no rótulo de
caixa de fósforos...”) e um dos seus cacoetes estilísticos é essa frase que
termina com uma palavra bombástica de encerramento antes do ponto final,
subitâneo.
(ilustração: Poty)
O estilo é sempre o resultado da soma entre o que a gente
sabe fazer e o que não consegue.
Note-se que ela usa o termo aldaz, com L, e isto, embora não esteja bem claro no texto de Rosa,
nos permite inferir que Brejeirinha já andou rabiscando seus folhetinzinhos,
com sua própria ortografia e letra cursiva. Quando ela diz a palavra em voz
alta, mesmo que a pronúncia seja a mesma, o que ela tem na memória visual é sua
própria palavrinha manuscrita.
A sutileza de Rosa está justamente em escolher um “erro”
que, mesmo apresentado na fala oral, só poderia existir na forma escrita. Me
lembrou um conto policial de Melville Davisson Post, em que o crime é
esclarecido quando o detetive vê, num bilhete atribuído a um homem surdo, um equivoco
de pronúncia que um surdo, totalmente dependente da palavra escrita, não
cometeria.
E quando as crianças saem por fim para brincar lá fora, o
que encontram na beira do rio? Um enorme cagalhão bovino, depositado. E passam
a enfeitá-lo de flores, gravetos, como cravando velinhas em bolo de chocolate
natalício. Brota nelas a convenção instantânea de que é aquele o Aldaz
Navegante, até porque o rio está engrossando com a chuva nas cabeceiras, e as
águas pouco a pouco se aproximam daquela “coisa
vacum”, daquela “obra pastoril”,
daquela “trampa seca de vaca”,
prometendo arrastá-la pelos oceanos da aventura.
As vagarosas travessuras desse grupinho de crianças
reproduzem a infância de Rosa em Cordisburgo, seus boizinhos-de-chuchu e outros
brinquedos rurícolas. E ao mesmo tempo o conto é uma reflexão bem-humorada
sobre o ato de criar e de contar histórias, sobre a Literatura enfim, sobre o
mundo onde Brejeirinha começa a se aventurar.
Quando alguém lhe questiona por que inventa histórias (o
nosso sonoro mantra existencial-adulto: Por
Que Fazer Literatura?), Ciganinha mata a charada:
Porque depois pode ficar bonito, ué! (pág. 117)
No campo do real e do fantástico, ela se sai com uma
ótima ilustração (por intuição infantil) do problema científico da Ausência de
Prova Negativa. (Em resumo: se encontrarmos uma espécie alienígena, isso prova
que existe vida extra-terrestre, é a prova-positiva; mas se nunca a
encontrarmos, isso não prova que não existe; é impossível produzir, pela mera experiência,
essa prova-negativa).
Falou que aquela, ali, no rio, em frente, era a Ilhazinha dos Jacarés.
“ – Você já viu jacaré lá?”, caçoava Pele. “ – Não. Mas você também nunca viu o
jacaré-não-estar-lá. Você vê é a ilha, só. Então, o jacaré pode estar ou não
estar...” (pág. 119)
Ficção requer essa capacidade de pensar como o
personagem, usar a linguagem do personagem, nas limitações do personagem, dando
a ele (a ela, no caso) as limitações de ser quem é, e ao mesmo tempo a
necessária chama de inteligência, esperteza, sensibilidade, expressão, que a
transforme num personagem interessante,
o que já é outra coisa.
Brejeirinha, como todo autor de folhetim, tira da cartola
o coelho que for necessário para amarrar as pontas da narrativa, e o público
não é bobo.
“(...) O Aldaz Navegante, o perigo era total, titular... não tinha
salvação... O Aldaz... O Aldaz...
– Sim. E agora? E daí? – Pele intimava-a.
– Aí? Então... então... Vou fazer explicação! Pronto. Então, ele
acendeu a luz do mar. E pronto. Ele estava combinado com o homem do farol.
Pronto. E...
– Na-ão! Não vale. Não pode inventar personagem novo, no fim da
história, fu!
Qualquer lente de Escrita Criativa faria a mesma
prescrição, é ou não é?
E Brejeirinha, já meio afobada, pressionada pela
ansiedade do editor, a expectativa do público o cenho franzido da crítica
especializada, resolve encerrar sua história de maneira hollywoodiana,
orquestral:
“Então, pronto. Vou tornar a começar. O Aldaz Navegante, ele amava a
moça, recomeçado. Pronto. Ele, de repente, se envergonhou de ter medo, deu um
valor, desassustado. Deu um pulo onipotente... Agarrou, de longe, a moça, em
seus abraços... Então, pronto. O mar foi que se aparvolhou-se. Arres! O Aldaz
Navegante, pronto. Agora, acabou-se, mesmo: eu escrevi: Fim!” (pág. 121)