segunda-feira, 20 de abril de 2009

0994) Dylan on the road (24.5.2006)



Reza a lenda que numa noite de 1966 Bob Dylan vinha pilotando sua moto por entre as colinas de Woodstock, onde tinha sua casa de campo. Um pouco atrás dele vinha sua mulher, Sara, ao volante de um dos automóveis do casal. A estrada estava molhada de chuva, a moto derrapou, e Dylan foi projetado de encontro ao tronco de uma árvore. Sara freou, trouxe o carro para o acostamento, e correu para socorrê-lo. Ao abaixar-se sobre seu corpo, percebeu, pelo ângulo, que ele tinha quebrado o pescoço, e não mais respirava. O maior gênio da música folk e do rock-and-roll norte-americano dos anos 1960 estava morto.

Ou melhor – não é bem assim. O que muita gente não sabe é que na fração de segundo em que seu corpo se chocou com a árvore, Dylan viu-se transportado para um local estranho, muito parecido com os bares enfumaçados do Village que poucos anos atrás eram o único espaço onde lhe permitiam cantar com sua voz roufenha as canções folclóricas que ele, hereticamente, escrevia por conta própria. O bar estava vazio, cadeiras empilhadas sobre as mesas, mas sentado num banquinho no palco estava um homem com colete preto bordado a ouro, chapéu de cowboy, um rosto enrugado, e um bigodinho fino que lembrava o do ator Vincent Price. “Estou morto?” perguntou Dylan. “Por enquanto não”, disse o desconhecido. “Você está num ponto de divergência, onde tem a chance de escolher seu futuro. Como gostaria de estar, digamos, aos 65 anos?” “On the road,” disse ele sem pestanejar. “Cantando toda noite, para pequenas platéias, sem nunca repetir o mesmo show”. O desconhecido sorriu: “Concedido”. No bosque de Woodstock, o cantor mexeu-se, resmungou algo indistinto, e sua esposa deu um suspiro de alívio.

Hoje, dia em que completa 65 anos, Dylan está com a vida que pediu a Deus. Acompanhado há anos pelos mesmos músicos, ele realiza o que a imprensa batizou “The Never Ending Tour”, a Turnê Sem Fim. Viaja de ônibus, de cidade em cidade, e canta às vezes em cinco cidades diferentes numa semana. Agora em maio ele deu uma parada, mas em junho vai à Europa. Dia 24 em Kilkenny, dia 25 em Cork, dia 27 em Cardiff, dia 28 em Bournemouth, dia 30 em Roskilde, dia 2 de julho em Gelsenkirchen, dia 3 em Lille, dia 4 em Clermont, dia 6 em Cap Roig, dia 7 em Valência, dia 8 em Madrid, dia 9 em Valladolid... Se quiser ver a agenda completa, vá no saite Expecting Rain (http://www.expectingrain.com/), onde me mantenho informado.

Aos 65 anos, Dylan nunca repete o mesmo show. Os músicos sabem seu repertório de cor, de modo que se meia hora antes de subir ao palco ele avisar que vai cantar antiguidades como “Chimes of Freedom” ou “Love Minus Zero (No Limit)”, o pessoal acompanha sem precisar de ensaio. Quanto aos grandes sucessos como “Mr. Tambourine Man”, “All along the watchtower” ou “Just Like a Woman”, ele tem o costume de mudar o tom em cima da hora, para evitar que a banda ligue o piloto automático. Happy birthday, Mr. Bob.

0993) Elino Julião (23.5.2006)



Um domingo simpático de sol e céu azul no Rio de Janeiro. Acordei, tomei café folheando o jornal, liguei o computador para checar meus emails, e na lista de assuntos a primeira frase que me chamou a atenção foi: “Morreu Elino Julião”. Foi o quanto bastou para o dia adquirir a tonalidade tenebrosa e lúgubre da Visão de Toledo de El Greco.

Lembrei os anos que passei acompanhando o trabalho de Fernando Moura e Antonio Vicente para pesquisar e escrever Jackson do Pandeiro – o Rei do Ritmo (Editora 34, SP, 2001). O esforço para localizar documentos, checar versões conflitantes dos fatos. O trabalho insano de rastrear e entrevistar pessoas idosas, de fala trôpega e memória instável. Imagino que quando eu estiver com 80 anos, pesquisadores virão bater à minha porta. “O sr. ouvia Elino Julião? Viu algum show dele?” Vi, sim. Vi pela última vez o grande forrozeiro num memorável show no São João de Campina, creio que em 1999. Vi à distância, tomando cerveja com ribaçã numa barraca, e acompanhando pelo telão Elino encapetado, lá e cá no palco, com um paletó amarelo visível a dez quilômetros de distância. Não vi de perto, amigos, porque a multidão não permitiu. Era gente demais.

Bons tempos, em que os principais shows do São João da Paraíba eram de forrozeiros, e não de cantores românticos paulistas com chapéu de cowboy. Elino Julião desfiou seus grandes sucessos: “Na Tamarineira” (“Só por te amar, tô dessa maneira, e na Tamarineira, sei que vou parar...”), “O Rabo do Jumento” (“Você disse que é brabo, Nascimento... Você cortou o rabo do jumento...”), “Forró da Coréia” (“Só tem véia, só tem véia, no forró da Coréia...”), “O Burro” (“Vamos dar valor a quem trabalha, vamos dar valor a quem dá murro... O burro é quem merece uma medalha, o burro é quem trabalha, o burro é quem dá murro”)..., “Puxando fogo” (“Pra ter animação na festa, São João só presta puxando fogo”). Muitas. A lista não cabe aqui.

Elino (que ia fazer 70 anos em novembro) era um caboclo encarcado, do olho aceso, cheio de eletricidade, e com uma voz extensa de quem aprendeu a cantar sem microfone. Seus forrós tinham a vivacidade alegre das canções feitas em cima de boas idéias. Nada a ver com tanto forró que se faz por aí – uma justaposição, em linha de montagem, de clichês de letra, clichês de melodia e clichês de arranjo. Não vou ficar aqui lamentando a desatenção da imprensa, porque eu mesmo tenho esta coluna há três anos e nunca falei dele. Achei que não precisava. Eu é que ficaria orgulhoso se um cara como ele falasse um dia de mim, ou, melhor ainda, gravasse um forró meu (que nunca mandei, por timidez incurável). Daqui a 30 anos, jornalistas jovens baterão à minha porta. “Seu Braulio, o que era esse tal de forró?” E eu direi: “Rapaz, era a coisa melhor do mundo, e foi um produto de exportação nosso, antes que alguém começasse a nos vender a idéia de que a música dos cowboys ricos de São Paulo era superior à nossa”.

0992) Chindogu (21.5.2006)


Em japonês, “chindogu” significa “objeto estranho”, mas talvez a melhor palavra para traduzi-lo seja o neologismo criado por Paulo Leminski: “inutensílio”. Ao que se diz, o conceito foi criado pelo escritor e inventor Kenji Kawakami num livro publicado na década de 1990 sob o título 101 Invenções Inúteis Japonesas: A Arte do Chindogu. Kawakami imagina (e fabrica) acessórios do cotidiano que são práticos, lógicos, e ao mesmo tempo absurdos, incapazes de ser utilizados. Como por exemplo o seu chapéu para alérgicos, que vem com um rolo da papel higiênico montado no topo. Para sujeitos com rinite, como eu, que às vezes passam o dia inteiro espirrando e assoando o nariz, pode haver algo mais providencial? E menos utilizável?

Tem o protetor contra manchas de molho, uma espécie de “babador” circular em volta do rosto inteiro, que ninguém teria coragem de usar nem em casa, quanto mais num restaurante. Tem a Roupa de Banho Completa, uma espécie de bolha de plástico para pessoas com alergia a água. Tem o Esfregão Para Bebês: enquanto se arrastam de quatro, eles dão polimento na cera do assoalho. Para pouparmos tempo, leitor, vá no saite: http://www.chindogu.com/, ou leia esta matéria: http://www.japaninc.net/article.php?articleID=762.

A primeira coisa que me veio à memória ao ver os chindogus de Kawakami foram as invenções abstrusas do pessoal da revista Mad, como os parangolés mecânicos de Al Jaffee ou as armas dos espiões (“Spy vs. Spy”) de Alex Prohias. Há também as engenhocas de Rube Goldberg, já comentadas aqui (“A economia Rube Goldberg”, 10.12.2003), e as invenções malucas do marselhês Jacques Carelman, cujo Catálogo de Objetos Inviáveis foi editado em 1976 pela Nova Fronteira...

Vou parar a enumeração, pois este jornal inteiro não teria espaço. Estes, caro leitor, são indivíduos que vivem num mundo mais belo e mais livre do que o nosso. Pressionados por uma cultura onde tudo tem que ter valor (seja de uso ou de troca), onde tudo responde ao Mercado, onde tudo tem utilidade e função, estes discretos cronópios correm todos para o prato oposto da balança, e dedicam-se a produzir inutensílios, desaparelhos, futilidades domésticas.

É um gesto filosófico e um gesto político. Com a palavra Kawakami: “Um chindogu é um objeto inútil, mas nem todo objeto inútil é um chindogu” E ele enumera características para que algo seja um chindogu: “Um chindogu não é para ser usado de verdade. Um chindogu tem que ser algo que possa ser materialmente fabricado. Cada chindogu traz em si o espírito da anarquia. Um chindogu tem que ser um objeto simples, da vida cotidiana. Um chindogu não pode ser vendido. Um chindogu não pode ser criado por razões apenas humorísticas. Um chindogu não pode servir para propaganda. Um chindogu não deve servir para piadas obscenas ou vulgares. Um chindogu não pode ser patenteado. Um chindogu não pode aderir a preconceitos.” Pois é. Quem foi que disse que o mundo estava perdido?

0991) O azinhavre da alma (20.5.2006)




Certas pessoas parecem ter uma espécie de azinhavre na alma, uma gastura, um amargor entranhado cuja existência talvez nem elas mesmas percebam. 

Esse amargor não é a Maldade, pois algumas delas são pessoas escrupulosamente éticas, corretas, impecáveis. Mesmo assim, quando nos relacionamos com elas acabamos sentindo, cedo ou tarde, aquela acidez. 

Por mais que a gente tente dissipar com brincadeiras, amenidades e água mineral, acaba absorvendo aquele mal-estar, aquela sensação de argueiro invisível grudado no olho.

Por algum tempo pensei que isso fosse frustração, porque conheci gente que nunca fez outra coisa senão dar com a cara na porta, chutar na trave. É de se esperar que com o passar dos anos vá se acumulando dentro delas aquele “gosto amargo de infelizes”, aquela saudade que se sente após um futuro bom que foi ultrapassado sem ter existido. 

Mas, também não é só isso. Também conheço gente bem-sucedida, escanchada em cima de um Everest de triunfos, gente que se refestela nas próprias memórias como um Tio Patinhas nadando em seu tanque de moedas. Têm todos os motivos para a generosidade e a compaixão. Vistas de longe parecem ter a alma coberta de açúcar e mel-de-engenho, mas quando conseguimos ter um vislumbre dessa alma, recuamos. Ali está o terrível vazamento de vinhoto, brotando às ocultas de alguma tubulação defeituosa da usina.

Riem muito, mas em geral é às custas de alguém. Elogiam, mas sempre com alguma ressalva cruel. Fazem favores, mas sempre com aquela pose guardada de quem pretende cobrá-los na primeira oportunidade. Catalogam as pessoas pelos defeitos ou problemas que elas têm: “Fulano? Acho que sei quem é, não é aquele que é brigado com o pai?...” 

Parecem viver numa busca silente e ansiosa por coisas que não dão certo, e observam o comportamento das outras pessoas como quem examina seus ombros em busca de sinais de caspa.

Quando lhes fazemos uma pergunta um pouco mais pessoal, quando queremos saber algo mais sobre elas mesmas, dão-nos dois tipos de resposta. 

Pode ser um auto-elogio, daqueles tão pré-moldados e definitivos que não nos deixam saída senão concordar com um “hum-hum” qualquer e tentar mudar de assunto; ou pode ser uma auto-depreciação azeda, com tintas de melodrama, quase que nos obrigando a mentir: “Que é isso, eu acho que você tá super-bem...” 

O mundo tem muita gente assim. Ou talvez seja mais honesto dizer que todo mundo tem momentos assim, fases da vida em que fica assim.

Reze para fugir disso, caro colega; porque eu rezo tanto! O presente texto é uma dessas orações, uma oraçãozinha agnóstica que dirijo a mim mesmo ou a alguma Potestade bondosa que por acaso esteja à escuta. 

O velho Augusto Matraga, ao limpar-se de seu próprio azinhavre, dizia: “Jesus, manso e humilde de coração, fazei meu coração semelhante ao vosso”. Se você não crê em Jesus, colega, redija sua própria prece. Mas não deixe essa coisa tomar conta.






0990) As fantasias do passado (19.5.2006)




Na adolescência fui um bom leitor de romances históricos, embora confesse envergonhado que não li clássicos como Sir Walter Scott. Li seu maior seguidor, Conan Doyle, e sempre acreditei que aquela Idade Média ou aquela Era Napoleônica descrita em seus livros era – o termo é inevitável – realista. 

O mesmo ocorria com os romances de capa-e-espada de Michel Zevaco, que, simpatizante do socialismo, criava “vastos painéis sociais” onde ações individuais e forças coletivas se entrechocavam para criar a História. 

Qual não era minha surpresa quando, anos depois, estudando história da França, eu reencontrava todos aqueles personagens que imaginava terem sido inventados por Zevaco.

Eu poderia prosseguir falando em Alexandre Dumas, Tolstoi, Maurice Druon, e tantos outros, mas passemos adiante. Um romance histórico é uma obra realista? Em princípio, sim, se o autor procurar informar-se o melhor possível sobre a época escolhida. Não basta ambientar uma história no Egito dos faraós e depois contar tudo como se acontecesse na esquina daqui de casa. 

É preciso conhecer o espírito da época, a mentalidade do povo, quais as idéias que predominavam, os fatos históricos mais importantes, e, acima, de tudo, aquilo que hoje chamamos de “pequena História”: a vida cotidiana, os hábitos, os meios de transporte, a alimentação... 

Como se iluminavam as casas à noite? Quem saía na chuva, usava o quê? Como eram as saudações entre pessoas de diferente idade, diferente classe social? Como eram dispostos os aposentos de uma casa? Quais as moedas usadas, quais as armas, quais os calçados, quais os remédios? Com que brincavam as crianças? E assim por diante.

Por mais que a pesquisa seja detalhada (e, tiremos o chapéu, os romancistas históricos de hoje fazem bem seu dever de casa) todo o resto é fantasia. Queiramos ou não, não há como sabermos como eram as pessoas daquele tempo. Imaginar o passado remoto é tão especulativo como imaginar o futuro, como faz a ficção científica. 

Ariano Suassuna costuma contar um episódio divertido de uma peça de teatro que viu certa vez num circo. A história se passava na Idade Média e de repente um personagem dizia para o outro: “Nós, que somos cavaleiros medievais...” E ele pergunta: “Oxente, o cara já sabia que era medieval?”

Este pequeno deslize é típico do romance histórico, mesmo o de melhor qualidade literária. Queira ou não, o autor trata seus personagens do ponto de vista do século 21, e às vezes dá um escorregão como este. 

Pensar como eram as pessoas no Brasil Holandês, ou como eram na Espanha muçulmana ou em Roma antiga, é um exercício de fantasia. Estes livros têm uma superfície realista, mas no fundo são obras de imaginação, tanto quanto O Senhor dos Anéis. Se o autor os escreve como se fosse um catálogo de fatos, corre o risco de ser chato. Se deixa a imaginação voar livre, seus gregos ou romanos ficarão cada vez mais parecidos com ele próprio.






0989) A cidade imaginária (18.5.2006)



Um tipo de literatura que tem crescido cada vez mais nas últimas décadas é a Literatura Descritiva, em contraposição à Literatura Narrativa. Acho que estes dois termos são claros o bastante, e expressam duas funções básicas da mente humana. A grande tradição romanesca do século 19 parece ter conseguido o equilíbrio ideal entre as duas. Dali em diante, parece que o negócio desandou, e o “descritivismo” está se tornando uma verdadeira mania. Um exemplo típico disto é a obra de J. R. R. Tolkien, que batizei de “ficção catalográfica”: uma enorme descrição de um mundo imaginário, com sua astronomia, sua geologia, sua geografia e corografia, suas línguas e dialetos, suas raças humanas, semi-humanas e animais, suas dinastias de reis e imperadores, suas intermináveis listas de batalhas e conquistas. Desse mapa descritivo e monumental, Tolkien ainda conseguiu extrair algumas Narrativas que fizeram o seu sucesso, como O Senhor dos Anéis.

Certos autores (penso em Georges Perec) acham que às vezes inventar um ambiente é um processo que se basta a si mesmo, e que não é preciso contar histórias para justificá-lo. É o caso da literatura utópica, desde Platão a Thomas Morus. Um exemplo recente é o da cidade imaginária de Urville, criada por Gilles Tréhin, um rapaz que vive na cidade francesa de Cagnes-sur-Mer. Gilles é um autista, ou seja, um daqueles indivíduos que parecem viver fechados em si mesmos, extremamente concentrados em sua própria atividade mental e com pouca ou nenhuma vontade de se relacionar com o mundo exterior. Claro que existem gradações em casos assim, e Gilles é “extrovertido” o bastante para escrever e falar sobre si mesmo e sobre a cidade que inventou.

A princípio, era uma cidade que ele pretendia reconstruir inteiramente com peças de Lego, numa enorme maquete. Depois, chegou à conclusão de que era mais simples e mais rico produzir um conjunto de textos e desenhos. A cidade foi crescendo, e não parou mais de crescer. O processo todo começou por volta de 1984, e até agora Gilles produziu cerca de 250 desenhos muito detalhados, todos eles derivados de cinco plantas básicas que incluem todos os setores da cidade. Quem quiser dar uma olhada nesta ciclópica aventura, vá aqui: http://urville.com/.

A empreitada de Gilles mistura arquitetura, urbanismo e literatura, porque ele escreve a história da cidade, sua evolução, os fatos importantes que aconteceram ao longo de sua história. É como se um jogo tipo Sim City fosse criado no papel por um único indivíduo. O fato de Gilles ser autista, ou portador da Síndrome de Asperger, parece indicar que esta síndrome tem às vezes como conseqüência a hipertrofia de uma função mental em detrimento de outras. No presente caso, Gilles é um “descritor” de mão-cheia. A excepcionalidade de sua missão não deve obscurecer o fato de que isto que ele faz hoje está se encaminhando para ser no futuro um gênero artístico autônomo, como o romance histórico ou o relato utópico.

0988) O crime e as vidraças quebradas (17.5.2006)



A polícia norte-americana tem adotado no combate ao crime aquilo que os especialistas chamam de “broken window theory”, a teoria das vidraças quebradas. Segundo ela, a maneira mais eficaz de prevenir o surgimento de crimes graves é reprimir os pequenos, antes que eles evoluam para dar lugar aos grandes. Suponhamos um bairro onde as casas fechadas ou prédios abandonados começam a ter as vidraças quebradas, a ser invadidos pelo mato, a ter suas paredes cobertas de graffiti. Quem passa pela rua vê grupos de mendigos rodeados de caixas de papelão, praticamente habitando aquele espaço. Por todo lado há sinais de abandono e desordem: cantos de parede transformados em mictório, lixo amontoado e não recolhido, postes com lâmpadas quebradas... Todos estes sinais de desorganização e descaso (diz a teoria) são o ambiente ideal para a ocorrência de crimes mais graves como assaltos, tiroteios, consumo de drogas a céu aberto, e assim por diante.

Dizem os defensores da teoria: “Nossas percepções afetam a realidade. A aparência de desordem acaba produzindo um grau de desordem equivalente. Sinais visíveis de que existe ausência de controle social num bairro podem transformar esse bairro num terreno fértil para o crescimento do crime. Uma vidraça que fica quebrada durante muito tempo é um sinal de que ninguém está ligando, e de que se alguém quebrar outras vidraças vai ficar tudo por isso mesmo”. Existe um longo debate a este respeito; uma das críticas principais a esta teoria é de que ela conduz a um aperto policial cada vez mais forte nos bairros mais pobres, onde estas pequenas transgressões têm mais probabilidade de aparecer.

Esta questão tem dois lados, e um exemplo que me parece útil é o caso das pichações de muros nas grandes cidades. Não me refiro aos graffiti criativos, sejam verbais ou visuais; me refiro à mania narcisista de rabiscar compulsivamente aqueles monogramas ilegíveis em qualquer superfície indefesa. Quem faz isto são dois grupos: rapazes pobres, sem oportunidades na vida, que se sentem excluídos da cidade e querem revidar incomodando-a; e rapazes de classe média que se julgam donos da cidade e portanto autorizados para “zoar” impunemente, porque se houver qualquer problema papai vai buscá-los na Delegacia e dar um esbregue no Delegado (ver “Pichadores”, 29.4.2003).

Minha geração tem uma parcela de culpa nisto, porque, diante do totalitarismo de uma ditadura e das hipocrisias dos políticos, das igrejas e das escolas, glorificávamos às cegas qualquer tipo de transgressão, de desobediência, de marginalidade, de desrespeito, de “ser do contra”. “Ser do contra” acabou se transformando num valor em si, mas em vez de conduzir à Revolução Socialista conduziu a isto: um capitalismo triunfante e suicida em que rapazes pobres quebram vidraças porque nunca poderão morar num prédio como aquele, e rapazes ricos quebram vidraças porque se for preciso papai vai lá e paga.

0987) As brumas da História (16.5.2006)




(R. A. Lafferty)

Num artigo sobre Roma Antiga no número de fevereiro da The New York Review of Science Fiction, Darrell Schweitzer faz alguns comentários sagazes a respeito das mudanças nos conceitos de História e de relato histórico, ao longo dos séculos. 

Ele está comentando o livro The Fall of Rome, de R. A. Lafferty, escritor erudito e inclassificável que tornou-se famoso no mundo da ficção científica produzindo dezenas de livros esquisitos e memoráveis, que não se pareciam com nada escrito por quem quer que fosse. 

Era um dos “oddball stylists” que comentei nesta coluna (“Os estilistas excêntricos”, 30.11.05). Lafferty escreveu uma história da queda de Roma repleta de diálogos improváveis, aparições de fantasmas, encontros entre personagens cuja existência nenhum historiador registra...

Diz Schweitzer que no período histórico sobre o qual Lafferty está escrevendo, ou seja, o final do século IV d.C., 

“...a História era uma das modalidades do discurso literário, juntamente com o diálogo, o poema épico, a epístola, a sátira, e, lá embaixo da pilha, o romance ou novela, que nesses tempos clássicos tendiam a ser histórias escritas em grego rudimentar. (...) Os antigos pensavam na História como uma espécie de épico em prosa. Era perfeitamente aceitável inserir longas falas atribuídas aos personagens, se isto era o que a pessoa poderia ter dito, ou deveria ter dito. A idéia da antiga historiografia, como eu a entendo hoje, quase dois mil anos depois, era moldar e reconstruir o significado do que ocorrera no Passado. Não era uma simples reportagem, mas algo mais próximo à codificação de um mito”.

Será preguiça mental minha, ou é exatamente isto que os nosso romances históricos de hoje em dia fazem? O romance histórico é considerado um gênero mais realista do que (por exemplo) a ficção científica ou os romances de vampiros, mas somente pelo fato de que nele não aparecem coisas “que não existem”, como alienígenas ou nosferatus. 

Todos esses romances sobre a Idade Média, sobre o Rei Artur, sobre os Faraós egípcios, sobre a Inglaterra vitoriana, são vendidos como literatura realista, e a maioria das pessoas que os lê acredita que inventado, ali, só o elenco principal; todo o resto corresponde escrupulosamente à verdade.

Não é bem assim. Mesmo depois de esforços gigantescos para transformar a História numa ciência, cabe sempre à nossa imaginação (mesmo uma imaginação cientificamente cautelosa) a tarefa de preencher as lacunas, sempre maiores e mais vastas do que as áreas cobertas de informação. Ao preenchê-las, acabamos inconscientemente criando fatos, pessoas, situações que têm a ver como a época em que escrevemos, não com a época descrita. 

Como em certas pinturas renascentistas, em que cenas da crucificação de Cristo mostravam personagens vestindo roupas da época do pintor, e nem este nem o seu público se incomodavam com o anacronismo.