(Bermini - estátua de Ludovica Albertoni)
Um dos textos cruciais da nossa literatura é o Cântico dos Cânticos de Salomão. Digo “cruciais” ao pé da letra, no sentido de cruzamento, encruzilhada, ponto onde dois caminhos divergentes se tocam por um segundo. Esses caminhos são a comunhão afetiva com outro ser humano e a comunhão mística com Deus – ou seja, o Amor e a Fé. Desde a infância eu relia fascinado (sob o casto pretexto de “estar lendo a Bíblia”) aqueles versos onde o poeta sai descrevendo sua Amada, fala dos cabelos, dos olhos, do pescoço, dos peitos... Ai de mim, depois dos peitos o texto dava uma guinada de 90 graus, mudava de assunto. Mas versos assim ainda ecoam como uma sextilha de cantador inspirado: “Eu disse: subirei à palmeira, e colherei os seus frutos; e os teus peitos serão como dois cachos de uvas; e o cheiro de tua boca como o dos pomos...”
Estes versos me vêm à mente quando leio agora, numa antologia de poesia espanhola do Século de Ouro, estes belos tercetos finais de um sonetista anônimo, onde o “Tu” a quem se dirige é o próprio Deus: “Muéveme, al fin, tu amor, y en tal manera, / que aunque no hubiera cielo, yo te amara, / y aunque no hubiera infierno, te temiera. // No me tienes que dar por que te quiera; / pues aunque lo que espero no esperara, / lo mismo que te quiero te quisiera.”
Os grandes poetas místicos são justamente estes, que usam para se dirigir a Deus a mesma retórica de intensa paixão dos grandes poetas eróticos. E por que isto? Porque, por mais afastadas que pareçam, não existem duas condições psicológicas mais assemelhadas do que o amor por uma mulher e a fé em Deus. São os dois exemplos mais cabais do caso em que Desejo é convertido em Certeza por um simples gesto da Vontade. Esta certeza muitas vezes dá com os burros nágua: a paixão não é correspondida, como a de Dante por Beatriz. Mas ainda assim o poeta dá um jeito de escrever um catatau de milhares de versos provando que Deus permitiu sua entrada no Paraíso e que lá estava Beatriz à sua espera.
Certeza é certeza, e não existe certeza maior do que a de um apaixonado, seja ele o poeta Neruda cantando os atributos físicos de sua musa, seja San Juan de la Cruz desmanchando-se em estrofes de ardor pelo seu Amado. Nada garante a um apaixonado que seu amor é correspondido ou mesmo que tem razão de ser, e nada garante ao místico que Deus existe de fato. Isto, no entanto, não abala essa Certeza Absoluta, que não tem outro aval que o de si própria. Nossos poetas religiosos modernos (penso em Jorge de Lima, em Murilo Mendes) já não se dirigem a Deus em termos diretamente eróticos. A modernidade trouxe consigo essa cisão entre corpo e alma. Mas os poetas místicos católicos ficarão para sempre como o melhor exemplo de uma poesia movida a Fé, e de uma Fé movida pelos mesmos motores hormonais que movem o Amor: a Certeza do próprio desejo físico, o mais intenso (e aqui pra nós, o menos dispendioso) dos estimulantes químicos.