sábado, 24 de agosto de 2024

5095) A literatura e seus ismos (24.8.2024)




Uma das coisas mais fáceis do mundo é inventar um nome para uma doutrina estética, pregar nesse nome meia dúzia de características meio abstratas, e pronto: está criado mais um movimento artístico (ou filosófico) que será discutido daqui a cem anos com toda seriedade. 
 
Como aconteceu com o Surrealismo, o Impressionismo, o Expressionismo, o Cubismo, o Simbolismo, o Modernismo, e vários outras surtos de criatividade (e de teorização). 
 
Estes rótulos foram aplicados a conjuntos de obras na literatura, no cinema, nas artes plásticas. Alguém pode até não gostar deles, mas não pode negar o impacto que tiveram. Eles e muitos outros fazem parte da História. 
 
Uma consequência disto, uma espécie de efeito colateral, são os numerosos movimentos artísticos que foram definidos com um rótulo desse tipo mas por um motivo ou outro nunca decolaram. Alguns por falta mesmo de repercussão. Outros porque não tinham intenção de decolar. Outros, ainda, porque eram fictícios, foram inventados por um autor para serem usados pelos personagens de uma narrativa. 



(Fernando Pessoa) 


Tenho folheado nos últimos tempos a obra de Fernando Pessoa e me lembro do Sensacionismo que ele inventou e propôs. Pessoa era, além de poeta excepcional, um teórico de primeira linha. É um dos poucos poetas que produziram páginas de teoria e de comentários literários à altura de sua poesia. 
 
Falando em nome de seu heterônimo Álvaro de Campos, Pessoa produziu vários textos defendendo a idéia do Sensacionismo, mas, ao que eu saiba, o movimento nunca “pegou”, não produziu seguidores em número e qualidade suficientes para se propagar. 
 
A intenção de Pessoa era produzir um movimento de verdade? Ou era apenas um gesto literário a mais, o gesto de um poeta desfraldando uma bandeira apenas para que o sol a veja? 


 
Em Os Detetives Selvagens (1998) Roberto Bolaño descreve com riqueza de detalhes pitorescos a vida dos poetas marginais ou poetas independentes (como se dizia aqui no Brasil) da Cidade do México. Liderados pela dupla Arturo Belano e Ulises Lima, eles criam um movimento a que dão o nome de “realismo visceral” ou “real-visceralismo”. 
 
A vanguarda fictícia de Bolaño é uma homenagem à clef ao seu amigo Mario Santiago Papasquiaro (o “Ulises Lima” do romance) e seu “Infrarrealismo”.  Santiago morreu em 1998, e seu Infrarrealismo não chegou a provocar (pelo que sei) nenhum grande tremor nos sismógrafos literários do Ocidente. Bolaño (=”Arturo Belano”) resgatou a si mesmo e ao colega de juventude nesse romance caudaloso, irônico, romântico, visceral. 
 
O México foi palco (desta vez na vida real) ao Estridentismo que ali ferveu durante a década de 1920, e que pode não ter deixado muitas marcas além do excelente nome. 
 
Nome é importante, e naquela mesma década o Brasil estava regando a plantinha do Penumbrismo, uma poética intimista cultivada, entre outros, pelo paulista Guilherme de Almeida, autor dos inesquecíveis versos: 
 
Busca a Sombra, o Silêncio, e a Solidão: três “esses”,
três serpentes do teu paraíso interior;
colhe o fruto, que, assim, tu mesma te ofereces:
chama-se Pensamento, e é até melhor que o Amor.

 

 

 
Outro movimento satírico é o Bokononismo, criado por Kurt Vonnegut Jr. em seu romance Cat’s Cradle (“Cama de Gato”, 1963). É uma religião fictícia que vigora na ilha fictícia de San Lorenzo, e serve como pretexto para que o autor faça citações constantes dos mandamentos desse culto, que tem numerosos conceitos próprios, alguns deles muito engraçados e absurdistas. 
 
Um pouco da inspiração do Bokononismo lembra as idéias excêntricas do filósofo De Selby, criado por Flann O’Brien em seus romances absurdistas The Third Policeman (1967) e The Dalkey Archive (1964). De Selby nunca aparece pessoalmente, mas os personagens o citam o tempo inteiro; e infelizmente ele não batizou sua ideologia (que seria um “desselbismo” ou coisa equivalente). De Selby afirma que a noite surge por uma gradual acumulação de “ar preto”. Diz também que como a luz gasta um tempo infinitesimal para se deslocar no espaço seria teoricamente possível colocar espelhos frente a frente em tal número que ele conseguiria ver como era seu próprio rosto aos doze anos de idade. 
 
Inventar seitas literárias desse tipo é um passatempo inofensivo, talvez, mesmo quando ele tem na mistura um certo ácido satírico, e é exercido às custas do comportamento pomposo dos intelectuais cujos “ismos” são colocados numa redoma e esta num altar. 



(Samuel Beckett) 
 

Aos 26 anos de idade, Samuel Beckett voltou ao Trinity College, de Dublin, onde tinha estudado, e fez uma palestra em torno do apócrifo movimento do “Concentrismo”, movimento que teria sido criado pelo fictício poeta Jean du Chas. A palestra de Beckett foi publicada pela Menard Press em dois excertos, respectivamente em 1986 e 1990. 
 
O nome da Menard Press, uma pequena editora britânica de poesia e de textos de vanguarda, é uma homenagem ao famoso personagem de Jorge Luís Borges, Pierre Menard, o homem que queria ser capaz de escrever o Dom Quixote – não de copiá-lo, ou de transcrevê-lo de memória, mas de redigir, espontaneamente, parágrafos iguais aos de Cervantes, páginas, capítulos inteiros... 




Existem, porém, os movimentos inventados com intenção satírica reversa: ao invés de intelectuais zombando do mundo, é o mundo zombando dos intelectuais. Me veio à mente o filme Funny Face (1957, Stanley Donen), em que a equipe de uma revista novaiorquina de modas vai a Paris para um desfile. Audrey Hepburn, a modelo principal, é também uma moça metida a intelectual, lê filosofia, e diz pertencer ao “enfaticalismo” (uma espécie de neo-existencialismo francês), o que causa várias confusões e peripécias. 
 
Curiosamente, esta tradução brasileira (tal como a espanhola) distorceu o significado do rótulo original. Em inglês, segundo o Internet Movie Data Base, o movimento chama-se “Empathicalism”, porque se baseia na nossa capacidade de empatia para com outras pessoas. A tradução brasileira parece ter confundido esse termo com “Emphathicalism”, colocando “ênfase” no lugar de “empatia” – mas como tudo é uma grande gozação com os intelectuais de Montmartre e de Saint Germain des Près, fica mais engraçado ainda. 



 
Nem todos esses movimentos terminam com um “...ismo”. O melhor exemplo é a ‘Patafísica, criada por Alfred Jarry, e que deu origem ao famoso Collège de ‘Pataphysique parisiense, uma espécie de Academia anárquica e gozativa de que já fizeram parte Boris Vian, Raymond Queneau e outras figuras ilustres.
 
A ‘Patafísica (cujo nome começa assim mesmo, com um apóstrofo antes da letra inicial) é, segundo Jarry, a ciência que se ocupa das exceções, e não das regras – e só por isso já deveria existir um Colégio de ‘Patafísica em todas as cidades com mais de 200 mil habitantes no mundo inteiro. 
 
A aventura patafísica tem intenção satírica e poética, é uma criação livre das cabeças de artistas de vanguarda dotados de senso de humor – o que para mim lhes dá ainda mais credibilidade.