Freud dizia que a riqueza não traz felicidade porque não é uma das coisas que desejamos na infância. Tenho a pessimista impressão de que dentro de mais alguns anos a lavagem cerebral capitalista terá se encarregado de suprir essa deficiência. Enquanto isto não acontece, nossa memória afetiva é incrustada de elementos que ali se fixam muito antes de adquirirmos um senso crítico ou um filtro racional para escolher o que nos convém ou não. Falei nisso em “A colonização do subconsciente” (28.12.2003), tentando justificar minha inexplicável (em termos rigorosamente estéticos) ternura pelas baladas de Neil Sedaka ou pelos faroestes de Audie Murphy.
Na infância lemos, vemos ou ouvimos coisas que não entendemos por completo, mas que se fixam em nossa memória pela repetição, ou por estarem associadas a eventos deslumbrantes, terríveis ou inesperados. Tornam-se fórmulas mágicas que valem não pelo que dizem, mas pela espessa teia de referência emocionais e de conexões mentais que arrastam consigo. Veja-se o caso das cantigas infantis, por exemplo. Penso nisto porque quando eu era pequeno havia uma parlenda: “Lá em cima do piano tem um copo de veneno; quem bebeu, morreu. Puxa o rabo do tatu, quem tafó-ré-tu.”
Esse copo de veneno deixado por distração (ou maquiavelismo) em cima do piano, à espera da vítima descuidada, sempre me pareceu um toque agatha-christiano autêntico. Não estou exagerando nem comparando água com vinho. Algumas “nursery rhymes” britânicas fornecem a estrutura básica de livros da Dama do Crime, como O Caso dos Dez Negrinhos, Os Cinco Porquinhos, A Pocket Full of Rye, One, Two, Buckle My Shoe. Outras fornecem, através de um verso, o ponto de partida da história, como Hickory Dickory Death, Croooked House, Sing a Song of Sixpence...
Freud explica, essa ligação aparentemente ilógica entre inocentes cantigas de criança e assassinatos? Acho que nem precisamos dele. Canções infantis, como as histórias infantis e os contos-de-fadas, têm raízes remotas na memória social dos povos, e não são tão inocentes quanto gostaríamos. Falam de madrastas cruéis, em crianças enterradas vivas ou perdidas na floresta... Uma cantiga inglesa de jardim-da-infância diz: “Ring a ring of roses, a pocketfull of posies, atishoo, atishoo, all fall down.” Diz a tradição que os versos se referem à Peste Negra: o círculo de manchas vermelhas em volta da boca, os bolsos cheios de flores, os espirros, a morte.
Versos aparentemente inocentes podem ser resíduos de experiências terríveis do passado, de épocas de enorme mortalidade infantil ou de extrema crueldade com crianças. As cantigas infantis não são politicamente corretas; não foram concebidas por um comitê de assistentes sociais. Nasceram, como toda poesia popular, de uma lenta acreção de imagens e situações ao longo de um ciclo em que crianças recebem essas fórmulas mágicas, e as passam adiante na velhice.