quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

2476) O moído de Kafka (10.2.2011)



Podemos defender, sem susto, a tese de que foi Franz Kafka o autor europeu mais emblemático do século 20, aquele que fez uma obra mais afinada com o diapasão do século. (Tolstoi ou Balzac seriam candidatos possíveis ao posto equivalente para o século 19.) No momento, o mundo literário acompanha uma polêmica meio kafkeana, envolvendo o destino de uma enorme quantidade de manuscritos e papéis deixados por Kafka (cerca de “vinte metros de pastas”) que estão em Tel Aviv. A história é complicada. Antes de morrer, Kafka pediu a seu grande amigo Max Brod que queimasse seus papéis. Brod retorquiu que jamais faria isso, e não o fez. Além de publicar os principais livros do amigo (O Processo, O Castelo, América) ele fugiu para a Palestina em 1939, e levou consigo tudo o que podia, pouco antes dos nazistas fecharem a fronteira tcheca. Graças a isso, os papéis de Kafka não foram destruídos.

Mas é como se tivessem sido. Brod os preservou com fidelidade e avareza. Ao morrer, deixou-os em poder de sua secretária, Esther Hoffe, que também os guardou com mão de ferro. Esther morreu em 2007, aos 101 anos, deixando o espólio para suas filhas Eva e Ruth, ambas hoje na casa dos 70 anos. E é neste ponto que a história empanca, porque as duas não chegam a um acordo sobre o que fazer com os papéis de Kafka. (Embora o manuscrito original de O Processo já tenha sido vendido para a Alemanha por quase 2 milhões de dólares). Corre na justiça israelense um kafkeano processo envolvendo inúmeros interessados e incontáveis advogados. Os documentos são contraditórios, especialmente os de Max Brod, que também teria deixado uma outra carta doando o material de Kafka para instituições culturais de Israel.

Enquanto o imbróglio jurídico não se esclarece, em 2010 foi possível pelo menos fazer um primeiro inventário. Fala-se de cadernetas e mais cadernetas de anotações e diários, manuscritos de textos já publicados, numerosas cartas (de e para Kafka), além de manuscritos do próprio Max Brod, que também teve uma farta produção literária, ainda que menor importância. Fala-se também numa primeira edição do livro de Tristan Tzara Première Aventure Céleste de M. Antipyrine, um clássico do Dadaísmo, com dedicatória do autor para Kafka. (Este ruído que vocês ouvem é de algumas dezenas de milionários, impacientes, esfregando as mãos na porta da Sotheby’s.)

O material está sendo inventariado, e quem quiser saber mais leia este artigo de Elif Batuman (http://tinyurl.com/2cnhm9u), cheio de detalhes pitorescos, inclusive ao descrever a excentricidade das irmãs Hoffe – uma delas vive num apartamento em Tel Aviv com mais de cem gatos, que dormem sobre os manuscritos do autor de “Investigações de um Cachorro”. Batuman afirma que nos últimos 14 anos foi publicado um livro a respeito de Kafka a cada dez dias. O autor tcheco morreu em 1924, e é espantoso imaginar que uma parte considerável dos seus escritos ainda está inédita.