sexta-feira, 18 de março de 2011
2507) O deserto dos mitos (18.3.2011)
A escritora paulistana Márcia Denser anuncia em sua coluna estar preparando um livro intitulado Politicamente Incorretos, em que comenta alguns autores com esse temperamento iconoclasta. Um deles é Oswald de Andrade, que ela vai comentando e a certa altura diz, num comentário lateral: “Paulistano é a única criatura deste planeta que não fica louvando a própria terra, algo unânime em todas as partes do mundo, de Belo Horizonte a Pago-Pago”. De fato, todo mundo ama com fé e orgulho a “terra em que nasceste”, mas os paulistanos parecem fazê-lo com um amor ácido, hiper-crítico e pouco louvaminheiro. Só quem elogia São Paulo de peito aberto e sem ressalvas são políticos em campanha ou os publicitários por eles contratados. No mais, o paulistano é antes de tudo um autocrítico, um sarcasta profissional.
Peguem o próprio Oswald, por exemplo. Sua melhor obra em prosa (pra mim) é o díptico Memórias Sentimentais de João Miramar / Serafim Ponte Grande, dois livros que compõem um só, como os poemas de Homero. São Paulo emerge dali como Los Angeles emerge dos livros de Raymond Chandler. O simples fato de sobreviver a tal devastação é prova de sua grandeza. Os escritores paulistanos que a louvam não a tratam como um paraíso perdido na infância, mas como um rito de passagem brutal a que conseguiram sobreviver. A paisagem de cimento cinzento e úmido de José Agrippino de Paula (Lugar Público) e a megalópole semifuturista de Ignácio de Loyola Brandão (Não Verás País nenhum) são dois retratos fantásticos desse inferno-de-Dante de onde não se escapa.
É fácil louvar a “casinha pequenina” em que nascemos, o sitiozinho onde fomos felizes por entre o gado e os pés de algodão. É fácil celebrar as cidadezinhas-natais do interior, praça, coreto, igrejinha. Todo artista que tem origem remota se sente poeticamente à vontade para decantar seus símbolos da inocência primordial, ainda mais quando os considera paraísos perdidos. Mas como louvar o exílio urbano? Que poesia existe nos viadutos cobertos de pichações, no lixo dos becos, nas cracolândias que se multiplicam? Márcia Denser tem razão quando vê nos paulistanos (nem todos, decerto) essa dificuldade em mitificar a si próprios e a suas origens.
Existem alguma arte saudosista na Paulicéia, por suposto. Saudosistas existem em todo lugar, mas é justamente por essa lei da natureza que é obrigatório o aparecimento de alguns deles entre o Brás, o Bexiga e a Barrafunda. Sempre haverá um poeta celebrando a saudade do lampião de gás, ou um músico tecendo loas aos vendedores de amendoim torrado. Mas o paulistano que louva São Paulo louva a São Paulo de seu agora, não a de um passado distante. O paulistano é como um migrante que já nasceu num vagão do trem; está se lixando para a fazendola de onde vieram os antepassados, é o trem que ele traz como referência, e esse trem, sempre em movimento, é para ele passado, presente e futuro.
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