O conceito de “instante
precioso” varia de pessoa para pessoa. Eu guardo o sorriso de minha mulher
acordando, o choro do meu filho nascendo, uma noite de festa com fogos
coloridos no céu e flocos de neve caindo, o bis da melhor canção do melhor show
da melhor banda de rock do mundo... Não posso criticar o que outras pessoas
escolhem para gravar para sempre no cérebro com um tiro de nanomáquinas.
Os
vizinhos bateram à minha porta na hora de começar a final da Copa no Maracanã,
“sai daí, bicho do mato, eremita nerd, é hoje o dia da alegria, Braziu-ziu-ziu!”.
Não deixam transparecer, mas devem ter pena de um viúvo tão jovem, que não se
queixa do Destino nem do país, que vive em casa sozinho conversando com livros
e plantas. Subi para a cobertura, cheia de gente que ria e gritava, a varanda
embandeirada, de lá víamos os edifícios da Lagoa explodindo em foguetões e
confetes verde-amarelos, o sol afogueava tudo, a TV de plasma se alargava num Maracanã
por si só. Eles estavam felizes, eram generosos, e queriam que um pouco daquela
felicidade tocasse em mim. Abracei todo mundo, bebi quando beberam, cantei
quando cantaram.
Na hora do pênalti a casa
veio abaixo, cem pessoas pulavam abraçadas até quase bater no teto, finalmente
o gol iria sair, e já nos minutos de acréscimo. Catimba, preparativos, e quando
o juiz limpou a área todos meteram a mão no bolso, puxaram o spray nasal. Cada
um borrifou o jato de nanoquímicos que gravaria para sempre o conjunto das impressões
físicas e mentais dos próximos 60, 90 segundos... “Um instante de beleza é uma
alegria eterna”, repetia o estribilho da propaganda; ao borrifar, murmuraram a
senha auditiva com que resgatariam aquele momento mais feliz de todos.
Não fiz como eles. Apenas
bebi um gole maior de cerveja antes de ver o que milhões viram e reverão
milhões de vezes, a corrida para a bola, o chute violento na trave, a zaga adversária
rebatendo no susto para o meio de campo, o atacante escapando arisco, nossa
defesa atônita e mal postada, a infiltração veloz, a bola morrendo na rede. Pragas.
Imprecações. Gritos de revolta. E um silêncio pior do que tudo.
Abalado, imaginei quantas
vezes eles iriam reviver aquela tragédia-grega-em-1-minuto. Pois é, não caí na
tentação do “para sempre”, porque já caíra antes. O que guardamos para sempre
serve apenas para esgarçar ainda mais o tecido fino do tempo. Sei que eles
serão escravos de si mesmos, e no futuro reviverão, mil vezes, esse momento do
novo maior trauma nacional – só para poderem reviver, com ele, aqueles segundos
iniciais da última esperança coletiva que este país sentiu, e que mais uma vez
desperdiçou.