Eu me lembro que quando comecei a aprender violão, por
volta de 1964, o “método” que a gente (eu e minha irmã Clotilde) tinha em casa era o método de Paraguassu,
um cantor de valsas e serestas. A capa tinha o desenho de uma rua à noite,
imitando a imagem de um violão, onde as seis cordas eram os fios elétricos
entre um poste e outro e a boca do violão era uma lua cheia. Depois, ainda nos
anos 1960, veio um método emprestado por Zezé Duarte: era o de Américo
Jacomino, “Canhoto”, grande compositor de valsas. Eram métodos de violão
“pé-duro”, quadrado, baseado numa sequência onde os acordes eram chamados de
“primeira”, “acorde” (ou “preparação”), “terceira menor”, “terceira maior”,
“segunda” e voltava à “primeira”. Já nos anos 1970 usava-se o método de
Paulinho Nogueira, mais moderno, com explicações teóricas bem acessíveis, e
acordes dissonantes tipo bossa-nova. O último dessa linhagem de manuais, já no
Rio de Janeiro, foi o Dicionário de Acordes Cifrados, de Almir Chediak, que
somente a preguiça e a resignação com meus próprios limites me impediu de
estudar a fundo. Sou um violonista da escola Erasmo Carlos, que dizia: “Tudo
que eu fiz na vida foi com cinco acordes, e acho que estou no lucro.”
2
Eu me lembro do “Bingo do Treze”, um episódio controverso
na história de Campina. O Treze realizou um bingo sorteando os prêmios valiosos
habituais (eletrodomésticos, e como prêmio principal um carro). O sorteio foi
marcado para a noite, em algum ponto do lado do Açude Velho. Pelo que lembro,
do lado do colégio S. Vicente de Paula, mas como eu não estava lá posso estar
enganado. Milhares de cartelas foram vendidas, havia uma multidão enorme
acompanhando a chamada dos números pelos altofalantes. De repente, alguma coisa
provocou o estouro da boiada. Dizem que foram tiros de revólver; outros
garantem que foi algum sujeito ligando a moto e assustando as pessoas com o
barulho. O que eu sei é que houve uma debandada geral, um pânico que durou
muito tempo, feriu centenas de pessoas e derrubou dezenas delas na lama do
Açude. Nessa noite, a gente estava no terraço de casa, no Alto Branco, e nosso
vizinho Zé do Bombo voltou pra casa, descalço e enlameado. Muita gente perdeu
sapatos, bolsas, peças de roupa. Durante muitos anos, toda vez que se via
alguém com uma peça de roupa extravagante ou descombinada, perguntava: “O que
diabo é isso? Achasse no bingo do Treze?...”
3
Eu me lembro que os bingos, aliás, tiveram um surto
naquele tempo. Não eram apenas os bingos grandes e profissionais que levavam
multidões ao Estádio Municipal, ao Estádio Presidente Vargas ou à Praça da
Bandeira. Era o jogo de bingo em casa, com cartelas impressas que a gente
comprava na papelaria, ou mesmo com cartelas desenhadas domesticamente com
caneta e régua. Os números, também manuscritos, eram puxados de dentro de uma
sacola e chamados em voz alta. Minha mãe e minhas tias tinham o costume de
marcar os números chamados colocando um caroço de milho em cima de cada um,
para poderem reaproveitar a cartela noutro dia. Eu achava aquilo absurdo,
porque de vez em quando uma ventania imprevista bagunçava o ritual todo. Havia
um código brincalhão para dar animação à chamada dos números. O 44 era “Quá-quará-quaquá”.
O 22 era “Dois patinhos na lagoa”, e assim por diante. Uma vez, duas pessoas lá
de casa bateram ao mesmo tempo, a gente foi conferir e viu que as duas cartelas
tinham números diferentes (poucos coincidiam) mas todos os números de ambas
tinham de fato sido chamados, e o último número completou as duas cartelas
simultaneamente. Eu não sei calcular as possibilidades matemáticas disso
acontecer.
4
Eu me lembro que nos meus 14/15 anos, já estudando no Estadual da
Prata, eu tinha o costume de economizar o dinheiro do ônibus para comprar
livros e revistas. Na ida, 6:30 da manhã, sempre havia a carona de Frederico,
nosso vizinho no Alto Branco, que enchia de garotos “fardados” sua Caiçara (e
depois a camionete). Na volta, era cada um por si. Eu poupava avaramente os
cobres do lotação, e saindo do Gigantão pegava a rua lateral da Igreja do
Rosário (a Rodrigues Alves) e dali seguia uma reta comprida que ia acabar na
lateral do Convento das Clarissas, de onde eu rodeava o balde do Açude Novo
(àquela época seco, coberto de matagal e lamaçais, muito antes da construção do
Parque, por Evaldo Cruz). Passando ao lado do Teatro Municipal, subia a
Floriano Peixoto, dava uma olhada nos cartazes do Cine Capitólio e nas bancas
de revistas. Pegava geralmente a Marquês do Herval até o Edifício Rique, e
descia pela Epitácio Pessoa, seguindo a calçada do Chope do Alemão, até o
começo da ladeira descendente da Vigolvino Vanderley. Dali, eu avistava ao
longe a colina do Alto Branco e a fileirinha de casas, com a da gente em
destaque. Era só descer até o Ponto Cem Réis, cruzar o canal, e subir dali
beirando a estrada da Dr. Vasconcelos, virar na Rua José do Ó, passar em frente
à casa de Marcelo dos Sebomatos, depois a casa de Umbelino e Severino Brasil,
os gramados úmidos da Lavanderia, e chegar finalmente a minha rua. Isso tudo
dava uma hora, uma hora e meia de caminhada.
5
Eu me lembro que uma coisa interessante das pessoas
tímidas (como eu sempre fui) é que essa introversão compulsiva se rompe às
vezes e faz emergir comportamentos não-tímidos totalmente destoantes. Quando eu
tinha 9 ou 10 anos e morava na Miguel Couto fui uma vez (forçado por não sei
que desespero de véspera-de-prova) estudar na casa de um colega. Coisa que até
hoje me apavora, porque sempre acho que vou cometer alguma gafe. Era na rua
Solon de Lucena, de modo que talvez o colega fosse Sílvio Coentro, de cujas
irmãs Juliana e Silvana fiquei muito amigo depois de adulto. Fui lá, fizemos o
dever de casa. E eu notei que no corredor da casa havia uma estante baixinha,
de 3 ou 4 prateleiras, cheia de livros, entre os quais inúmeros livros da
Coleção Amarela, de livros policiais, da Editora Globo, de Porto Alegre. Na hora de ir embora, tartamudo
e gaguejante, perguntei à mãe do colega se eu poderia voltar noutro dia para
olhar aqueles livros. Ela respondeu que sim, sorridente e incauta. No dia
seguinte falei em casa que ia estudar de novo, rumei para lá, bati, alguma
empregada veio à porta, eu disse que tinha vindo olhar os livros, ela me reconheceu,
admitiu-me na casa e eu fui direto para a estante, onde me atraquei com uma
Agatha Christie qualquer até que a família chegou na hora do jantar, e ficou sem
saber direito o que fazer comigo.
6
Eu me lembro da “Hora dos Miseráveis”, que era o nome popular
de um momento tradicional dos jogos no Estádio Presidente Vargas: faltando
cinco ou dez minutos para terminar o jogo, os portões do estádio eram abertos,
para permitir que a torcida começasse a sair, sem muito atropelo. A principal
consequência disso era a entrada, com muita gritaria e alvoroço, de algumas
dezenas (as vezes centenas) de torcedores sem dinheiro para comprar ingresso, a
maioria deles meninos e rapazinhos. Ficavam do lado de fora do estádio o jogo
inteiro, acompanhando pelo rádio, e ouvindo a gritaria da torcida. Quando os
portões se abriam, eles entravam numa euforia danada, que fazia o pessoal da
arquibancada se divertir: “Eita!... Chegou a hora dos miseráveis!...” Ainda assim, muitos deles, assistindo os
minutos finais de um clássico, de um jogo “pegado”, de uma decisão, conseguiram
ver de graça alguns lances históricos, de partidas que só foram decididas nos
acréscimos – algo que volta e meia está acontecendo no futebol.