É um daqueles filmes dos irmãos Coen onde um artista desnorteado e sincero vive a dar com a cara nas portas do mundo (Barton Fink), ou uma daquelas tertúlias etnológicas pela música rural norte-americana (E aí, meu irmão, cadê você?). Um daqueles filmes cheios de piscadelas para aficionados e ao mesmo tempo daquelas terríveis rodovias enxergadas através do parabrisa de um carro à noite, quando sentimos que naquele momento tudo aquilo é real e mesmo sendo um filme qualquer coisa pode acontecer.
Llewyn Davis é um cantor de música folk que percorre os
bares do Greenwich Village num daqueles momentos mágicos do espírito, a New
York de 1961, semelhante à Londres de 1890, à Paris de 1925, ao Rio de Janeiro
de 1958. Um foco cultural aceso numa cidade capaz de lhe ser receptiva. O
Village abrigou poetas beatniks, teóricos da contracultura, cineastas de
vanguarda, mas os cantores de protesto ou de tradição étnica (aqueles
irlandeses de suéter, que conseguem fazer uma consoante ter sonoridade interna
equivalente à de uma vogal) também são a cara daquela época. Ficou Bob Dylan como o mais famoso, mas
basta ler as Crônicas dele próprio: ele lembra músicos dos bares daquele
tempo que talvez não tenham nem verbete na Wikipedia. Samuel R. Delany também conta em suas memórias que por pouco não
recitou poesias num bar na mesma noite em que um tal de Bob Dylan ia cantar.
Esses filmes de época são sempre pedaços da biografia de alguém, estão ligados
à vida pessoal de alguém.
Llewyn Davis é talentoso, é bom sujeito, mas vive metendo os
pés pelas mãos e dando com os burros nágua. Curiosamente, este filme me lembrou
o Não Estou Lá que estilhaçou a biografia de Bob Dylan em vários personagens
específicos. Llewyn Davis é um daqueles
Dylans iniciais, parelho ao negrinho que se diz chamar Woody Guthrie e ao
personagem cowboy-de-sapatos de Christian Bale. Minha teoria é de que existe
mesmo um arquétipo chamado O Bardo, e cada um desses caras traz algumas canções
dele. Somos heterônimos dele, mas na verdade é ele quem escreve tanto a obra do
poetinha romântico quando a do profeta apocalíptico. Uma espécie de
Mega-Fernando-Pessoa, que escreve tudo, e tem alguns bilhões de heterônimos.