terça-feira, 29 de dezembro de 2015

4010) Outros adeuses 2015 (30.12.2015)



Durante décadas de convivência minha com Elba Ramalho, o seu irmão Erácliton era sempre uma das pessoas mais animadas que havia em torno. Tocador de violão, puxador daquelas músicas tiradas “do fundo do baú”, fossem sambas ou forrós. Nas mesas do Refavela, o bar de Bel (em Campina), ou no terraço do apartamento da Lagoa, no Rio, ele era sempre uma risada de alto astral. O imprevisto o colheu ao atravessar uma rua em João Pessoa. Foi a primeira vez que nos fez ficar tristes.

Anabela fugiu jovem de Angola, quando a guerra civil passou o rodo no país. Veio parar no Brasil, morou na Paraíba, radicou-se em Mossoró. Viúva, sua casa reunia quem fazia teatro, literatura, música. Era magra, espigada, sempre com um uísque na mão e um cigarro nos dedos; ria muito, não tinha papas na língua, e com sotaque lusitano carregado não dava bola para a opinião do povo. Nosso último encontro foi numa farra das dez da noite às oito da manhã. Uma cirurgia problemática a levou do nosso mundo, mas não daqui.

A vida é cheia de simetrias. Meu pai era do Recife e veio ter os filhos, e criá-los, em Campina Grande. Seu Geraldo era de Campina e foi ter os seus no Recife. Era comunista da velha guarda (daí ter um filho chamado Lenine), o que significa aquela velha guarda humanista, amante das letras e das artes, para a qual o indivíduo tem uma importância tão grande quanto o coletivo. Grande papo sobre qualquer assunto, com histórias do arco-da-velha sobre uma Campina antiga onde ele e meu pai começaram uma amizade que se prolongo entre mim e seu filho.

Quando comecei a fazer meus primeiros shows musicais entre o Recife e Olinda, no final dos anos 1970, fiquei amigo de uma turma de jovens jornalistas no circuito que cobria do Bar do Ninho à Rua do Hospício. Entre eles reencontrei Juliana Cuentro, que era da antiga rapaziada da Rua Solon de Lucena, em Campina, filha de amigos dos meus pais. Éramos da mesma geração, e ela vibrava tanto com minhas músicas que fez uma das primeiras grandes matérias sobre o Trupizupe, que me deixou cheio de responsabilidades poéticas e com fumaças de cantor de verdade.

O fandom da ficção científica é um feudo de batalhas e disputas constantes, onde as preferências literárias e cinematográficas são defendidas como se fossem outras tantas pátrias ameaçadas pelas hordas bárbaras. Pierluigi Piazzi (ex-radialista, ex-professor de cursinho, fã de “Star Trek”) era exuberante, falador, eloquente na defesa dos autores que admirava e na gozação sobre os que não curtia. Deixou aos fãs de FC (e a dezenas de milhares de ex-alunos paulistanos) a editora Aleph, e mil histórias impagáveis.



4009) A ditadura do normal (29.12.2015)



O sujeito mora num país dominado por uma ditadura burocratizada. É de noite, ele está meio perdido num bairro miserável, periférico, tentando voltar para casa. Tenta passar despercebido. E nessa hora ele pensa: “Não que houvesse algum regulamento contra o regresso ao lar por um caminho diferente, mas isso bastava para chamar a atenção da Polícia do Pensamento”.  O trecho é de 1984 de George Orwell, e ele ilustra um princípio básico dos governos totalitários: “Por que esse camarada está fazendo algo de um jeito diferente?”.  

Isto lembra uma velha frase: “Na ditadura o maior perigo não é o ditador, é o guarda da esquina”. Se quem manda no país é Stálin ou Papa Doc, qualquer guarda de esquina pode fazer naquela rua o que bem entender. Quem decide não é o ditador, é ele, é a veneta dele, a idiossincrasia dele, o mau humor ou o bom humor dele. O perigo da ditadura é que todo guarda de esquina é, em sua pura essência, o próprio Stálin ou o próprio Papa Doc.

Vejam como são efêmeras as ditaduras. Papa Doc, o vampiro do Haiti, já foi o símbolo do Mal, na minha juventude. Apodreceu, caiu, foi substituído pelo filho Baby Doc, um gordão cheio de cordões de ouro no pescoço. Baby também foi pro espaço, e aqui estou eu, vivinho da silva, a usá-los como metáforas de si mesmos. Só o Haiti que não mudou. Ficou como aqueles personagens vampirizados que nem a estaca no coração de Drácula consegue recuperar para o mundo dos vivos.
Os sistemas de segurança têm (como vemos em 1984) bons exemplos de técnicas para fazer os dissidentes botarem as unhas de fora, esticarem as cabeças, tornarem-se visíveis e vulneráveis à guilhotina da repressão. A ditadura mais eficiente é a que é controlada por tecnocratas, sujeitos de imaginação basicamente analógica e de caráter basicamente à venda.  O totalitarismo exige previsão, planejamento, controle do futuro. É preciso saber não apenas onde Winston Smith está neste exato momento, como ser capaz de prever onde Winston Smith deverá estar no dia 16 de maio do ano que vem, e fazendo o quê. Tabular as médias, e assinalar os desvios.
Num quadro de controle como esse, o simples ato de voltar para casa por um caminho diferente chama a atenção, é indício de comportamento conflitante. Como no conto de Ray Bradbury “O pedestre”, em que não é propriamente proibido andar a pé pela calçada – mas é estranho, e o sujeito deve ser recolhido e submetido a tratamento. Ou como em O estrangeiro de Albert Camus, onde a certa altura o cara não sabe se está sendo julgado porque matou um homem a tiros ou porque não chorou no enterro da mãe, não se comportou como a maioria das pessoas se comporta.