Criar bons personagens literários é, segundo muita gente,
o primeiro passo para obter sucesso. A maioria das pessoas lê, segundo uma
definição útil, para acompanhar “histórias interessantes acontecendo com
personagens interessantes”. Parece muito fácil. O problema é que nem tudo que é
interessante para um público também é para outro. E mesmo que fosse, como
transpor isso para um personagem fictício, numa história que está começando a
ser inventada?
Cada autor, como sempre, tem suas próprias receitas. E o
fato da receita eventualmente funcionar na mão dela não significa que funcione
na mão de todo mundo.
Elmore Leonard dava uma dica:
Evite descrições detalhadas dos personagens, algo que Steinbeck
assimilou. Na história de Hemingway “Hills Like White Elephants”, que aparência
têm o americano e a garota que está em sua companhia? “Ela tirou o chapéu que
usava e o colocou em cima da mesa.” Isto
é o máximo que obtemos em termos de descrição física.
Funciona? Sim, mas nem sempre. Alguns leitores preferem
assim. Outros, não. Há quem extraia um certo prazer imaginativo ao visualizar
uma descrição detalhada: cabelo, rosto, vestimenta, objetos, maneirismos, a
voz... E há quem se contente em acompanhar a história pela história, e
visualizar uma espécie de bonequinhos simplificados no lugar dos personagens.
(Eu prefiro ler assim, às vezes.)
É preciso ter em mente que o personagem se impõe à
imaginação do leitor mais pelo que faz do que por sua aparência. Não é um
manequim, é um agente com vida própria, cheio de surpresas. Cada atitude sua,
cada fala, cada participação na história faz o leitor abrir mais os olhos e
pensar: “Puxa vida, então ela é assim.”
Como diz a autora Sarah Waters:
Respeite seus personagens, mesmo os menores. Na arte, como na vida,
cada pessoa está no centro de sua história pessoal. Vale a pena imaginar qual
será a história pessoal dos seus personagens ocasionais, coadjuvantes, mesmo
que a presença dele cruze apenas momentaneamente com a do seu protagonista.
Ao mesmo tempo, não sobrecarregue a narrativa. Personagens devem ser individualizados,
mas funcionais – como figuras num quadro. Pense na pintura de Hieronymus Bosch,
Cristo Sendo Ridicularizado, em
que Jesus sofre pacientemente, enquanto está cercado por quatro homens que o
ameaçam. Cada um desses personagens é único, e ainda assim cada um deles
representa um tipo humano. Em conjunto, eles formam uma narrativa que se torna
ainda mais poderosa por ser construída de modo tão conciso.
Dar densidade humana aos personagens ajuda à
verossimilhança da narrativa. Mesmo um motorista de táxi, um garçom de
restaurante, uma secretária de escritório, alguém com quem o(a) protagonista da
história conversa durante meia página apenas pode revelar um traço pessoal que
nos faça ver ali uma pessoa de verdade, uma pessoa que talvez seja tão
“interessante” quanto o(a) protagonista.
Não existem fórmulas na literatura; cada autor dá
conselhos de acordo com o que gosta de ler ou de escrever. Geralmente esses
conselhos são do tipo “Olha, comigo isto funciona”. Mas não é com todo mundo.
Andrew Motion tem uma fórmula simples, bem a gosto dos
escritores de ficção popular:
Tranque diferentes personagens num ambiente e diga a eles que vão em
frente.
Esse conselho vale? Inúmeras peças de teatro
existencialistas já empregaram com sucesso esta fórmula. E curiosamente ela
também aparece, com poucas mudanças, em filmes ou séries como Cubo, Lost e outras, em que
pessoas totalmente aleatórias se veem projetadas num ambiente estranho e para
sair dali precisam contar com a ajuda dos outros, e às vezes vencer a
resistência deles. Não é um conselho que valha para principiantes. Parece uma
fórmula de roteiro best-seller, mas na verdade só funciona na mão de um autor
experimentado, que já tenha uma cartola cheia de truques para a criação de
personagens.
Hilary Mantel diz:
Concentre sua energia narrativa nos pontos de mudança. Isto é
especialmente importante quando se faz ficção histórica. Quando seu personagem
está chegando num lugar pela primeira vez, ou quando as coisas estão se
modificando à sua volta, este é um bom omento para fazer uma pequena pausa e
fornecer mais detalhes sobre o mundo dele. As pessoas não reparam seu ambiente
costumeiro e sua rotina diária, de modo que quando os autores descrevem essas
coisas tudo acaba soando como se estivessem dando explicações ao leitor. A
descrição precisa ter um motivo para aparecer, não pode ser meramente
ornamental. Em geral ela funciona melhor se tiver em si um elemento humano, é
mais eficaz se vier de um ponto de vista implícito, e não de um olhar divino. Se
a descrição é colorida pelo ponto de vista do personagem que está prestando
atenção a tais e tais coisas, ela se torna, com efeito, parte da definição do
personagem e parte da ação.
O personagem revela quem é quando descreve o que está
vendo. Mostrar uma sala através dos olhos de uma empregada doméstica é
diferente de mostrá-la através dos olhos de uma visita.
Acho às vezes que uma das principais dificuldades dos
autores muito jovens (há exceções, claro) é a pouca vivência humana, a pouca
vivência de situações variadas, de encontros consistentes e profundos com tipos
variados de pessoas. O rapaz ou a moça de 20 anos que faz faculdade e sempre
viveu com os pais tem uma experiência limitada da vida. Muitas vezes são
inteligentíssimos, leem pra caramba, veem muitos filmes, se exprimem com
facilidade, escrevem bem. O que falta?
Falta o conhecimento real das pessoas de carne e osso, e
nesse aspecto não adianta ter lido a obra completa de Jorge Luís Borges, de Philip
K. Dick ou de Graciliano Ramos (que são úteis, sim, mas noutro aspecto). A
nossa percepção pessoal do comportamento humano é criada a partir de interações
reais que no momento em que estavam acontecendo eram emocionalmente
importantes para nós. Isso fica. Isso soma sem parar ao longo da vida.
Por isso muitos escritores dizem: transforme em
personagens as pessoas que você conhece melhor, conhece mesmo, de conviver cara
a cara, de ver como a pessoa se comporta nos bons e nos maus momentos, no medo,
na alegria, na preocupação, no amor e no ódio. Dê a essa pessoa que você
conhece tão bem (um colega de escola, um primo, uma vizinha, uma professora)
outro nome, outra idade, outra condição social que não seja muito afastada.
Pegue a personalidade e as reações naturais desse indivíduo e “vista” nelas
outro nome, outra biografia... e parta daí. Para que haja nesse personagem duas
coisas importantes: verdade (autenticidade, verossimilhança) e continuidade (o
personagem é sempre o mesmo, por mais variadas que sejam as suas reações).