domingo, 31 de janeiro de 2010
1597) A arte do acrônimo (25.4.2008)
Um acrônimo é uma palavra onde cada letra (ou letras) serve como inicial de outra palavra, formando uma frase. É mais ou menos como uma sigla, só que em geral usamos o termo “sigla” para aqueles conjuntos de letras impronunciáveis como palavras, como BNB (Banco do Nordeste do Brasil), e “acrônimo” para termos que podem ser pronunciados como palavras, como Fifa (Fédération Internationale de Football Association), etc. Alguns acrônimos usam não apenas letras, mas combinam sílabas ou partes de sílabas de modo a que o resultado possa ser pronunciado: Sudene (Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste), Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), Bradesco (Banco Brasileiro de Descontos), e assim por diante.
Muitas vezes uma empresa ou uma entidade qualquer procura criar um acrônimo em cima de uma palavra que tenha relação com sua atividade principal, ou que, no linguajar do marketing, “reforce a imagem”. Um acrônimo como EAGLES (águias) indica o Expert Advisory Group On Language Engineering Standard ( algo como Grupo de Especialistas Consultores de Padrões de Engenharia da Linguagem). Podemos considerar que o disco Minas de Milton Nascimento tem em seu título um acrônimo do nome do cantor, numa feliz coincidência com sua origem cultural.
Uma técnica inversa consiste em pegar uma palavra pré-existente e imaginar uma frase da qual ela pudesse ser o acrônimo. Geralmente isto é feito com intuito satírico. Chico Anysio já disse na TV que o nome “Brasil” significa “Bravos Rapazes Americanos Silenciosamente Irão Levando”. No mundo do show-business corre a piada de que um convidado VIP é um “Viado Impossibilitado de Pagar”. NASA, para alguns, significa “Naves Aterrissando Sem Amortecedor”. Nos velhos tempos em que o atual INSS chamava-se INPS, Millôr Fernandes sugeriu: “Isto Não Pode Ser”. Às vezes o acrônimo serve somente como piada, sem relação direta com a palavra; é o caso da interpretação de Fanta como “F... Andando Ninguém Tentou Ainda” (o que não é verdade).
Houve um tempo em que eu jogava acrônimos com amigos em mesa de bar. Escolhíamos uma palavra ao acaso, olhando os cartazes nas paredes, e cada um usava as letras da palavra para formar um acrônimo. Ganhava quem fizesse a melhor frase, de preferência algo relativo à palavra, ou ao ambiente naquele instante. Pode parecer sem graça ou difícil, mas é impressionante como a mente humana, pressionada, é capaz de tirar leite de pedra. Principalmente quando o combustível é cerveja.
Há saites dedicados a esta nobre arte, em que uma palavra é proposta para que se formem frases. Uma das propostas mais interessantes é a de que a última palavra de um acrônimo sugira o próximo. Digamos que foi fornecida a palavra “Braulio”. Uma resposta seria: “Bom Rapaz, Admirável, Um Leitor Impecavelmente Organizado”. Esta última palavra serviria para formar o acrônimo seguinte. Vejam em: http://acronimo.blogspot.com/.
1596) A fórmula de Syd Field (24.4.2008)
Cacá Diegues disse uma vez que aqui no Brasil “cinema” é abreviatura de “cinema americano”. Isto é cada vez mais verdade, e uma prova é a importância que têm assumido os manuais de roteiro em nosso mercado editorial.
Quando comecei a me interessar por cinema, os únicos livros que davam dicas de como fazer um roteiro eram Argumento e Roteiro e Elementos de Estética Cinematográfica de Umberto Barbaro, O Processo de Criação no Cinema de John Howard Lawson, um ou outro de Pudovkin. Hoje, em qualquer Siciliano ou Sodiler brasileira, os manuais de roteiro abundam.
Já me vi em situações delicadas quando meu interlocutor, lendo algo escrito por mim, opinava: “Olha, sinto muito mas não está de acordo com Syd Field”. Quando é o contratante que diz uma coisa assim, você gela, porque vê seu cheque batendo asas e acenando com o lenço, fugindo pela janela. Syd Field é o principal oficineiro e manualista de roteiros do cinema americano, e seus livros, lidos febrilmente aqui no Brasil, viraram uma espécie de Bíblia.
Field tem uma fórmula de roteiro (ele diz que não é fórmula, mas é), em que uma história é dividida em três atos. O Ato I tem 20 ou 30 páginas, o Ato II tem 60, e o Ato III tem 20 ou 30.
Estes atos estão separados por dois “pontos de virada”, que são os pontos de transição entre os atos, definidos por reviravoltas que reacendem o interesse do espectador.
E o ato mais longo, o do meio, tem o que ele chama de duas “pinças”, que ocorrem por volta das páginas 45 e 75, e são “incidentes ou acontecimentos que mantêm a história nos trilhos”. E assim por diante.
Está errado? Não. Field e seus seguidores (que são Legião) estudam a fundo o cinema norte-americano, e os americanos, como disse um crítico europeu, “descobriram o segredo do ritmo cinematográfico”. Questionar o ritmo cinematográfico de Hollywood é como questionar as orquestrações da música clássica européia ou a estrutura formal do soneto. Não se pode negá-las. Funcionam, e acabou-se. Mas não são a única possibilidade.
Field teoriza e receita um tipo de cinema, e suas receitas só valem para quem quer fazer cinema narrativo ao estilo norte-americano. O qual não é o único modo de fazer cinema.
Atos, pontos de virada, pinças e tudo o mais não são “universais fílmicos”. São recursos técnicos inventados por uma cultura e um mercado. Nada obriga um cineasta sueco ou romeno a segui-los. Nada obriga um brasileiro.
E não estou me referindo a filmes de arte (Godard, Bergman, Raul Ruiz), onde a platéia deve se curvar aos interesses do diretor. O cinema de entretenimento, em que o diretor deve se curvar aos interesses da platéia, é tão necessário quanto qualquer outro, mas não precisa seguir a fórmula Syd Field, por mais eficaz que ela seja.
Seria como dizer que a fórmula da Coca-Cola é satisfatória, e que por isto o guaraná, a fanta ou a soda limonada “estão erradas”. Fórmulas existem para serem seguidas, mas também para serem inventadas.
1595) Um cão morrendo de fome (23.4.2008)
A Internet entrou em ebulição algum tempo atrás em torno de mais uma “instalação de arte contemporânea” perpetrada por nossos criativos artistas. Noticiou-se que o costarriquenho Guillermo Vargas, conhecido como “Habacuc”, teria amarrado um cachorro faminto numa exposição de artes plásticas e o deixado ali sem pão nem água, até que ele morreu de fome. Um abaixo-assinado de protesto se alastrou pela rede. Blogueiros pediram a cabeça de Habacuc, sugerindo que na próxima exposição ele amarrasse a própria mãe, etc. e tal.
Eu sou da tribo e conheço os caboclos. Tudo que aparece na Internet com abaixo-assinado sempre me acende uma luzinha de alerta, porque cheira a boato, invenção, lenda urbana. Pesquisei mais um pouco e achei, se não um desmentido categórico, pelo menos uma versão diferente dos fatos. Habacuc de fato usou o cão, mas ele era alimentado diariamente, e só ficava amarrado no salão durante as horas em que a exposição estava aberta ao público. Na parede da sala lia-se a frase “Eres lo que lees” (“Tu és o que lês”) em letras formadas com biscoitos de cachorro; e um aparelho de som tocava o hino sandinista ao contrário. Bem – em termos de arte talvez não seja nenhuma Guernica, mas é muito mais plausível do que a primeira versão. Além disso, o cachorro acabou fugindo depois de alguns dias, numa distração do vigilante.
Quem quiser mais detalhes veja o verbete de Habacuc na Wikipédia, ou consulte o blog português “Varal de Idéias” (em http://cimitan.blogspot.com/2008/04/este-post-repe-as-coisas-nos-seus.html). A Humane Society International (http://www.hsus.org/contact_us/humane_society_international.html#Q_dog_artist) critica a idéia do artista e afirma ser contra o uso de animais vivos em exposições, mas diz que pelas informações que obteve o cachorro estaria vivo, e teria fugido da exposição.
O interessante é que 2 milhões de pessoas assinaram o pedido de boicote à participação de Habacuc na Bienal Centroamericana de Honduras de 2008. Na página que abri agora, são 2 milhões, 147 mil, 980 assinaturas, entre as quais (fui conferir a lista) as de alguns amigos meus. O que me lembra um episódio que contam da vida de São Tomás de Aquino. Já velhinho ele vivia num mosteiro onde dava aulas para os noviços. Estes eram jovens e brincalhões, e resolveram zoar com o mestre. Amontoaram-se numa janela, quando viram que ele se aproximava, e começaram a apontar para o céu, aos gritos: “Vinde ver, Irmão Tomás! Vinde ver um boi voando!” Tomás chegou à janela, protegeu os olhos com a mão e ficou buscando em vão o boi nos ares. Os noviços riram e disseram: “Acreditaste que um boi pode voar?” E ele ripostou: “Achei que seria mais fácil um boi voar do que um religioso mentir”. Pois é – parece que hoje em dia é mais plausível um artista de vanguarda matar um cão de fome do que um desocupado postar uma mentira na Internet. Ó tempos! Ó costumes!
1594) O caso Isabella (22.4.2008)
Dias atrás escrevi aqui sugerindo outra linha de investigação para o caso da morte da menina Isabella, em São Paulo. Propus um hipotético suspeito: alguém com acesso ao prédio, como um operário da construção. Não porque achasse que esta era a solução, mas como alternativa à linha adotada desde o começo pela polícia e pela imprensa – a de que a menina teria sido morta pelo pai e pela madrasta. Na verdade não acreditei muito no meu imaginário “Zezinho”, que ao ser surpreendido pela garota dentro do apartamento a teria matado e atirado pela janela. Os indícios iniciais sobre o casal davam o que pensar, e os mais recentes parecem (parecem!) confirmar a culpa dos dois.
Minha preocupação é menos a de encontrar os culpados do que a de preservar os inocentes. Há pessoas que se deixam empolgar pela indignação moral diante de um crime e, quando é apontado o primeiro suspeito, ficam todas assanhadas, querendo linchá-lo no meio da rua. Não duvido que teriam feito isto com Alexandre Nardoni e Anna Jatobá, se a polícia os deixasse sair sem escolta. Enormes injustiças já foram praticadas aqui pela impaciência em achar um bode expiatório cujo apedrejamento público dê aos apedrejadores a sensação de que são pessoas dignas e respeitáveis, fazedoras de justiça. E não são. São pessoas transtornadas, preconceituosas, que se deixam levar por idéias preconcebidas sobre tipos de pessoas que são criminosos em potencial. Nos EUA, enforcaram-se negros em árvores e postes elétricos durante muitos anos. Bastava que um deles fosse acusado de alguma coisa.
O nosso Brasilzinho tão democrático não é muito diferente. Se a imprensa faz um pouquinho mais de pressão, todo mundo sai à rua de cabo de vassoura em punho, disposta a ser o carrasco de alguém que mal teve tempo de provar sua inocência. O caso da Escola Base é o mais notório – educadores foram acusados de pedofilia, foram depois inocentados, mas o mal estava feito, e a vida deles está arruinada até hoje. A Rede Globo, a revista IstoÉ e os jornais “Estado de São Paulo” e “Folha de São Paulo” já foram condenados a pagar indenizações às pessoas acusadas injustamente (ao que parece, houve apelações e os processos continuam correndo na Justiça).
Crianças indefesas, de famílias miseráveis, são mortas como Isabella todos os dias. Os defensores de crianças não se manifestam porque se pressupõe que numa favela ou numa periferia a vida é assim mesmo. É uma triste rotina. Quando a vítima é de classe média, o caso muda de figura – parece que só então trata-se de um ser humano; poderia (pensam os moralistas) ser um dos nossos próprios filhos. Não nego que a morte de Isabella é trágica, e deve comover a todos. Toda vez que penso nesse assunto também sinto uma revolta. Mas é assim que somos – escolhemos um bode expiatório cujo perfil nos convém, despejamos toda nossa indignação em cima dele, e depois vamos cuidar da nossa vida, que ninguém é de ferro.
1593) O Cérbero (20.4.2008)
Conta a mitologia grega que à porta do Inferno havia um gigantesco cão de guarda, o famoso Cérbero, cão de três cabeças prontas a dilacerar qualquer incauto. “Mas pra quê?” pensava eu. “Quem diabo vai querer entrar no Inferno?” Na verdade, Cérbero estava ali para evitar que os condenados ao fogo eterno fugissem. Era um cão-de-guarda ao contrário dos que temos aqui – não guardava a entrada, guardava a saída. Mesmo assim, também cumpria a função oposta, porque somente as almas dos condenados poderiam entrar no reino de Hades. Pessoas vivas não – daí o grave incidente diplomático ocorrido quando Orfeu apareceu por lá querendo trazer de volta sua amada Eurídice. E quando Hércules chegou para levar o próprio Cérbero consigo, cumprindo o último dos seus Doze Trabalhos.
Acho que a lenda grega morre aí, mas pretendo enriquecê-la noutra direção. Por que motivo o cão se chama Cérbero? Respondo: porque ele representa o nosso Cérebro, a nossa mente pensante, a nossa consciência. Exatamente por isto ele é figurado com três cabeças (em diferentes versões da lenda, números muito maiores, que chegam até a cem). É o excesso de proteção, de controle, de censura. A função ditatorial do nosso Super-Ego ou que nome lhe queiram dar – a função controladora que nos impede de fazer bobagens mais sérias e de praticar crimes, mas ao mesmo tempo nos proíbe um comportamento mais relaxado, mais intuitivo, mais espontâneo. Toda vez que você vir aquele sujeito todo certinho, todo tenso, todo bem comportado e impecavelmente limpo, todo politicamente correto, aquele cara que na hora de pagar a conta vai até a última casa decimal e paga trinta e dois reais e sessenta e sete centavos – não duvide, amigo: é um prisioneiro de Cérbero, um prisioneiro de sua própria mente controladora.
E por qual estatuto mitológico ele é colocado justamente como guardião da saída do Inferno? A explicação mais lógica que me ocorre é que o Inferno protegido por esse cérebro não é um Inferno externo a nós, e sim interno a nós, um inferno aqui dentro. Como dizia o poeta Gilberto Gil: “Teu inferno é aqui”. O Inferno é o Inconsciente, é o lugar para onde arremessamos tudo que não presta, tudo que nos inquieta e perturba, tudo que é uma ameaça à ordem, à limpeza e à disciplina. O cérebro está ali justamente para evitar que esses pensamentos mal comportados se evadam do porão e venham perturbar o chá-das-cinco que nossa “persona” pública toma na sala de visitas, recebendo as autoridades.
Todas as vezes que tentamos acessar nosso Inconsciente (rastreando um ato falho, dissecando uma neurose, confrontando um trauma daquele bem brabos, ou meramente analisando um sonho), o Cérebro de não-sei-quantas-cabeças aparece rosnando seu recado pitbull: “Pra trás!” rosna ele. “Aqui, não! Aqui só tem o que não presta!” E recuamos, temerosos. Talvez menos com medo das 100 cabeças do Cão do que com medo do nosso verdadeiro Rosto, que estamos a ponto de enxergar.
sábado, 30 de janeiro de 2010
1592) O Século de Pavlov (19.4.2008)
(José Paulo Paes)
Dizem os luminares da vida acadêmica que o século 20 (que ainda não terminou) é O Século de Freud. Discrepo. O Século de Freud será o século 21, se um dia nele ingressarmos. Será o século em que estudaremos a fundo o ser humano, seus desejos, seus impulsos. Tenho a ousadia de proclamar em alto e bom som que estamos vivendo ainda O Século de Pavlov. Ou seja, o século em que todos os esforços se dão na direção de manipular as pessoas, e não de entendê-las.
O dr. Pavlov ficou famoso pela sua experiência com cães. Ele tocava a sineta no laboratório e logo em seguida servia comida aos cachorros esfaimados. O cachorro entendia que logo depois da sineta vinha a comida, e, mal ouvia a sineta, começava a salivar, mesmo que não aparecesse comida nenhuma.
Ninguém descreveu melhor o Século de Pavlov do que o saudoso poeta, tradutor e crítico José Paulo Paes, no poema “Pavloviana” (no livro Um por todos, Ed. Brasiliense, 1986). A primeira estrofe diz:
a comida a sineta a saliva
a sineta a saliva a saliva
a saliva a saliva a saliva.
Para mim está claro. A primeira linha descreve o processo inicial. A segunda mostra que, retirada a comida e mantida a sineta, a salivação continua. Por fim, a própria sineta pode ser retirada. O cachorro lembra dela, ou então está apenas acostumado, e fica salivando sem parar.
Eis a segunda estrofe:
o mistério o rito a igreja
o rito a igreja a igreja
a igreja a igreja a igreja.
Toda religião nasce de um mistério. É criado um rito para celebrar esse mistério, e depois uma igreja para perpetuar o mistério e o rito. O problema é que com o passar dos séculos perde-se o interesse pelo mistério, e o próprio rito se desvaloriza dentro da igreja, transformada numa máquina gigantesca e autônoma.
A terceira diz:
a revolta a doutrina o partido
a doutrina o partido o partido
o partido o partido o partido.
Preciso comentar, brasileiros? Eis a quarta estrofe:
a emoção a idéia a palavra
a idéia a palavra a palavra
a palavra a palavra A PALAVRA.
O processo criativo nasce de uma emoção, algo que assalta nossa mente antes que possamos compreendê-la. No esforço de compreendê-la, geramos uma idéia, que não é a mesma coisa que a emoção, mas é uma face complementar dela. E finalmente encontramos as palavras para exprimir a idéia e talvez gerar (no leitor) uma emoção equivalente à que deu origem ao processo todo.
Acontece que é mais fácil lidar com idéias do que com emoções, e é mais fácil lidar com palavras do que com idéias. A poesia se transforma numa atividade meramente técnica, num jogo verbal em branco, destituído de emoções e idéias. A fórmula cruel de JPP descreve não apenas os processos acima, mas muitos outros do mundo em que vivemos, no Século de Pavlov. Brindemos à percepção do poeta, e ao refinamento com que soube encontrar a forma exata de transmiti-la.
(NOTA: na página do jornal era impossível reproduzir o formato das estrofes do poema, mas aqui no blog dá para fazer.)
1591) Walt Whitman (18.4.2008)
Ele está pouco em evidência hoje, mas houve um momento em que era O Maior Poeta Do Mundo. Confesso que nunca foi um dos meus preferidos. Sua voz poética se derrama em versos excessivamente longos, e cai na tentação das enumerações infindáveis, o que dá à sua poesia um certo tom catalográfico.
Walt Whitman não é uma gruta de Ali Babá, cheia de pedras preciosas engastadas em jóias de fina ourivesaria. É uma Serra Pelada, uma cordilheira cheia de ouro e diamantes, mas é preciso cavar para encontrá-las, porque o entulho é grande.
Quem escreveu um poema chamado “Saudação a Walt Whitman”? Acertou quem disse Fernando Pessoa, que dele extraiu o verso longo e a voz declamatória de Álvaro de Campos, superiores aos do próprio Whitman. Whitman abrigava multidões em si, mas sua voz era uma só. Fernando era muitas pessoas. Corrigiu os excessos do mestre, cujo espírito indomável mudou-lhe a vida:
“Abram-me todas as portas! / Por força que hei de passar! / Minha senha? Walt Whitman... / Mas não dou senha nenhuma… / Passo sem explicações... / Se for preciso meto dentro as portas...”
Quem escreveu “Ode a Walt Whitman”? Acertou quem disse Garcia Lorca, que em seu livro atípico O Poeta em Nova Iorque dizia:
“Nem um só momento, velho e formoso Walt Whitman, / deixei de ver tua barba cheia de mariposas, / nem teus ombros de veludo gasto pela lua, / nem tuas coxas de Apolo virginal, / nem tua voz como uma coluna de cinza”...
Para esses poetas de alma feminina, Whitman era uma poderosa imagem sexual, com seu corpo de lenhador, suas barbas grisalhas de profeta, sua intenção explícita de ser todos os homens e todas as possibilidades do Homem.
A fama de Whitman se deve em partes iguais a seu verso sem rédeas (alguns o consideram o verdadeiro inventor do verso livre, sem métrica), ao seu espírito democrático e americaníssimo, e à persona máscula e homossexual que criou, e que encantava aos homens e às mulheres por igual.
Jorge Luís Borges, em suas memórias, afirma: “Por algum tempo achei que Whitman era não só um grande poeta como também o único, e que era uma prova de ignorância não imitá-lo”. Poemas como “Buenos Aires”, “Os Gaúchos”, “Outro Poema dos Dons”, etc. são testemunhos dessa fase.
Para Borges, Whitman soube inventar para si mesmo um personagem de “ilimitada e negligente felicidade”. Borges considerava que Whitman forjara conscientemente (quase como estratégia de marketing, diríamos hoje) esse ideal viril, ao mesmo tempo heróico e erótico.
No ensaio “Valéry como símbolo” (em Outras Inquisições) ele compara esse projeto whitmaniano ao de Paul Valéry, de ser O Intelectual. Em “O outro Whitman” (em Discussão) Borges ironiza essa imagem de “um varão meramente saudador e mundial”. Vê em Whitman “um homem de invenção infinita, simplificado pela visão alheia em mero gigante”, e transcreve poemas curtos em que o poeta exibe uma faceta mais intimista.
Maiakóvski, Ginsberg, Vinícius, ninguém passou incólume sob a sua sombra.
1590) O Transleitor (17.4.2008)
O romance The Translator(Nova York, Morrow, 2002), de John Crowley, é a história da convivência de Innokenti Falin, um poeta russo, com sua tradutora norte-americana, em 1962, antes, durante e depois da crise dos mísseis cubanos. Como tudo que Crowley escreve, é várias coisas ao mesmo tempo: uma delicada história de amor, discussão sobre a natureza da poesia e da literatura, estudo da dificuldade de comunicação entre as pessoas, retrato de época. Crowley escreveu ficção científica (Engine Summer, The Deep, Great Work of Time), e o livro tem algo do gênero, ao sugerir a existência de universos paralelos nos quais certos fatos históricos cruciais acontecem de maneira diferente. Crowley também é mestre da fantasia: Little, Big (ganhador do World Fantasy Award) lida com elfos, e o presente livro lida (de maneira indireta, simbólica) com anjos.
Nas últimas décadas Crowley dedicou-se a uma tetralogia de romances explorando a magia renascentista, livros ambientados na época atual e também no tempo do Dr. John Dee, o mago e alquimista que assessorava a Rainha da Inglaterra. Esses romances (Aegypt, 1987; Love & Sleep, 1994; Daemonomania, 2000; Endless Things, 2007) contam uma espécie de história secreta da História, fatos que talvez tenham acontecido sem que ficássemos sabendo. E The Translator tem algo disto.
À primeira vista o livro se intitularia “O Tradutor”, mas a protagonista é Kit Malone, então a tradução correta é “A Tradutora”. Em inglês, “translator” pronuncia-se “trans-LÊI-tor”, e não posso resistir a um trocadilho dado pronto, de bandeja. Um tradutor é um trans-leitor, um leitor que lê transversalmente um texto, procurando não uma correspondência mecânica entre palavras que só se assemelham na superfície, mas a reconstituição do maior número possível das muitas camadas de significação do poema. No livro, cabe a Kit, que mal começou a estudar russo, acompanhar o poeta estrangeiro em sua busca pela palavra inglesa adequada para transmitir nuances de significado que talvez só existam no original.
Quando Kit lhe mostra uma tradução e se refere ao “seu poema”, Falin lhe diz: “Não. Esse é o seu poema. O meu foi escrito em russo”. O que um tradutor faz é escrever – no seu próprio idioma, com seus próprios recursos, seu talento – um texto que seja isomórfico com um texto pré-existente, criado por outra pessoa em outra língua. Não é o mesmo texto. Nunca vai ser. Eu, por exemplo, sou fã de Brecht e de Maiakóvski sem nunca ter lido um só poema deles, porque não sei uma palavra nem de alemão nem de russo. Li traduções em português, inglês, espanhol. Comparando umas às outras, comparando o sentido das frases, o vocabulário, o “tom de voz”, o modo com os versos se quebram e se organizam, fico com uma idéia aproximada do que devem ser os poemas desses autores. Nunca os conhecerei – a menos, claro, que aprenda as duas línguas. Um poema estrangeiro é a foto de um relâmpago – em Braille.
1589) A Fundação e a Al-Qaeda (16.4.2008)
Duvido que alguém tivesse ouvido falar na Al-Qaeda antes do 11 de setembro de 2001.
O nome de Osama Bin Laden me era familiar – um daqueles terroristas obscuros que vez por outra eram enumerados num “Globo Repórter”. Quando as Torres Gêmeas vieram abaixo, o governo dos EUA agiu como a polícia carioca. Tirou da gaveta a lista dos “habituais suspeitos”, e escolheu o mais provável.
Bin Laden assumiu a autoria dos atentados. Eu também assumiria, se fosse acusado – perdido por um, perdido por mil. (Ademais, no mundo dos criminosos crime grande é sinônimo de Poder.)
De quebra, foi-lhe atribuída a chefia de uma misteriosa organização chamada Al-Qaeda, responsável, desde então, pela maioria dos grandes atentados que têm ocorrido, da Indonésia à Espanha.
Não passou despercebido, aos leitores de ficção científica do mundo islâmico (que são legião), que o romance Fundação, o clássico de Isaac Asimov, tinha sido traduzido em árabe com o título “Al-Qaeda”. É esse o significado do termo árabe: base, fundação, alicerce, pilastra, ponto de apoio, e idéias correlatas, tanto literal quando simbolicamente. (Na imprensa brasileira, “Al-Qaeda” é em geral traduzido como A Base).
A coincidência mais perturbadora, no entanto, é a que já abordei na coluna “A voz do morto” (28.1.2004). Bin Laden se comunica com o mundo da mesma maneira que Hari Seldon, o protagonista de Fundação: através de depoimentos gravados que seus seguidores fazem exibir em momentos estratégicos.
No caso de Hari Seldon, esses depoimentos (gravados há séculos, quando ele era vivo) servem como confirmações de sua teoria da Psico-História, uma ciência probabilística capaz de prever o desenvolvimento futuro da civilização. Duzentos anos depois de morto, Seldon reaparece no vídeo, dizendo: “Pelo que calculo, vocês devem estar enfrentando tais e tais problemas, de tal ou tal maneira. Aqui vão minhas instruções sobre o que devem fazer”. Perplexos e maravilhados com a precisão do diagnóstico, os governantes do futuro não têm saída senão seguir a receita.
Giles Foden tem um extenso artigo no “The Guardian” (http://books.guardian.co.uk/review/story/0,12084,779530,00.html) no qual faz uma fascinante análise dos paralelos entre terrorismo e FC. Uma conexão que eu desconhecia é a da seita Aum Shinrikyo, responsável pelos atentados com o gás “sarin” no metrô de Tóquio, em 1995.
Foden cita um jornalista japonês, e diz que o propósito da seita, inspirada na série Fundação, era “reconstruir a civilização após um cataclisma, e combater as poderosas instituições globalizantes que estão produzindo o apocalipse”. A retórica delirante de certos terroristas lembra muito a de numerosos vilões da FC, os tais cientistas loucos que querem dominar o mundo.
Será que a FC é uma influência nociva? Nada disso. Como raio-X do nosso inconsciente coletivo, a FC é um diagnóstico antecipado de tudo aquilo que já existe mas só vai se tornar manifesto daqui a décadas.
1588) As fotos construídas de Lori Nix (15.4.2008)
Tenho um interesse especial pelos trabalhos artísticos que procuram reunir mais de uma técnica. Quando falamos em fotografia, por exemplo, a primeira coisa que nos vem à mente é um fotógrafo com a câmara na mão, caminhando por aí e registrando as coisas que vê à sua frente. Existe uma arte mista, no entanto, que consiste em criar objetos e fotografá-los. Preparar cenas, e fotografá-las; armar cenários inteiros, com os respectivos personagens, e fotografá-los. Não me refiro à fotografia publicitária ou de moda, mas a criações com intenção artística, reunindo elementos que parecem teatro, parecem modelismo ou arquitetura... e fotografia.
É o caso da artista Lori Nix, cujos trabalhos podem ser vistos aqui (http://www.lorinix.net/). Ela prepara cenários em pequena escala, cheios de objetos em miniatura, e depois os fotografa. Em seu saite há diversas séries: “A Cidade”, “Perdidos”, “Insecta Magnifica”, “Algum outro lugar”, “Acidentalmente Kansas”. Em cada série, fotos desses cenários em miniatura que causam espanto pela riqueza e exatidão dos detalhes. Em “A Cidade”, por exemplo, “Biblioteca” nos mostra o salão de uma biblioteca abandonada, as paredes cobertas de livros empoeirados, móveis caídos, árvores imensas crescendo no meio do aposento e projetando-se para fora pelas aberturas do teto em ruínas. “Aquário” mostra um aposento quase circular, com as paredes cobertas de musgo ou de algas, tendo em certo ponto um aquário de verdade que reproduz o formato do ambiente onde se encontra. A “Torre do Relógio” mostra outro local abandonado, o teto cheio de buracos, nenhum sinal de presença humana, e vemos de dentro para fora as engrenagens mecânicas do relógio da torre.
Trabalhos assim envolvem partes iguais de artes plásticas e fotografia, e eu diria que também existe uma espécie de teatro implícito nisso tudo, porque cada um desses cenários pressupõe uma história que ocorreu ou que ainda está ocorrendo. Não se trata simplesmente de fotografar, mas de produzir uma realidade artificial e registrá-la através da foto. E a foto é indispensável, porque somente nela, pela ausência de proporções externas em relação ao mundo, podemos acreditar que aqueles cenários minúsculos são os espaços reais que representam.
Num texto que há no saite da artista, Jeffrey Hoone comenta que nos últimos trinta anos muitos artistas têm explorado essa mistura entre evidência e imaginação, através da ambigüidade da fotografia construída. Ele cita “as cenas cuidadosamente construídas de Bernard Faucon com manequins de crianças, as desconstruções de papéis sexuais levadas a cabo por Laurie Simmons e Cindy Sherman, os elegantes estudos arquitetônicos de Jim Casebere, e as produções monumentais de Jeff Wall e Gregory Crewdson”. Talvez seja excessivo chamar a isso “uma nova forma de arte”, mas não há dúvida de que é uma combinação muito rica de possibilidades.
sexta-feira, 29 de janeiro de 2010
1587) A Potestade (13.4.2008)
(foto: Man Ray)
Sonhei que estava flutuando no espaço sideral, cercado de constelações, de portentos, de trevas fulgurantes.
A Potestade rodeou-me com sua Presença, e dirigiu-se a mim:
“Não crês na minha existência”, disse-me ela, e cada célula de meu corpo reverberou como um tímpano. “Por isso prefiro dirigir-me à totalidade do teu Ser, que só emerge quando adormece o cão de guarda que te sustenta vida afora, e ao qual chamas de Eu, ou Consciência”.
Eu estava aterrado e sem palavras; só me restava escutar. Sentia-me esvoaçar em todas as direções, como uma pluma no epicentro de um tornado.
“Admiro tua fidelidade a ti próprio,” prosseguiu. “São muitos os que não crêem, mas dizem crer por covardia, por conformismo, ou por imitação. Mais importante que a fé é a verdade. Mais importante do que crer em mim é ter a coragem de olhar dentro de si mesmo e dizer sem rebuços o que vê”.
O que via eu? Via galáxias coruscantes, aglomerados densos de matéria escura, estrelas que faiscavam como os grãos de areia no interior de um tornado. E aquela voz, que prosseguiu:
“Deves estar te perguntando – por que eu? Por que logo eu fui chamado para este Contato, esta Revelação? E te responderei usando a linguagem do teu tempo e do teu povo. O Universo está contido em ti. Em teu corpo e tua alma estão gravados de forma indelével todas as informações necessárias para reconstruir tudo isto que vês à tua volta. Fosse este Universo destruído, bastaria que tu sobrevivesses para que toda a história dele pudesse ser reconstituída, a partir das leis que governam teus átomos e tuas células vivas. O Universo é auto-reflexo: está todo gravado em cada uma das partes vivas que contém.”
Fez uma pausa.
“Isto vale não só para ti, é claro, mas para qualquer outra criatura. Se te escolhi foi por mero Acaso. Quero te mostrar algo”.
Fez um gesto com a mão, e a esse gesto descerrou-se uma Cortina. Mas como posso dizer “um gesto”, se sua presença ocupava toda a face interna da esfera de espaço que me continha, como falar em mão se sua mera impressão digital era composta pelo turbilhão de galáxias que ali revoluteavam?
Mas a esse gesto uma Dimensão abriu-se e vi ali justapostos todos os tempos, todos os passados e futuros, todos os fios entrelaçados dos mundos possíveis.
“O mundo em que vives passa por uma crise que pode destruí-lo”, prosseguiu a Voz. “Falo do teu planeta, e do teu país. Quando crises assim se anunciam, escolho um habitante para me informar sobre a necessidade desse mundo. E é isso que te pergunto: Vale a pena que esse planeta e esse país existam? Vale a pena que prossigam? Se achares que não, desaparecerás com eles. Mas se achares que sim, desaparecerás só tu. Teu nome será obliterado, teus atos esquecidos, teus descendentes se estiolarão. Teu país prosseguirá, e desaparecerás apenas tu. Não tens que me responder agora. Vai – desperta!”
Nesse instante o celular tocou na mesa de cabeceira. Atendi, e era engano.
1586) “O cristal dos verões” (12.4.2008)
Leio a poesia de Sérgio de Castro Pinto há mais de trinta anos. Gostaria de dizer que a leio há quarenta, porque acaba de sair a coletânea O cristal dos verões, reunindo sua produção poética entre 1967 e 2007. Mas em 1967 eu estava descobrindo Drummond e João Cabral. Ainda me levaria um certo tempo para descobrir os poetas paraibanos, devido à hipermetropia cultural de que sofremos, eu mais do que todos. Não importa, porque é próprio da Arte ter efeito retroativo, como uma lanterna acesa que a gente ergue para iluminar o caminho à frente mas que nem por isso deixa de clarear também para trás. A boa poesia é uma luz intemporal: a de ontem pode clarear nossos dias de hoje, e a que lemos hoje pode iluminar coisas que não víramos ontem.
Esta coletânea mostra como a evolução de um poeta não se dá meramente por uma sucessão de fases em que na primeira ele faz um tipo de verso, na segunda faz outro, e assim por diante. A evolução poética se dá por um processo de substituições e de retornos, em que uma técnica ou uma temática não são abandonadas por completo, mas deixadas de lado momentaneamente enquanto o poeta se interessa por outra coisa. Mal comparando, é como se dá com um percussionista de show, que tem à sua frente toda uma tenda de instrumentos, aos quais vai recorrendo, e retornando, sempre que a necessidade se apresenta.
Para mim existe uma continuidade, por exemplo, entre os poemas mais longos e mais complexos de A ilha na ostra (1970) e o minimalismo do recente Zoo imaginário (2005). No primeiro estão alguns dos poemas mais republicados de Sérgio, como o “Camões/Lampião” e a série de textos sobre fotografia, onde existe algo de João Cabral a abordagem analítica de processos. O segundo traz pequenos retratos minimalistas, que por um lado lembram certos textos de Mário Quintana, mas também as vinhetas poéticas com que Erik Satie acompanhava algumas de sua composições (como na série “Sports et Divertissements”). Mas podemos observar que o jogo de assonâncias do tipo palavra-puxa-palavra é raramente empregado tanto por Cabral quanto por Quintana; e que o poder observador do poeta o traz ainda mais próximo dos retratos zoológicos de Guimarães Rosa em Ave, Palavra, o que promove a fusão entre (como diz Sérgio) “a p(rosa) e a (poe)sia”.
O senso visual infalível do poeta o leva a registrar detalhes mínimos do cotidiano como “buquês de roletes”, a ver as noites como “folhas de papel carbono” entre as páginas brancas dos dias, a perceber no pavão um “narciso voyeur”, a ver móbiles de Calder nas costelas dos pobres, a explorar em todas as direções emblemáticas o “y” da Fazenda Guarany. No equilíbrio entre a percepção visual diferenciada e o malabarismo sonoro das aliterações, um livro de poesia de Sérgio de Castro Pinto é uma sucessão de flashes indeléveis em que a linha do verso costura e justapõe o visto, o imprevisto, o ouvido e o vivido.
1585) O ginecologista no harém (11.4.2008)
Todo sujeito muito perseguido se torna vingativo quando enriquece, mas se torna magnânimo se ficar muito milionário.
É o caso do escritor Paulo Coelho. Cada livro que ele publica é tratado como se fosse um tapete velho que a gente pendura num varal e mete a pancada para tirar a poeira acumulada ali há cem anos.
Bater nos livros de Paulo Coelho é um esporte nacional. E no entanto ele trata os críticos com uma benevolência zen, e afirma: “Cabe ao leitor ler, ao crítico criticar, e ao escritor escrever”.
Numa coluna recente na revista dominical do “Globo”, PC citou uma frase de Brendan Behan: “Críticos são como eunucos em um harém. Teoricamente, eles sabem qual a melhor maneira de fazer, mas não conseguem ir além disso”.
Na qualidade dupla de escritor e de crítico (embora qualquer um possa me considerar mau escritor e mau crítico), acho que posso contribuir com algo para essa descrição. Um crítico não é necessariamente um eunuco, alguém incapaz de fazer o que critica. Alguns dos melhores filmes da história do cinema foram feitos por críticos que um dia se meteram a dirigir: François Truffaut e Jean-Luc Godard são dois exemplos que me ocorrem (e muito diferentes entre si – a única coisa que têm em comum é que eram da mesma turma).
Na literatura, temos o exemplo de Umberto Eco, que era um crítico ao quadrado, ou seja, professor de Semiologia numa Universidade, e quando estreou foi com um romance que botou os escritores profissionais no chinelo.
Se é para comparar o crítico a alguém, melhor do que um eunuco é um ginecologista. O problema do crítico, quando se mete a escrever, não é a falta de imaginação criativa. O que lhe falta é a descontração lúdica de quem faz algo por mero prazer.
O excesso de bagagem teórica pode ser uma vantagem na hora de criticar, mas é um peso na hora de criar. O escritor é um cara que olha para dentro de si mesmo; um crítico é um cara acostumado a olhar para dentro dos outros. É clínico, distanciado, brechtiano. Na hora de ser criativo, ele poderia lamentar-se como o robô dos quadrinhos de Barbarella, quando a heroína elogia seu desempenho na cama: “Madame é muito gentil, mas meus impulsos têm algo de mecânico”.
O escritor acostuma-se a ser levado pela intuição, escreve sem precisar explicar muita coisa a si mesmo. Pode se dar o luxo de responder “Não sei” a quem lhe pergunta o porquê de tal ou tal detalhe do que escreveu.
O crítico, que fez a própria fama explicando os porquês das obras alheias, sente-se pressionado a ter a mesma jurisdição sobre as próprias. Quando é um crítico meramente impressionista, que critica com base nas suas paixões subjetivas, ele até que se furta um pouco a essa cobrança. Mas os grandes críticos de nossa época são grandes racionalistas. São mentes apolíneas e implacáveis, acostumadas a analisar, dissecar, discernir. Na hora em que precisam do arrebatamento dionisíaco, o Deus do prazer se vinga e não comparece.
1584) Glauber vs. Madureira (10.4.2008)
O pessoal mais zombeteiro chama o Rio de Janeiro de “Capital do Factóide”. No Rio, quando nada de importante está acontecendo, inventa-se uma desimportância ruidosa, para que as moças da TV tenham a quem entrevistar, e para que os jornalistas sem assunto, como eu, resolvam o problema-de-sísifo intitulado “A Coluna de Hoje”. Feita esta ressalva, não posso deixar de comentar o factóide carioca mais recente. O “casseta” Marcelo Madureira, participando de um debate, disse: “Glauber Rocha é uma merda”. Foi o que bastou para que a cidade se mobilizasse em dois exércitos opostos. Me lembrei daquele dia em que Glauber falou: “O General Golbery é o Gênio da Raça Brasileira”.
Os intelectuais saíram em defesa de Glauber, é claro. Cartas aos jornais, artigos, reuniões de desagravo, exibições de filmes, e tudo o mais. Me solidarizei com isso, porque considero Glauber o maior cineasta brasileiro, e considero que seus três filmes realmente bons (Deus e o Diabo..., Terra em Transe, O Dragão da Maldade...) estão entre os melhores do mundo. Como se não bastasse isso, a pessoa pública de Glauber, como agitador cultural, foi algo que fez um bem enorme ao Brasil, e continua fazendo.
Acho melancólico o presente factóide porque toda essa repercussão é uma demonstração de força, não de Glauber, mas de Marcelo Madureira. A cidade inteira se mobilizou em função de uma imprecação desdenhosa que Madureira proferiu num momento “blasé”. Madureira (que não conheço pessoalmente) é um competente redator de humor para a TV, mas falando é uma espécie de Edmundo “Animal”, diz tudo o que lhe vem à cabeça. Se o que diz provoca tal comoção nos intelectuais, mostra apenas a reversão que houve no país. As manifestações de desagravo não comprovam a importância de Glauber, e sim a de Madureira. Comprovam apenas a fragilidade da imagem e do conteúdo de Glauber num país onde os poderosos não são mais os cineastas de vanguarda, e sim os humoristas de TV.
Digo isto sem preconceito de classe, porque eu também sou um humorista de TV (consultem meu currículo). E os humoristas são necessários por isso mesmo. Humorista é para ser irreverente e iconoclasta. O humorista é o ato-falho da consciência coletiva, aquele que diz o que estamos pensando mas jamais diríamos. É aquele que em plena corte pergunta ao Rei, diante da Rainha, se ele troca de cueca com a frequência com que troca de amante. Qualquer outro que dissesse isto iria para o machado e o cepo, mas o Bobo não.
A importância de Glauber independe da opinião de Marcelo Madureira sobre ele (e da minha). E não importa se para cada brasileiro que já viu um filme de Glauber existem 100 mil que já assistiram Casseta & Planeta. Os intelectuais esperneiam diante dessa provocações, mas adianta tão pouco quanto a rã de Galvani espernear sob uma corrente elétrica. Glauber Rocha e Marcelo Madureira são, cada um, exatamente o que fazem.
quinta-feira, 28 de janeiro de 2010
1583) Janis e Joan (9.4.2008)
Foram as grandes damas do rock e da música folk, para a minha geração. Eram diferentíssimas entre si, foram contemporâneas, e até hoje não sei se chegaram a se encontrar pessoalmente. Em geral, quem era doido por uma delas olhava a outra com desconfiança, mas para mim, aos dezoito anos, eram as minhas Musas. Eu colocava seus elepês alternadamente, ouvia-os com a mesma paixão, acreditava, com a mesma intensidade, no que cada uma dizia. Quando cantavam seus males de amor, eu fantasiava que as estava recolhendo sob o meu braço protetor, e dando-lhes carradas daquele carinho de que tanto precisavam.
Janis Joplin era aquela contradição viva, uma branca que cantava como uma negra, rasgando a alma em tiras em cima do palco. Ela se queixava: “Faço amor com 20 mil pessoas durante três horas e depois volto para o hotel para dormir sozinha”. Era gordinha, branquela, sardenta, desajeitada. Tomava todas, provava de tudo. Não seria em hipótese alguma a garota que a gente gostaria de apresentar como namorada: “Papai, mamãe, esta aqui é Fulana...” Janis tinha aquele jeito escrachado e irreverente que ressurgiu anos depois em Cássia Eller, um jeito de bicho-do-mato difícil de domesticar. Ria alto, chamava nomes, escandalizava, cuspia no chão, coçava a mera hipótese de um saco. Cantava qualquer coisa, e quando cantava a música renascia, surgia pela primeira vez. Morreu de overdose aos 27 anos.
Joan Baez era o contrário disso, mas no mesmo patamar de intensidade. Tinha uma voz de soprano, cristalina, hipnótica. Quando começava a cantar, calavam-se, como nas lendas medievais, os pássaros nas árvores, as fontes nas colinas. O que tinha Janis de dionisíaca tinha ela de apolínea, sempre de branco, os cabelos negros muito longos e lisos, o perfil clássico de estátua grega. Era de ascendência mexicana, cantava em várias línguas. No primeiro LP seu que possuí, ela cantava “Muié Rendeira” e a “Bachiana no. 5” de Villa-Lobos. Era tímida, reservada, enigmática. Na música brasileira, seu jeito lembra o de Ná Ozetti. Preservava sua vida pessoal. Mas quem quiser a prova do estrago que Bob Dylan fez no seu coração, ouça “Diamonds and Rust”, composta para ele.
Falo das duas no passado, mas Baez ainda está viva, aos 67 anos, uma bela senhora cujos cabelos agora estão brancos e curtos. A voz, pelo que vi num especial de TV, continua a mesma. O mundo segue a ordem natural das coisas. Os dionisíacos queimam depressa, como uma lâmpada supervoltada. Os apolíneos queimam devagar como uma vela, cujo corpo diminui de tamanho mas a chama permanece a mesma. O olhar de Joan Baez revela hoje uma maturidade que parece sempre ter tido, e da qual ela precisa para aceitar o fato de que o mundo em que vive agora é o oposto do que sonhou um dia. Janis, neste mundo de hoje, seria muito mais feliz do que ela, mas explodiu cedo, o que para nós talvez não faça diferença, porque a luz que emitiu não dá sinais de arrefecer.
1582) Um crime imperdoável (8.4.2008)
Zezinho é operário da construção civil e gatuno contumaz, acostumado a dar-um-ganho nas posses alheias sempre que arranja um jeito. Trabalha no acabamento de edifícios, e não é raro que esteja finalizando um trabalho num prédio onde outros apartamentos já estão ocupados pelos moradores. No fim de uma tarde propícia, ele dá um jeito de ficar por último. Uma vez sozinho, pega uma gazua (ou cópia de chave, obtida em cumplicidade com o porteiro) e entra em algum apartamento cujos moradores estão fora. Pega coisas miúdas e cai fora. Seu grande golpe até hoje foi um notebook, que levou dentro de um jornal.
Uma noite, Zezinho fez a manobra habitual, mas teve azar. Estava no apartamento há poucos minutos quando ouviu a porta da frente se abrir e o dono da casa entrar. Pelo que o homem murmurava, Zezinho (que se escondeu rapidamente e prendeu a respiração) percebeu que ele trazia a filha semi-adormecida, que a deixava na cama de um dos quartos, e ia à garagem trazer o resto da família. Zezinho amaldiçoou-se pela falta de sorte, mas sabia que tinha alguns minutos para cair fora. Esperou o homem sair. Quando ouviu a batida da porta da frente, contou até vinte e saiu, pé ante pé.
Talvez tenha feito barulho, ou talvez a garota tenha levantado por algum motivo. Ela o viu passando no corredor, assustou-se, correu para a porta gritando pelo pai. Zezinho agarrou a menina, começou a bater nela; a garota chorava e chamava o pai. Desvencilhou-se dele e fugiu para o quarto. Zezinho a perseguiu, desesperado. Ele mesmo não lembra direito o que fez em seguida, mas depois de feito precisava ganhar tempo. A janela tinha uma tela de nylon. Ele a cortou com o que viu à mão. Enfiou por ali o corpo, deixou-o cair, achando que a queda atrairia todo mundo para o térreo. Saiu aos tropeções pela porta da frente do apartamento, e ao chegar às escadas ainda ouviu o elevador se abrindo e as vozes da família.
É absurda, minha história? Pode não ter acontecido, mas improvável não é. Por que até agora ninguém pensou numa história parecida com relação à morte da menina Isabela, dias atrás, em São Paulo? O pai e a madrasta da menina estão presos, e existe uma corrente-pra-frente, da imprensa e da opinião pública, querendo a punição dos dois. Talvez sejam culpados, por que não? Violências irrefletidas acontecem por aí, o tempo todo. Mas parece que, hoje em dia, a hipótese de um pai matar a filha dessa maneira é tão lógica, tão normal, tão previsível, que nem mesmo a hipótese de um suposto “Zezinho” (ou outra qualquer) é considerada. Espero que a polícia a esteja considerando, porque a imprensa em geral, até agora, já decidiu quem é o culpado (embora, escaldada, não o diga com todas as letras). É terrível o que vou dizer; mas de certo modo tenho esperança de que o culpado seja mesmo o casal. Porque se eles forem inocentes, o crime que está sendo cometido contra eles é tão grave quanto o assassinato de uma criança.
1581) Eu quero mudar o mundo (6.4.2008)
É um tique mental de nossa época. Todas as vezes que critico algo de errado, alguém diz: “Que é isso, rapaz! Você é um daqueles ingênuos que querem mudar o mundo?!” Claro que quero, sim, mudar o mundo, e não acho que seja ingênuo por querer isso. (Sou ingênuo noutras coisas; não nessa.) Querer mudar o mundo nunca foi ingenuidade, nunca foi utopia. Mudar o mundo não apenas é possível. É inevitável. Mudamos o mundo o tempo inteiro enquanto estamos vivos, enquanto estamos andando, agindo, falando, fazendo coisas. Optando, influenciando, interferindo.
Quando eu tinha dezesseis anos, a palavra de ordem era “mudar o mundo”. O cinema daquela época, a música popular, a literatura, o teatro, tudo que se fazia naquela época tinha como objetivo mudar o mundo. OK, nem tudo era assim – mas a parte mais significativa, mais inovadora, mais criativa e mais inteligente era assim. Todo mundo queria mudar o mundo. A expressão hoje na moda, “fazer sucesso”, já existia, mas era condicionada ao sucesso de cada um nessa tarefa, ou seja, à quantidade e qualidade de mudanças que cada um conseguia produzir.
Porque na verdade ninguém muda o mundo inteiro, instantaneamente, com um estalar dos dedos, uma batida da varinha-de-condão, não é mesmo? Os rapazes espertos de hoje, que só pensam em sucesso (leia-se: ganhar muito dinheiro), parecem supor que os projetos antigos de “mudar o mundo” buscavam isso – uma mudança tipo conto-de-fadas, um clique, um enter, um play. Pois olhe, naquele tempo não havia mudança que não exigisse esforço, trabalho, sacrifício; que não exigisse estudo ou preparação. O ideal de “mudar o mundo” não tinha a visão de hoje, quando tudo parece ser acessível e acessável, quando ninguém precisa nem saber ler para poder navegar, quando nem é preciso saber escrever para escolher o produto, basta levar até ele o dedinho do cursor e apertar o botão.
Estou sendo irônico com a cultura digital? É meu direito, porque foi minha geração, a dos cinquentões, que a inventou. Tim Berners-Lee, que inventou a World Wide Web, é mais novo do que eu; Bill Gates e Steve Jobs também. (Não digo isto para me gabar, porque além desse dado numérico não tenho muito a ver com esse pessoal.) Foram necessárias muitos milhões de noites em claro, simultaneamente, para criar os programas e protocolos que possibilitam a galera de hoje estar a um clique de distância do produto que querem comprar ou da foto de mulher pelada que estão procurando. (E, mais uma vez, não quero ser melhor do que ninguém – também compro produtos e olho foto de mulher pelada.) A poesia e o cinema talvez não mudem o mundo tanto quanto a informática e a política, mas mudam, sim, tudo muda. O mundo muda como o vento se move. Só é vento porque está se movendo, e só é mundo porque está mudando. Cabe à gente embarcar na mudança (que ocorrerá, queiramos ou não) e dizer: “Já que vai mudar, é pra mudar assim”. E mostrar como.
1580) Não aqui, mas agora (5.4.2008)
A Anistia Internacional promoveu há poucos anos uma campanha pelos direitos humanos que incluía uma intervenção vanguardista no espaço urbano. O conceito da campanha era: “Isto existe. Não aqui, mas agora”, e exibia atrocidades que estavam sendo cometidas naquele mesmo instante em outros lugares do mundo. Como se sabe, a Suíça é uma espécie de utopia do bom comportamento, um lugar onde tudo é limpo, tudo funciona, tudo é organizado, tudo é politicamente correto. Um lugar tão irritantemente bonzinho que mereceu de Harry Lime, o personagem de Orson Welles em O Terceiro Homem, a crítica arrasadora: “A Itália da família Bórgia só tinha tiranos e criminosos, mas nos deu as grandes obras de arte da Renascença, nos deu Leonardo da Vinci e Michelangelo. A Suíça é a democracia perfeita, e produziu o quê? Chocolate e relógios-cuco”. (O mais engraçado é que todo mundo atribui essa frase ao ator Orson Welles, que a pronuncia, enquanto ela deve ser de Graham Greene, autor do romance original e do roteiro do filme.)
A campanha consiste em painéis mostrando fotos de pessoas, em tamanho natural, superpostas a imagens que reproduzem com exatidão a imagem ao fundo (uma rua, um prédio, um parque) o que produz um efeito de “trompe l’oeil”. Imaginamos que o painel é transparente, e que estamos vendo pessoas que estão de fato ali. Assim, vemos prisioneiros encapuzados sofrendo tortura, adolescentes mal vestidos empunhando metralhadoras, um pai carregando nos braços o filho baleado, crianças esqueléticas catando restos de comida no chão... Como o fundo da imagem reproduz o fundo verdadeiro do local onde o painel está exposto, a impressão que nos dá é que houve uma ruptura do espaço-tempo e ali, naquela plácida calçada suíça, emergiu de repente uma criatura de Serra Leoa ou Abu-Ghraib.
É um exemplo de como se pode executar uma intervenção vanguardista num espaço urbano – desconstruindo o espaço, usando técnicas de “trompe l’oeil” e de camuflagem visual – e ao mesmo tempo produzir um choque ideológico, um choque político no observador. Critica-se muito a arte de vanguarda por ser esvaziada de conteúdo; a campanha da Anistia nos mostra o contrário. Ela mostra coisas que não existem aqui – no Aqui em que nos encontramos nós, transeuntes suíços – mas existe agora, neste instante, no mundo e no tempo em que vivemos. Por um desses cacoetes mentais que cultivamos, achamos que só é real o que acontece nas nossas proximidades, e que problemas existentes no Sudão ou no Haiti não nos dizem respeito. A campanha da Anistia traz para nosso Aqui (ou, pelo menos, para o Aqui dos suíços) o fervilhar de problemas de um Agora que nós e eles fazemos o possível para esquecer. Quem quiser, confira neste link esses cruzamentos fictícios mas reais entre o Tempo de todos e o Espaço de alguns: http://www.amnesty.ch/fr/actualite/news/2006/nouvelle-campagne-d-affichage-d-amnesty
1579) Grillet e o cine romance (4.4.2008)
Depois do sucesso de O Ano Passado em Marienbad, Alain Robbe-Grillet passou a ser disputado como roteirista por vários cineastas. Ele conta seu encontro com Michelangelo Antonioni. “Nós nos entendemos muito bem no começo,” diz ele. “Mas então eu comecei a descrever-lhe o roteiro que tinha em mente: Quando o filme começa, vê-se na tela...” Antonioni o interrompeu: “Conte-me a história. Eu resolvo o que se vê na tela”. Grillet conclui: “Mas isto era impossível para mim. Eu não sei pensar em termos de história. Só sei pensar no que alguém vê ou ouve”.
Antonioni era um cineasta da velha escola, sem muita capacidade fabulatória (para inventar histórias interessantes), mas dotado da capacidade de contar histórias alheias em imagens inesquecíveis. Quando Grillet se oferecia para fornecer as próprias imagens, surgia o impasse. Era como numa parceria em que Antonioni se dispunha a colocar música numa letra do outro, e o outro já lhe trouxesse a letra com melodia pronta.
A maioria dos obituários escritos a respeito de Grillet quando da sua morte semanas atrás referia-se a ele como alguém famoso nos anos 1960 mas hoje esquecido. Pode até ser que seus livros não venham sendo reeditados ou traduzidos; mas a sua linguagem infiltrou-se de forma pervasiva em toda a literatura de hoje. Onde quer que nos deparemos com a tal literatura “câmera + gravador”, ali está a marca do criador do Nouveau Roman francês. É cada vez maior na literatura de hoje a presença de autores com intensa memória ou imaginação visual, autores que com esse talento formatam todo um estilo de expressão.
Georges Perec, em As Coisas ou em A Vida Modo de Usar elevou ao quadrado essa veia descritiva de Robbe-Grillet. Perec tem uma riqueza verbal espantosa, e uma mistura de imaginação e memória visual que fazem dos seus livros uma das literaturas mais visuais do nosso tempo, em que ambientes, pessoas e objetos são descritos com uma excepcional eficácia. Para contrabalançar esse voyeurismo compulsivo, Perec é também um excelente inventor de enredos, de peripécias, de complicadas interferências da história do personagem A na história do personagem B, que por causa disto interfere em C, que interfere em D, e assim por diante.
O que salva a literatura de Grillet de uma monotonia insuportável é sua propensão ao mistério, que faz com que possa aplicar-se a boa parte dela o que ele diz da literatura de Raymond Roussel: “O mistério é um dos temas formais mais prazeirosamente utilizados por Roussel: procura de um tesouro oculto, origem problemática deste ou daquele personagem, ou de tal objeto, enigmas de toda espécie apresentados a todo instante tanto ao leitor quanto ao herói sob a forma de adivinhações, de charadas, de colagens aparentemente absurdas, alusões, caixas de fundo falso, etc.” Num mundo como o dele, em que tudo é intoleravelmente nítido, o mistério está nas conexões entre o que é visto, na razão de ser do que se fez presente.
quarta-feira, 27 de janeiro de 2010
1578) Tipografia cinemática (3.4.2008)
Quem se interessa pelas intersecções entre Arte e Tecnologia, ou entre Literatura e Cultura Digital, não pode deixar de dedicar algumas horas à apreciação daquilo que o pessoal chama de Tipografia Cinemática. É uma espécie de cinema de animação, só que utilizando textos em vez de imagens. Somos acostumados a ver o texto, na tela, apenas em forma de legendas que traduzem os diálogos de filmes estrangeiros. Mas há milhões de maneiras de explorar na tela a materialidade das palavras, usando o movimento, os cortes, as fusões, as diferentes tipologias de letras, suas cores, seus tamanhos, e assim por diante. Tudo isto, é claro, pode vir também acompanhado pelo som.
Neste saite, “Grandes Cenas da TV e do Cinema Contadas Apenas Através da Tipografia e do Som”, de David Chen, há uma boa introdução a esta nova arte, com ótimos exemplos em forma de pequenos vídeos do YouTube. Há um vídeo inicial descrevendo os princípios básicos da coisa, e em seguidas clips extraídos de filmes como Pulp Fiction, Full metal jacket, O advogado do diabo, Kill Bill, O grande Lebowski, e vários outros. Sugiro que o leitor veja primeiros aqueles dos filmes que já conhece, porque ter uma referência prévia sobre a cena ajuda bastante. O link é: http://www.alwayswatching.org/features/great-scenes-television-and-film-told-using-only-typography.
O que fazem esses artistas? Eles pegam as frases originais dos diálogos e as sincronizam com a voz dos atores. O texto aparece em sincronia total, mas aproveitando todos os recursos da animação. As frases entram na tela como uma fita ondulante, ou como uma chuva de letras que se entrelaçam, ou de uma em uma como se fosse carimbadas pelos berros da voz. Amontoam-se tiritando num cantinho da imagem, ou violentam sua moldura com letras garrafais. Palavras esbarram umas nas outras e se despedaçam. Vozes ameaçadoras vêm salpicadas de borrões de sangue; vozes tímidas produzem linhas miúdas, fora de centro, mas alinhadas e bem comportadinhas.
O material mostrado nessa página (e nas muitas outras para as quais aparecem links) tem uma riqueza tal que podemos dizer mesmo que estamos diante de uma nova forma de arte, ou, pelo menos, de uma nova forma de tratar o texto, de enriquecê-lo. Por favor não pensem que eu estou entrando naquela velha onda de “a literatura morreu, apareceu uma coisa nova”. Formas novas não aparecem para aposentar as formas velhas. Estas, quando se aposentam, é por incompetência própria, e não creio que seja o caso com a palavra escrita e impressa. Acontece que a tipografia cinemática nos dá a possibilidade de usar – para dar só um exemplo – a Poesia, fazendo de um poema um clip audio-visual de poucos minutos onde se conjugam a voz de um ator, recursos tipográficos, o cinema de animação, a cor, o som, o movimento, tudo isso para potencializar, comentar, enriquecer o que jaz no texto. As possibilidades, como sempre, são infinitas.
1577) O ponto-e-vírgula (2.4.2008)
(Neil Neches no metrô)
Seguindo uma pista fornecida por Jovany Medeiros, fiquei sabendo que usuários do metrô de Nova York depararam-se recentemente com um cartaz colocado pela administração, pedindo-lhes para jogarem no lixo os jornais já lidos, em vez de deixá-los sobre o banco. A mensagem dizia: “Please put it in a trash can; that’s good news for everyone” (“Por favor ponha o jornal no lixo; é uma boa notícia para todo mundo”). O fato saiu na imprensa, não porque a mensagem fosse politicamente correta, mas por ser gramaticalmente sofisticada. O uso do ponto-e-vírgula numa mensagem publicitária é coisa rara. Este sinal de pontuação parece ser uma sofisticação em vias de desaparecimento. Extinguir-se-á em mais alguns anos, como as abotoaduras de punho, o relógio analógico ou a mesóclise.
De passagem, observo uma sutileza, e me corrijam se estou errado: em inglês parece não ser uso a vírgula depois do “please”, ao passo que em português dificilmente pedimos “por favor” por escrito sem usá-la. A imprensa americana discutiu à larga esse ponto-e-vírgula colocado (diz-se) por Neil Neches, o responsável pelas mensagens do metrô. Acho esta uma discussão das mais saudáveis. O acesso das massas semiletradas à imprensa (principalmente a TV, onde o letramento não é pré-requisito absoluto) tem como efeito positivo uma descontração maior, uma coloquialidade saudável, o registro vívido e vital de uma língua em perpétuo processo de reinvenção. Como efeito negativo tem a perda de sutilezas adquiridas. Ponto, vírgula, ponto-e-vírgula, dois-pontos, travessão... Tudo isto pertence (penso eu) menos ao universo da gramática do que ao universo da música. São notações musicais. Determinam pausas ou quebras de ritmo; indicam inflexões; prescrevem funções sintáticas. São uma partiturazinha quase invisível que corre ao longo do texto, indicando a infalível melodia das perguntas, o lento fade-out das reticências, o breque brusco da exclamação.
O ponto-e-vírgula tem suas funções descritas em mais de um manual, e não irei redescrevê-las agora. Basta-me citar exemplos saborosos como o de Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala (cap. IV): “Porque nada mais anticientífico que falar-se da inferioridade do negro africano em relação ao ameríndio sem discriminar-se antes que ameríndio; sem distinguir-se que negro. Se o tapuia; se o banto; se o hotentote.”
Lembro de passagem que o livro do mestre Freyre é um dos primeiros, e um dos raros em nossa bibliografia, a usar um ampersand (&) em pleno título. Assim como Grande Sertão: Veredas é talvez o nosso primeiro romance a trazer no título um dois-pontos, este sinal hoje tão açambarcado pelo formato dos títulos de “papers” universitários (“Veredas da Linguagem: A Pontuação na Obra de Guimarães Rosa”). Kurt Vonnegut dizia que Hemingway, ao se matar, colocou um ponto final em sua vida, mas que a velhice é uma espécie de ponto-e-vírgula; sempre existe a possibilidade de uma surpresa a mais.
1576) Blog “Mundo Fantasmo” (1.4.2008)
Meus treze leitores reclamam de vez em quando que estes meus artigos são impossíveis de consultar, a menos que o cidadão se disponha a recortá-los diariamente com tesoura e guardá-los numa pasta. Coisa que nem mesmo eu consigo fazer. Tenho tudo no computador, numerado, datado, direitinho. Quando preciso encontrar alguma coisa, abro o Arquivo Geral e dou um comando de busca; em geral não me custa mais do que cinco minutos para achar um artigo específico.
Já me cobraram a publicação destes textos em livro, mas não sei se seria uma boa idéia. Quem compraria, fora aqueles treze apóstolos? Adquiri há pouco pela Internet o volume dos Essays and Reviews de Edgar Allan Poe, reunindo toda sua produção eventual na imprensa. É uma quantidade assombrosa de texto. São 1.544 páginas, escritas com pena e tinteiro à luz de lamparinas, por um cara que, além disso, produziu quase o mesmo tanto de laudas com contos e poemas que estão entre os melhores do mundo, e morreu aos 40 anos. Como levo uma vida bem mais cômoda do que a de Edgar, já estou com cerca de 1.570 artigos aqui no JPB. Poe acha (e merece) quem compre o calhamaço dele, mas eu não preciso correr o mesmo risco.
Vai daí, aproveitando as facilidades da cultura digital, comunico aos meus treze leitores diários, bem como aos eventuais, que dei início à publicação digital de todos estes artigos no JPB. Publicar não significa apenas imprimir num livro, mas tornar público e acessível a qualquer interessado. Caso o leitor seja um deles, recomendo-lhe dirigir seu Explorer ou equivalente para este endereço: http://mundofantasmo.blogspot.com/.
Não tem tudo, ainda, porque isso dá trabalho e eu não posso pagar alguém para fazê-lo. Sou o meu próprio secretário, meu próprio office-boy, meu próprio telefonista. Até esta semana, postei mais de 300 artigos que cobrem desde o meu dia de estréia aqui no jornal (23 de março de 2003) até abril de 2004. A grande vantagem do Blog é a possibilidade de pesquisar por um assunto específico. No fim de cada artigo coloco os marcadores que me parecem mais apropriados, sobre os temas que o artigo aborda ou cita de passagem. Este artigo aqui, por exemplo, provavelmente terá como marcadores “jornalismo”, “cultura digital”, “Paraíba”, “Edgar Allan Poe”.
Além disso, o leitor tem um espaço de busca (junto ao botão “Pesquisar blog”) onde ele pode pedir um tema específico (“ficção científica”, “forró”, etc.), um nome próprio (“Borges”, “Dylan”, etc.), ou palavras aleatórias. Com isto espero ir aos poucos atendendo aqueles leitores que me mandam email pedindo um artigo saído há anos sobre um tema qualquer. Por outro lado, o título de cada coluna traz a data original de publicação, portanto quem quiser citá-lo em artigos acadêmicos já tem a data de mão beijada. Fiquem à vontade para visitar meu blog, que irei abastecendo aos poucos durante este ano. Divulguem! E mais uma vez agradeço a leitura e a atenção de todos.
1575) Neil Aspinall (30.3.2008)
(Neil Aspinall substituindo George)
Houve um tempo em minha vida em que se alguém me perguntasse: “Se você pudesse ser outra pessoa, quem gostaria de ter sido?” eu responderia: “Neil Aspinall”. Minha resposta produziria no rosto do perguntante uma expressão vácua, e um olhar de computador travado – o que era, de certo modo, minha intenção. Aspinall (falecido esta semana, aos 65 anos) foi talvez a pessoa mais próxima dos Beatles durante toda a existência do grupo. Mais do que o empresário Brian Epstein, mais do que o produtor musical e arranjador George Martin, mais do que qualquer outro indivíduo.
Nascido em Liverpool, ele estudou no mesmo colégio com John, Paul e George, mas aproximou-se deles através de Pete Best, o baterista que depois foi descartado em proveito de Ringo Starr, e que era seu amigo do peito. Hunter Davies, o biógrafo oficial dos Beatles, sugere inclusive que Neil teve um caso com a mãe de Pete, Mona Best, dona do Casbah Club e da pensão onde Neil morava. Quando a banda começou a fazer shows profissionais Neil (que os rapazes chamavam “Nell”) tornou-se motorista e “roadie” oficial, dirigindo a van que os levava e carregando os amplificadores. Quando Pete Best foi dispensado, Neil ficou furioso e quis se demitir, em solidariedade ao amigo, mas Pete o dissuadiu: “Não faça essa besteira, esses caras vão longe”. Foram – e Neil com eles.
Trazia comidas, providenciava garotas, falsificava autógrafos nas fotos da banda, passava os ternos, resolvia todos os pepinos de última hora. Os Beatles decolaram para o estrelato mundial, e Neil do lado, alugando jatinhos, administrando excursões, apaziguando brigas. Foi ele quem descobriu e comprou (por meio milhão de libras) a casa de 3 Savile Row, onde a Apple Records se instalou. Como ex-estudante de contabilidade, tornou-se gerente de produção da gravadora. Trabalhou na produção do filme Let it Be e na organização da Beatles Anthology lançada em 1995. Juntamente com o outro pau-pra-toda-obra Mal Evans (falecido em 1976), era uma das pessoas em quem os Beatles tinham total confiança, uma confiança que nunca foi traída. Neil, aliás, sempre recusou propostas de editoras interessadas em publicar suas memórias.
Na reta final da separação dos Beatles, quando o empresário Allen Klein assumiu os negócios do grupo no auge da crise da Apple, Neil confessava ter sonhos estranhos. Sonhava que estava fugindo de um perseguidor desconhecido, correndo pelas ruas com os braços cheios de preciosos peixes feitos de prata. Quanto mais corria, mais os perseguidores se aproximavam; e quando mais tentava segurar os peixes, mais eles deslizavam e escapuliam dos seus braços. O saite do The Telegraph mostra (http://www.telegraph.co.uk/news/main.jhtml?xml=/news/2008/03/24/db2405.xml) uma rara foto de Neil substituindo George Harrison à guitarra durante um ensaio dos Beatles para o Ed Sullivan Show: aquele sujeito louro, magrinho, tocando no meio dos outros três. Pense num cara que realizou um sonho!
terça-feira, 26 de janeiro de 2010
1574) “Juno“ (29.3.2008)
O simpático filme de Jason Reitman é mais uma produção independente que se impõe no mercado americano. Ótimo sinal. Apesar dos blockbusters super-caros sobre super-heróis dos quadrinhos, o mercado dos EUA tem recebido bem estes filmes feitos com pouco dinheiro e que repousam nas qualidades tradicionais do cinema médio americano: roteiros sólidos, bons atores, direção voltada para a velha arte de contar uma história. O problema com essas características é a rapidez com que ficam defasadas depois de alguns anos. Parece que estamos no despontar de uma nova safra. Juno concorreu a três Oscars (filme, roteiro, atriz). Oscar jamais foi sinal de qualidade, mas funciona como termômetro de tendências. E pela segunda vez em dois anos seguidos o Oscar de roteiro original foi para um novato: desta vez Diablo Cody (no ano passado foi Michael Arndt por Pequena Miss Sunshine).
Juno nem parece muito um filme americano; lembra mais um filme canadense ou holandês. O que tem de mais americano são os diálogos, muito engraçados mas quase ininteligíveis pelo acúmulo de gírias (e mesmo nas legendas muita coisa se perde). Grande parte do peso do filme repousa na atriz principal, Ellen Page, que carrega o edifício assobiando, na ponta do dedo mindinho. O papel parece ter sido escrito para ela ou improvisado por ela. É o charme desconcertante de sua personagem, carismática e imprevisível, que nos arrasta para longe daquele atoleiro mortífero, o filme-de-família dos EUA, feito para celebrar sentimentos e valores humanos. Uma espécie de livro de auto ajuda preparado com a fórmula do comercial de chiclete de bola. Juno e Pequena Miss Sunshine podem ser um indício de que o filme-de-família da próxima década conseguirá finalmente tratar de forma tranquila e minimamente franca certos assuntos que o puritanismo dos EUA sempre repeliu com horror e procurou expulsar da tela: aborto, divórcio ou separação, homossexualismo, drogas, gente não-bonita, gente que não dá certo na vida.
Há uma curiosa coincidência comercial nesses dois filmes. Little Miss Sunshine custou cerca de 8 milhões de dólares e arrecadou no mundo inteiro cerca de 100 milhões. Juno custou 6,5 milhões e arrecadou 200 milhões até este mês de março. A esta altura há milhares de produtores e roteiristas de prancheta eletrônica em punho, dando Stop, Rewind e Play em cada palmo desses dois filmes, para extrair deles a fórmula mágica de multiplicar por 10 ou por 20 um investimento. Titanic (o filme mais lucrativo da História recente, em termos absolutos) custou 200 milhões e arrecadou cerca de 2 bilhões, mas, quem é que tem 200 milhões para dar um pontapé inicial num projeto? Muito melhor tentar conseguir essa proporção com um dispêndio mais modesto. Só espero que essa busca pela fórmula não venha a nos deixar soterrados de imitações, como anda ocorrendo no filme-de-serial-killer pós-Silêncio dos Inocentes e fantasia heróica pós-Senhor dos Anéis.
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