terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

5036) Brian Stableford, 1948-2024 (27.2.2024)




Uma perda muito triste para a literatura de ficção científica foi o falecimento, dia 24 deste mês, do inglês Brian Stableford, pouco conhecido aqui no Brasil, onde foi pouco traduzido. Há alguns títulos dele naquela antiga coleção de bolso da Ed. Bruguera, que ainda podem ser encontrados nos sebos. 
 
Stableford foi uma dessas máquinas infatigáveis de produzir textos, e o que admira na obra dele é que dentro da espantosa quantidade de livros que escreveu, traduziu, antologizou e editou haja tanta coisa de alto nível. 
 
Era daquela geração de ingleses que cresceu no pós-guerra, já se beneficiando da reconstrução do país mas sentindo pairar, ainda, a sombra do absurdo, a ameaça das novas tecnologias (como a bomba atômica) e o fatalismo ideológico da Guerra Fria. 
 
Uso com frequência um termo que foi popularizado por Stableford em sua obra Scientific Romance in Britain, 1890–1950 (1985). O “romance científico” é uma espécie de contrapartida européia à “ficção científica” que os norte-americanos popularizaram através de revistas como Amazing Stories, Astounding Science Fiction e outras.  




A diferença que Stableford estabelece é que antes do século 20, antes de surgirem os pulp magazines da década de 1920, havia na Europa uma tradição de romance científicos, na qual as revistas norte-americanas claramente se inspiraram, do ponto de vista temático, mesmo que não do ponto de vista estilístico. 
 
Quando Hugo Gernsback criou a revista Amazing Stories em 1926, ele colocou na capa três nomes essenciais, como inspiradores do nosso gênero que ele na época batizou inicialmente de “scientifiction”: o francês Jules Verne (com Off on a Comet), o inglês H. G. Wells (com “The New Accelerator”) e o norte-americano Edgar Allan Poe (“The Facts in the Case of Mr. Valdemar”). 
 
Ao mesmo tempo, a Inglaterra desenvolvia sua própria “narrativa científico-fantástica”, não sob a forma de revistas populares (inicialmente), mas através de romances escritos por autores que não se limitavam a esse gênero de narrativa: H. G. Wells, Edgar Rice Burroughs, Conan Doyle, William Hope Hodgson, M. P. Shiel e outros.
 
O gênero teve uma breve ascensão na virada do século 19 para o 20, uma queda durante e após a I Guerra Mundial, e depois outra breve ascensão no entre-guerras. 



Diz Stableford, em Science Fiction and Science Fact – An Encyclopedia (no verbete “Scientific Romance”, trad. BT):
 
O Romance Científico teve um lento retorno nos anos 1920, mas com aparições apenas ocasionais nas revistas populares, e concentrando-se nos livros. Um revigoramento de sua popularidade após 1930 tem relação direta com a agitação política da Europa, que tornava provável uma nova guerra. O tom dos romances científicos entre 1919 e 1939 ia de um alarmismo estridente até um pessimismo amargo. Os novos autores que deram prosseguimento à tradição wellsiana entre as duas guerras, além de [Neil] Bell e Fowler Wright, incluíam Olaf Stapledon, John Gloag, J. Leslie Mitchell, Katharine Burdekin (que também usava o pseudônimo de Murray Constantine), Muriel Jaeger, C. S. Lewis e Gerald Heard, embora a obra isolada de maior sucesso desse período seja o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley. 
 
Acho importante lembrar sempre esta tradição européia, porque aqui no Brasil vejo algumas pessoas dizerem que “a ficção científica foi inventada nos EUA em 1926”, o que é mais ou menos como dizer que os Beatles inventaram o rock-and-roll. 
 
Tudo que faz sucesso tem mais História por trás. 



Essas correntes literárias, como as correntes marítimas, tendem a convergir e se misturar lá na frente, mas a primeira metade do século 20 teve essas duas tradições com contornos bem marcados, o “scientific romance” na Europa e a “science fiction” dos EUA. Diz Stableford:
 
A diferença mais visível entre as duas, enquanto foram tradições separadas, era a total ausência, no Romance Científico, do mito da “Era Espacial”. Embora esses romances descrevessem expedições ao espaço, eles nunca retrataram tais expedições como o início de uma inexorável expansão colonial. (..) O Romance Científico era também visivelmente mais sombrio do que a FC, em virtude das profundas cicatrizes deixadas na Grã-Bretanha pela Primeira Guerra Mundial. (...) O Império Britânico estava em declínio terminal ao longo de toda a história do Romance Científico, e para os seus praticantes o futuro surgia como um encolhimento e não uma expansão de horizontes, e como um tempo de difícil sobrevivência, em vez de um triunfante progresso. 
 
O viés britânico do livro de BS sobre o “romance científico” foi mais uma questão de foco do que de xenofobia. O interesse pelo fantástico europeu-em-geral sempre esteve presente na sua obra, e produziu outra atividade em que ele praticamente não teve rival na Inglaterra, o da redescoberta e tradução (para o inglês) de obras de FC e do fantástico escritas em francês. 

 
O verbete pessoal dele na Wikipedia lista mais de 500 obras que ele traduziu, muitas delas de escritores pouco conhecidos até mesmo na França, embora na lista apareçam nomes como Rémy de Gourmont, Paul Féval, Camille Flammarion, Villiers de l’Isle Adam, Maurice Renard, J.-H. Rosny Ainé, Richard Bessière, Ponson du Terrail, Albert Robida e muitos outros.
 
Mergulhando nesse gigantesco filão do fantástico continental (como os ingleses gostam de dizer), ele editou também um sem-número de antologias, entre elas The Dedalus Book of Decadence (Moral Ruins) (1990), The Second Dedalus Book of Decadence (The Black Feast) (1992), The Dedalus Book of Femmes Fatales (1992), Tales of the Wandering Jew (1991) etc. 



Stableford foi editor assistente em The Science Fiction Encyxlopedia, que eu considero o trabalho mais confiável no gênero. Depois de duas edições em livro, a enciclopédia hoje está online, e o verbete sobre BS faz um bom resumo sobre sua obra colossal.
 
SF-Encyclopedia:
https://sf-encyclopedia.com/entry/stableford_brian_m
 
Não me lembro de ter lido nenhum romance dele, mas li uma boa quantidade de contos, todos excelentes. Stableford tinha estudos aprofundados em Biologia, e durante muitos anos ele cultivou uma linha de histórias de especulações biológicas, envolvendo mutações, simbioses, engenharia genética e outros processos de transformação, e de criação de tipos de vida inesperados. Um conto dele cujo título sempre me divertiu é “The Growth of the House of Usher” (“O crescimento da Casa de Usher”, em Interzone, # 24, Summer 1988), uma reversão da história de Edgar Allan Poe. 
 
Um autor contemporâneo que explora bem esta linha é Jeff Vandermeer, principalmente com sua trilogia “Comando Sul” (Aniquilação, Autoridade e Aceitação, e mais um quarto volume a sair este ano).