(ilustração: Jacek Yerka)
Quem tem poucos leitores sabe dar valor a cada um deles.
É uma coisa típica de começo da carreira literária. Você entra numa festa, ou
num restaurante, vê um casal almoçando e pensa: “Ah, lá está aquele casal que
leu meu livro!”.
Ou a velhíssima brincadeira que todo escritor já fez. O
leitor se aproxima, cordial: “Olhe, eu comprei o seu livro...” E o autor:
“Arrá!... Foi você, então!”
Um Karl Ove Knausgaard ou uma Elena Ferrante, que são
lidos por milhões, poderiam esnobar essas pequenas alegrias. Quem tem poucos
leitores, porém, acaba vendo cada um deles de maneira personalizada.
Um leitor é tão precioso como um eleitor. Se alguém chega
a ter milhões é também porque soube, quando tinha apenas algumas dezenas, dar a
eles um momento de atenção para um autógrafo, uma troca de idéias, uma foto, um
cumprimento, um sorriso, um reconhecimento... Nada deixa um leitor mais
exultante do que encontrar no aeroporto com seu ídolo, cumprimentá-lo
discretamente, e ouvi-lo retribuir: “Ah, você é o Braulio. Como anda a
Paraíba?”. Ser reconhecido não tem preço.
Tem uma história ótima de Vinicius de Moraes, quando ele
soube que Pablo Neruda, nos idos dos anos 1950, estava de visita ao Rio de
Janeiro, sendo recebido pelos literatos locais. Quando Vinicius soube, saiu
esbaforido ao calçadão da praia, e não demorou a localizar o grupo de
escritores que se aproximava, com Neruda ao centro. Quando o chileno o avistou
de longe, abriu os braços e exclamou: “Vinicius de Moraes!...” Vinicius foi na direção dele e disse: “Eu ia
beijar suas mãos, mas como você me reconheceu eu vou beijar é seus
pés!...” E assim o fez.
Leitor de verdade é isso, e feliz do autor que sabe
cultivá-los.
Político não é muito diferente, e grande parte do sucesso
de algumas velhas raposas que tomam conta do Galinheiro Brasil se deve a sua
memória fotográfica, capaz de produzir afagos desse tipo em milhões de egos
que, com a auto estima em alta, viram infatigáveis cabos eleitorais do figurão
que se lembrou deles.
Um autor pode, deve recusar um leitor? Eu acho que não.
Quem começa a fazer um certo sucesso de vendas assume às vezes posições meio
provocativas. “Se é para me fazer esse tipo de crítica, prefiro que não leiam
meus livros,” diz o best-seller no talk-show. “Só quero ser lido por quem é
capaz de me entender,” diz o vanguardista na mesa-redonda para dez gatos
pingados. “Não escrevo para a elite!”, brada o contestador em tempo integral.
Tudo muito compreensível, mas não resulta em nada. Quanto
mais desautorizados pelo autor, mais esses leitores o lerão, até mesmo para
provocá-lo à revelia.
Já vi autores ironizarem o que chamam de “leitor
coluna-social”, o que desdenha o livro mas quer o autógrafo do famoso. Vai
cheio de pompa ao lançamento, produz uma cena de ruidosa afabilidade, faz-se
fotografar, dita a dedicatória e sai para o próximo compromisso, levando
embaixo do braço o livro que não lerá.
Tem o leitor pentelho, aquele que lê em busca de defeitos
para esfregar na cara do autor. Não deve ser confundido com o leitor cuidadoso,
que frui o livro, mas observa um errinho aqui ou ali, e sem muito alarde diz ao
autor: “Olha, vi uma coisa na página tal que me pareceu errada.” O leitor
pentelho é capaz de escrever um livro só para alardear aos quatro ventos que Fulano
de Tal se enganou, que cometeu erros de continuidade, que pôs uma data
impossível...
Devemos recusá-lo por isso? Nunca. Se os erros que
descobre são erros, de fato, ele acaba prestando um serviço ao autor – caso o
autor não seja também um Poço de Ego que não admite restrições ao que escreve.
Nem todo advogado-do-diabo tem a delicadeza do leitor remoto de Eça de Queiroz
que, após ler A Relíquia, escreveu ao mestre no mais respeitoso tom,
para avisá-lo de que ele se referira à lua como “o alfanje que decepou a cabeça
de Yokanaan”, num capítulo, e logo adiante, ao narrar a noite seguinte, a
descrevia como lua cheia.