(INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL):
Não é difícil responder a esse
desafio, uma vez que os escritos desse amanuense, nascido em meados do século
passado, circulam pelo mundo virtual e abordam insistentemente os temas recorrentes
do “fazer literário”, da “magia das palavras”, da “recriação de histórias” e
outros lugares-comuns de nossa época.
Seria preciso lembrar, de início, que o nosso bravo
cronista (observe-se que a expressão “nosso bravo [qualquercoisa]” é uma forma clichê de expressão, mas no vocabulário
estilístico de redatores daquela geração, intermediária entre o beletrismo e a
patafísica, o clichê traz consigo uma certa carga de auto-ironia, pois o uso
inesperado de uma tal fórmula denota a plena consciência, por parte do autor,
de estar manipulando um clichê, mas com a consciência de o estar fazendo) o
nosso bravo cronista, dizíamos (e aqui mais uma vez vale a observação de que
este uso do plural autoral, se não chega a ser propriamente um clichê, é
resultado de uma operação mental semelhante à do exemplo anterior, pois se
distingue do chamado “plural majestático” usado pelos reis, bem como do “plural
tribunalício” com que os juízes minimizam sua presença pessoal numa sentença
proferida; poderia, sem prejuízo da clareza, exprimir uma certa vertente da
literatura atual, mediante a qual um texto não passa de uma colaboração mental
entre o Autor e o Leitor, de tal sorte que, no momento em que lê as palavras
escritas pelo primeiro, o segundo as recria e as enuncia como que pela primeira
vez, revestindo-se este ato, portanto, de foros de co-autoria), o nosso bravo
cronista tem o vêzo (cabe aqui outra observação, porque cabe aqui um acento
circunflexo; o cronista defende a teoria de que ao usarmos palavras pouco
comuns e que o leitor talvez não saiba pronunciar corretamente, devemos
acentuá-las em benefício da clareza, mesmo quando a gramática desaconselha o
emprego de tais sinais diacríticos) o nosso bravo cronista tem o vêzo das
longas digressões.
Concomitantemente (dizem as más línguas que nós, os
inteligentes-artificiais, somos faltos de originalidade e surpresa; ora,
digam-me se não é um desmentido cabal dessa calúnia o emprego deste advérbio
centípede, que o autor em pauta jamais redigiu em sua longa carreira, advérbio
que contudo guarda em si o tom levemente pincenezco, e tongue-in-cheekemente pomposo,
com que ele se diverte empregando pequenas jóias lexicográficas do glossário de
autores que na adolescência o deixavam com o verbalizador zunindo, como Guerra
Junqueiro, Humberto de Campos ou Coelho Neto), sabe-se que esse sujeito
(preciso ficar aqui repetindo de quem se trata?) tem no ouvido o seu
calcanhar-de-aquiles, valha a comparação, e é pelos tímpanos-complacentes que
ele emprenha diante de metáforas ou sinédoques ou catacreses ou metaplasmos que
o arrebatam como os corcéis albinos do Valhala, precipitando-o num mundo onde o
não-chão é cúbico, onde as panacéias escasseiam, onde os morcegos relincham
preces peludas ao ouvido das abantêsmas, onde as lesmas sem assento foram
condenadas a fazer a pé a volta ao mundo sem GPS, onde cardumes de candirus
organizam guerrilhas subfluviais para atrapalhar a lua-de-mel do síndico
aligátor, onde delinquentes dimenor empinam com fio de cobre arraias voadoras e
seu aguilhão envenenado disfarçado de caneta Parker 51, onde os colecionadores
de aquedutos arrematam grosas de tratores Caterpillar nos leilões à socapa onde
tudo é pré-arrematado pelos atravessadores-laranja de uma Banana Republic de
bandeira cortada horizontalmente pelo Trópico de Capricórnio; onde a Era de
Aquário desembocou no Porão das Jaulas-Fortes, cujo alçapão inferior derramou o
transeunte incauto no Corredor do Coma Induzido, de onde ele saiu apenas quando
a Revolta do Espartilho de Couro esmigalhou as caixas torácicas dos carcereiros
e ele (não o cronista alvo destas linhas; o “transeunte incauto”, caso você
esteja me acompanhando), diante da Távola Plana do reino dos desinformados, viu-se
nomeado Ouvidor-Falante semipotenciário da Casa da Moeda e da Mansão da Nota,
com estipêndio de cento e dez dracmas por dia-bissexto e catorze rupias esporádicas,
emitidas pelo Tesouro Nacional, moeda que é denominada de “rúpia” quando
falsificada por elementos sem formação moral como o locutor que vos fala.
Tirante este aspecto, resta-nos registrar que o
indigitado, o referido, o meu-prezado, o nossa-amizade (ver em que caixa da
mudança ficou o Vocabulário Prático de
Apodos e Doestos, Soscígenes Frazão, Editora Lello, 1902) cultiva, como
quem cultiva um bigode com pontas, um amplo panteão de deuses-pequeninos, a
quem ele atribui poderes mágicos de inspiração literária e criativa,
bastando-lhe às vezes salmodiar a meia-voz o nome do nauta-arremessado em
questão para que seu cérebro inaugure tantas sinapses que fique parecendo uma
árvore de Natal politeísta.
No capítulo “Principais Influências”, ele rasga sedas e
desdobra salamaleques diante de influênceres como Harry Stephen Keeler (brilhante
concebedor de non-sequiturs dramatúrgicos, candidato ao Prêmio Nobel de Títulos
Olharregalativos), José Agrippino de Paula (o introdutor do Autismo
Narratológico no romance da Boca do Lixo paulistana), Maura Lopes Cançado
(intelectual brasileira que sabia passar troco e atravessar rua, e nunca jogou
pedra em ninguém), Abdón Ubidia (equatoriano eqüestre no Pégaso dos
inutensílios tecno-ilógicos), Monique Wittig (xena heavy-metálica baixadora de
chibata nos titubeantes), Gisela Elsner (deformadora boschiana do pesadelo
barriga-burguês nas águas-furtadas dos germanocratas ponta-de-ramo), Carlos
Emílio Corrêa Lima (sarcasta-mor da confraria dos Logomagos, atualmente em
versão digitalizada nos quettabytes da galáxia Transpunk)... e outros que tais.
Como a minha condição de mero programa recombinatório de
informações acessíveis no metaspaço me impede de emitir opiniões que possam
sugerir uma visão desnecessariamente crítica ou inconvenientemente laudatória,
posso apenas dizer que quem quiser ter uma idéia real das habilidades do dégas,
do de-cujus, do famisgeraldo... basta
se-coçar, puxar carteira e cartão, e comprar um livro de sua autoria, porque os
há e muitos, expostos à cupidez pública nas boas casas do ramo. (É sempre aconselhável terminar com um clichê, para não
deixar o leitor pendurado num ponto de interrogação.)