O São João nordestino é cheio de tradições que nós
conhecemos “desde a mais tenra infância” e nos acostumamos a considerar nossas,
tipicamente nossas, afetivamente nossas.
O que esquecemos às vezes é que essas tradições, por mais
que deixem uma marca na nossa memória afetiva (na minha deixaram muitas, e profundas)
não são pessoais, são coletivas. E vêm de longe.
Por exemplo: a tradição das “moças casadoiras”, na
véspera do São João, antes de irem dormir, deixar uma mesa posta para uma
pessoa, na sala de jantar, com a casa fechada e as luzes apagadas. As moças
ficam à espreita (alguém imagina que elas estão dormindo, por acaso?) porque
reza a lenda que o “fantasma” do futuro noivo virá aparecer, atraído pela ceia.
Outro exemplo: segurar nas mãos uma bacia cheia dágua,
junto à fogueira, para tentar ver o próprio reflexo à luz do fogo. Reza a lenda
que se a pessoa conseguir se enxergar direito, estará viva no próximo São João.
Se não, não.
Sempre racionalizei esta última superstição desse modo:
se a pessoa está com saúde e mantém a
bacia firme, ela se vê refletida. Já uma pessoa que balança a bacia o tempo
todo (prejudicando o reflexo) é porque está enfraquecida e pode morrer. (Uma
racionalização meio tênue, mas, enfim...)
A música junina guarda essas tradições.
Como em “Advinhação” (sic), de Aldemar Paiva, gravada por
Marinês:
Botei a mesa com tanta alegria,
dormi pensando e meu amor não veio...
Não veio, não veio...
E tristeza se meteu no meio...
Não quero mais saber de adivinhação,
não posso mais sofrer nem esperar em vão;
desculpe São João mais resolvi
pedir a Santo Antonio um pistolão.
(Aqui, com Marinês:
Ou no clássico eterno “Brincadeira na fogueira”, de
Antonio Barros e Cecéu:
Tem tanta fogueira, tem tanto balão...
Tem tanta brincadeira, todo mundo no terreiro
faz adivinhação.
Meu São João eu não, meu São João eu não
eu não tenho alegria...
Só porque não vem, só porque não vem
quem tanto eu queria...
Danei a faca no tronco da bananeira
não gostei da brincadeira
Santo Antonio me enganou...
Saí correndo, lá pra beira da fogueira
ver meu rosto na bacia
a água se derramou!
(Aqui, com o Trio Nordestino:
São tradições nossas? Sem dúvida. Mas são nossas
inclusive num sentido mais amplo, um sentido que nos aproxima de culturas e
épocas muito diferentes. São de todos. Nossa festa junina assimilou rituais
antigos que em princípio nada têm a ver com ela.
Na minha antologia Detetives
do Sobrenatural (Casa da Palavra, 2014) incluí o conto de Manly Wade
Wellman “A Ceia Silenciosa” (“Dumb Supper”, 1954). É uma aventura do seu “detetive
do sobrenatural”, John the Balladeer: um cantador repentista que trazendo às
costas seu violão com cordas de prata anda pelas estradas dos Montes Apalaches,
defrontando-se com mistérios do outro mundo.
Wellman (1903-1986) era profundo conhecedor do folclore e
da cultura popular dos EUA, e utilizava esse material em seus livros.
No conto, John the Balladeer se perde na floresta à
noite, durante uma tempestade, e acaba chegando a uma casa misteriosa onde
encontra uma mulher jovem, que está com uma mesa posta para uma pessoa. John
acabou de ouvir, na vendinha do vilarejo, uma história sobre um crime
acontecido ali, anos atrás. E a mulher lhe pede que empunhe o violão e cante,
para chamar alguém.
Mas eu não conseguia parar de olhar para o modo como ela tinha arrumado
aquela ceia silenciosa. Sabendo que ninguém fazia mais aquele tipo de coisa, e
tendo ouvido falar nela naquela mesma noite, eu estava maravilhado em
encontrá-la. Minha mente ficou repassando o que tantos professores diziam sobre
esses costumes, que eram coisas provenientes da Velha Europa, em que ceias
silenciosas eram preparadas no início dos tempos. (p. 146)
O “noivo” acaba aparecendo; há um desfecho terrível em
que o crime antigo acaba se esclarecendo, mas para mim o grande detalhe do
conto é a tradição de preparar a ceia para atrair o “fantasma”.
Virando a página:
Somerset Maugham (1874-1965) é para mim um dos grandes
contadores de histórias da língua inglesa. Seu conto “Honolulu” (1921) se passa
no Havaí, onde o narrador conhece um jovem capitão de navio e sua bela
namorada.
O capitão conta que tempos atrás o imediato do navio se
apaixonou pela namorada dele (que viajava a bordo), e botou-lhe um feitiço no
qual ele, sendo ocidental, se recusava a crer. A namorada (que era havaiana,
como o imediato) insistia com ele: enquanto o imediato estivesse vivo, o
feitiço estaria funcionando – e ele acabaria morrendo.
A moça então explica ao capitão que se o sujeito
... fosse persuadido a olhar dentro de uma cabaça, cheia de água a
ponto de produzir um reflexo, e esse reflexo fosse destruído ao se agitar a
água, ele morreria, como se tivesse sido atingido por um raio; porque aquele
reflexo é a sua alma.
Assim é feito, o imediato morre, e o capitão escapa.
Nem vou entrar aqui no gigantesco capítulo antropológico
do uso da imagem como equivalente da alma ou da vida: a imagem no espelho, a
imagem na fotografia, a imagem num pequeno boneco.
Volto ao ponto anterior: essas tradições são nossas
porque são de todos. De todos os lugares e de todas as épocas. Antropólogos não
têm feito outra coisa, de James Frazer a Lévi-Strauss, senão traçar esses mapas
comparativos de imagens recorrentes. Tão recorrentes que fizeram C. G. Jung
propor a teoria de um “inconsciente coletivo” que alimentaria todas as culturas
humanas, como um profundo lençol freático de coisas que nos emocionam antes que
sejamos capazes de explicá-las.