Fazer uma música é um dos prazeres mais simples e
artesanais que nos restam, num século em que tudo tem que ser, a) monumental,
b) lucrativo, ou c) legitimador de alguma tecnologia recém-posta à venda.
Há quem diga que literatura é a mais barata das artes,
uma “arte a custo zero”, porque pode-se escrever um livro inteiro usando apenas
papel e lápis. Pois olhe, música você pode fazer de mãos nos bolsos, e
assobiando pra não esquecer a melodia. Eu já compus assim.
Quantos bilhões de melodias já terão sido inventadas,
decoradas e repetidas, nestes últimos milênios de História? Perderam-se? Foram esquecidas? Que importa? Também se perderam ou foram
esquecidas as pessoas que as criaram, e mesmo assim não acho que a maioria
delas creia que viveu em vão.
Tenho para música aquilo que a gente chama de “ouvido
duro”: dificuldade para lembrar uma melodia, para distinguir duas notas ou dois
acordes muito parecidos, para perceber que uma corda de violão está
semitonando. Talvez por isso mesmo, cada lararaiá que inventei me parece um
triunfo pessoal sobre mim mesmo, digno de comemoração.
Uma vez, na casa de alguém, eu estava conversando com um
músico de orquestra sinfônica, um cara da minha idade, mas com uma carreira
profissional que já vinha desde a infância.
– Acho incrível a pessoa que compõe – disse ele. – Tocar,
como eu toco, é fácil. Mas compor! Nunca
consegui compor uma música.
– Mas é muito fácil – disse eu, com a auto-confiança dos
primitivos. Peguei um violão que estava por perto, arpejei meu ré-maior básico
e comecei a solar. – Tiruliruliro... tralá-laiá... Pronto, está aqui uma
melodia. Compus agora.
Ele recuou horrorizado, como se eu tivesse lhe exibido
uma ratazana sanguinolenta.
– Mas compor não é isso! – exclamou. – Não é apenas
enfileirar notas. É algo muito mais complexo.
Ele tinha razão. Ele é um músico erudito. Eu sou um
músico popular. Eu posso compor assobiando, em pé no ônibus. Eu posso me dar o
luxo do lugar-comum, do formatinho banal, da melodia naïve. O luxo da repetição, como o pintor de paisagens da Praça
General Osório. Ele, não. Para ele, vale sem dúvida a máxima de Thomas Mann
quanto à literatura: “Escritor profissional é aquele para quem o ato de
escrever é mais difícil do que para as outras pessoas”.
Minha primeira música gravada foi “Caldeirão dos Mitos”,
que Elba Ramalho incluiu em seu segundo álbum, Capim do Vale (1980). Quando o disco saiu, eu tocava a faixa cinquenta
vezes por dia, para me assegurar de que ela não tinha ido embora. Era bom
demais para ser verdade.
Uma noite, nessa época, estava bebendo com amigos num bar
de João Pessoa, e a algumas mesas de distância um grupo de jovens alegres, de
violão em punho, cantava músicas variadas. De repente, começaram a cantar o
“Caldeirão”: “Tãrãrã-tãrãrã... Eu vi o
céu à meia noite, se avermelhando num clarão...”
Comoção geral na minha mesa; eu fiquei sem fala. Os amigos
me disseram: “Vai lá!... Vai na mesa deles, fala que a música é tua!” Eu, sabiamente, não fui. Ir para quê? Para
amarrar a importância da música à presença do autor? De jeito nenhum. Música
gravada é passarinho fora da gaiola. “Sabiá lá na gaiola fez um buraquinho... voou,
voou, voou, voou...”
Alguns anos atrás, eu estava na FLIP, em Paraty. Tinha
acabado de anoitecer e eu vinha testando meus tornozelos por cima das pedras
traiçoeiras daquele calçamento. Numa esquina, encontrei um ou dois amigos
fazendo parte de um grupo maior. Parei, trocamos abraços, cumprimentos,
apresentações rápidas, dez minutos de papo, e o grupo se desfez.
Saíram todos e ficamos eu e um senhor, idoso, negro, bem
vestido.
– O senhor é nordestino – constatou ele, com simpatia.
– Sou mesmo – disse eu. Estendi a mão e me apresentei: –
Braulio Tavares, da Paraíba.
– Prazer – disse ele. – Sou Edeor de Paula. Fiz um samba
em homenagem ao seu Nordeste.
Eu não reconheci o nome, como não reconhecera o rosto.
– Que ótimo. Como é o samba?
Ele pigarreou e puxou:
– Marcado pela
própria Natureza...
E eu já emendei em uníssono, no tom dele, com o verso
seguinte:
-- O Nordeste do
meu Brasil... Oh, solitário sertão, de sofrimento e solidão...
(Edeor de Paula)
E ali, naquela encruzilhada de um começo de noite
paratiense, cantamos todo o samba “Os Sertões”, que desde 1976, quando foi
lançado pela escola Em Cima da Hora, eu me acostumara a cantar em Campina
Grande, na nossa batucada de fins de semana, a “Batucada de Lanka”. Cantando
junto com o autor, eu me lembrei de Lanka, de Lucy, de Chiquinho, de Marquinho,
dos batuqueiros que já se foram e que dariam altas gargalhadas se me vissem
ali, quarenta anos depois, tirando a maior onda e cantando o samba junto com o
autor do samba.
Seu Edeor se comoveu, certamente; nos despedimos com um
abraço amistoso, e ele deve ter experimentado pela milésima vez o raro prazer
de ser conhecido por uma música que criou.
Não existe fórmula nem receita para fazer música. Ela pode
ser criada na calada da noite por uma pessoa sozinha, e pode surgir numa
ruidosa mesa de bar, rabiscada às pressas em guardanapos, com palpites e
pitacos até do garçom. O que importa é que depois de criada a música cria seu primeiro
círculo de ressonância, entre os que cantam, os que escutam, os que decoram, os
que repetem...
A música é gravada e ai vira tudo outro patamar. A gente
ouve a música no rádio do táxi, no corredor do shopping, no palquinho de um
forró, no alto-falante da rodoviária, na sala de espera do dentista... É um
passarinho que voa para onde quer, sem pedir outra coisa senão o alpiste de
três minutos de atenção. O cara que compôs a música também escuta, mas dá menos
atenção à música do que aos rostos e aos olhos de quem está ouvindo. Não basta
a música tocar no rádio: ela tem que tocar as pessoas.
Dizem que Oscarito, no auge das chanchadas que estrelava
com Grande Otelo na Atlântida, costumava botar algum disfarce de óculos e chapéu
e assistir ao filme nas sessões da tarde na Cinelândia. Entrava, sentava num
cantinho... e não olhava para a tela. Olhava para a platéia. Queria ver se a
piada funcionava, se o timing de uma
cena tinha ficado correto... É nisso que a gente pensa: no que o público está
pensando.
O que bate com um preceito sábio de Bertolt Brecht,
quando explicava a diferença entre o teatro tradicional e o seu teatro épico:
no teatro tradicional, a platéia observa o palco; no teatro épico, o palco
observa a platéia.
Por isso quando a gente encontra um desconhecido numa
esquina e ele, sem saber sequer o nosso nome, é capaz de lembrar e cantar uma
música que a gente fez, então nesse momento o circuito se fecha. A energia
flui. A gente fica sabendo (mais uma vez) que aquela noite em claro não foi em vão.