domingo, 2 de novembro de 2008

0630) A maldição da Internet (26.3.2005)


(cartum de Jules Feiffer)

A Internet enterrou minha carreira literária. Meu último livro de contos saiu em 1996, o mesmo ano em que me conectei pela primeira vez à Grande Rede. Isto significa que há quase uma década dedico minhas noites e madrugadas a ficar lendo de graça as obras alheias, em vez de escrever minhas próprias obras e ganhar dinheiro. Estou arrependido? Nem um pouco.

Não me arrependo porque qualquer sujeito de bom senso sabe que é possível dividir de forma equânime suas oito horas regulamentares de trabalho: quatro horas surfando no ciberespaço, quatro horas martelando no teclado para inventar a história de um sujeito que surfa no ciberespaço. Uma coisa não tem necessariamente que atrapalhar a outra.

Alguém há de lembrar que ultimamente tenho publicado muitos livros. Concordo, mas não são obras de literatura, obras que exijam audácia criativa e fôlego executante. São livros de ensaios, de poemas, de estudos cinematográficos, artigos de jornal... besteiras que eu faço com um pé nas costas, ouvindo rock e tomando café. Acreditem, escrever esta coluna todos os dias não me exige o mínimo esforço mental. Já está tudo pronto, é só tocar a ponta dos dedos no teclado e o restante simplesmente acontece.

Literatura é diferente. Escrever um romance é fogo. Já tentei escrever uns dez, escrevi dois, publiquei um. Comparo a escritura de um romance à composição de uma sinfonia, em que o sujeito tem que pensar uma obra inteira com umas duas horas de duração, e depois escrever o que 50 instrumentos diferentes estarão fazendo ao longo dessas duas horas. A gente tem que ficar dando polimento em detalhes mínimos, que provavelmente passarão despercebidos, mas que se não estiverem certos não nos deixarão dormir em paz; e ao mesmo tempo tem que ter sempre em mente o “desenho geral” da coisa. É como projetar por inteiro um prédio de vinte andares e ficar horas escolhendo um modelo de maçaneta para o armário do banheiro.

Escrever um livro tendo a Internet ao alcance de um clique? Impossível. Me lembra esses caras muito compenetrados que vão para a praia de Ipanema e ficam tentando ler a página de investimentos financeiros no meio daquele mar de bundas. Precisa muita força de vontade, muito sacerdócio para não se deixar cair em tentação. Meu deslize preferido é o seguinte. Eu penso: “Vou escrever um romance ambientado na época de Lampião. Será a história de dois irmãos, um que virou cangaceiro, outro que se alistou na volante. Em vez de levar os dois a um confronto final, que seria o lugar-comum mais óbvio, vou fazer com que os dois fiquem passando informações um para o outro, sobre os respectivos grupos, de tal modo que eles dão um jeito de nunca se enfrentarem”. Aí abro o Google e começo a fazer pesquisa: “almocreves”, “Raso da Catarina”, “armas de fogo da década de 1930”, “volantes”... Minha cultura geral vai às alturas, mas romance que é bom, babau Tia Chica.

0629) Michael Fox de olho no futuro (25.3.2005)



Vi uma entrevista do simpático Michael J. Fox no programa de David Letterman. Todo mundo conhece Fox pela trilogia De volta para o futuro. Ele agora está metido numa história de ficção científica verdadeira. Doente há 14 anos com o Mal de Parkinson, está servindo de garoto-propaganda para as instituições e os grupos de pesquisa que trabalham para encontrar uma cura para esta doença. Aparentemente, está resistindo bem. O Mal de Parkinson deixa o sujeito com tremores incontroláveis pelo corpo, e Fox por enquanto dá apenas a impressão de estar um pouco nervoso. Mas o mal é progressivo, e sem retorno.

O retorno pode vir através de pesquisas de laboratório, que possam curar a doença ou pelo menos retardar seu avanço. Aqui entramos noutro tema atual, que é a liberação jurídica para as pesquisas com células-tronco. E não há como não lembrar de outro ator de Hollywood, o super-homem Christopher Reeve, que caiu de um cavalo, partiu a espinha e ficou tetraplégico. Reeve passou seus anos de vida restante (morreu ano passado) fazendo campanha em favor das pesquisas de célula-tronco. E não foram poucos os jornalistas como eu, que têm a obrigação de pegar um mote antes que caia no chão, que escreveram colunas inteiras sobre a ironia daquele situação: o sujeito que interpretou Superman, o homem mais forte do mundo, o homem de aço, o homem que voa... imobilizado numa cadeira de rodas.

Agora a situação se repete meio diluidamente com Michael J. Fox, o rapaz que pegou a máquina-do-tempo, voltou ao passado, paquerou com a própria mãe, inventou o rock, depois voltou ao tempo do faroeste, foi ao futuro... Enfim: permitam-me a liberdade literária de dizer que se existe hoje em dia um sujeito consciente do quanto o Tempo se ramifica em direções opostas a cada decisão que tomamos, esse cara é MJF. E ele está literalmente correndo contra o Tempo, porque Parkinson é uma dessas doenças degenerativas do tipo “devagar e sempre”. Ele recebeu o diagnóstico em 1991, e hoje, perto de fazer 44 anos, continua indo à luta. “É possível descobrir uma cura por volta de 2010”, diz ele, otimista e inquieto.

Quem quiser saber mais pode ir ao saite: http://www.michaeljfox.org/. Há cerca de um milhão de pessoas nos EUA com o Mal de Parkinson, para não falar em outras doenças neurológicas como Alzheimer (que matou Ronald Reagan) ou o Mal de Huntington (que matou Woody Guthrie). É uma pesquisa delicada, porque mexe com o cérebro e o sistema nervoso central, mas é o tipo da coisa em que americano gosta de investir, porque no dia em que descobrirem um remédio o dono dele vai encher o bolso de grana.

É animador saber que a Fundação Michael J. Fox conseguiu, desde o ano 2000, mais de 50 milhões de dólares em doações para pesquisa e desenvolvimento de remédios. Confesso, por outro lado, que é meio desanimador saber que os EUA gastam 4 bilhões de dólares por mês com a Guerra do Iraque.

0628) Eu vou estar enviando (24.3.2005)



É a mais recente praga que se alastra pela língua portuguesa do Brasil, e seu principal grupo de risco são os executivos empresariais e suas secretárias. “Pois não, senhor... Eu vou estar enviando o seu contrato amanhã cedo...” Esta construção tão desajeitada é uma tradução aproximada do inglês “I shall (ou “I will”) be sending you the contract tomorrow morning...” Se você quiser que a língua inglesa desmorone como as Muralhas de Jericó é só retirar-lhe os verbos auxiliares (e os pronomes também, aliás), e ninguém conjuga mais nada. Português não é assim. Se você disser: “Enviarei seu contrato amanhã cedo”, todo mundo entende. Mas não, o pessoal acha que é um defeito usar uma palavra só quando podem-se amontoar três ou quatro, e em razão disto eles vão estar amontoando esses monstrengos até o dia do Juízo Final.

O linguajar “burocratês” tem uma longa folha-corrida de delitos cometidos contra a beleza, a funcionalidade ou a simplicidade do idioma; às vezes, contra os três numa tacada só. A razão principal disto é a tentativa de parecer chique. Se vocês prestarem atenção, verão que no linguajar dos escritórios existe uma separação tipo “casa grande & senzala” entre verbos sinônimos; sempre existe um verbo “chique” para substituir um sinônimo “vulgar”. Por exemplo: em burocratês as pessoas não esperam: elas aguardam. Ninguém manda uma carta: envia, ou remete. Na burocracia, ninguém pede: solicita. Em caso de dúvida, não se deve perguntar, e sim indagar. Os chefes não mandam: eles determinam. E assim por diante.

Faço esta crítica porque acho que a razão dela está muito próxima à de uma outra batalha que se trava por aí: a do uso indiscriminado de aportuguesamentos de palavras em inglês. Eu não tenho preconceitos nacionalistas, como aliás deve ser óbvio para quem lê esta coluna. Acho normal dizer saite, draive, acessar, deletar, deu um bug. Ainda não acertei a dizer mause em vez de “mouse” mas um dia eu chego lá. Qual é o problema, então? O problema é que estes termos não foram criados por submissão colonizada à língua do imperialismo, mas por simplicidade, atalho, encurtamento de caminhos para a expressão. Não é o caso das expressões no parágrafo acima, em cujo uso eu detecto uma angústia freudiana de parecer chique, de se distanciar da classe social imediatamente abaixo.

O problema não é aportuguesar palavras em inglês, é escrever em português como se fosse um inglês mal traduzido. Sou um leitor de histórias em quadrinhos, mas a qualidade da tradução dos álbuns é constrangedora. Prefiro pagar o triplo e ler no original, porque pelo menos vou ter uma idéia do que os personagens estão dizendo. Quando deformamos, diluímos e sub-aproveitamos o português, aí sim, estamos abrindo caminho para que outras línguas o suplantem, porque tudo que dizemos nessas outras línguas parece fazer sentido, e a nossa própria língua parecerá sempre uma tradução mal-feita.

0627) O recado na pedra (23.3.2005)



Minha mãe contava uma história que não sei se ouviu contar, ou se sucedeu com alguém conhecido, no seu tempo de infância. Numa localidade qualquer havia uma pedra grande e pesada, à beira de um caminho, com uma inscrição já meio apagada, que, soletrada com paciência, dizia: “Aquele que me virar, grande cabedal achará”. Quando um sujeito lia aquilo, seus olhos enchiam-se de cifrões, ele botava mãos à obra, pegava um galho de aroeira para fazer alavanca, e, com algum esforço, conseguia virar a pedra. Na face de baixo podia-se ler outra inscrição: “Deus te ajude a quem me virou”. A gente se divertia muito com esta anedota, e acho que uma das primeiras idéias próprias que tive na vida foi imaginar que a peça pregada pelo humorista anônimo só seria possível se a vítima virasse a pedra de novo, deixando a primeira inscrição para cima, para pegar o próximo besta.

Isto me veio à mente agora, quando li a história da maldição de Pedra de Carlisle, uma pequena cidade inglesa. Em 2001, um artista plástico local, Gordon Young, produziu uma obra para um museu da cidade. Ele pegou uma pedra enorme, da altura de uma pessoa, pesando 7 toneladas e meia, e nela copiou um texto antigo: uma maldição proferida em 1525 pelo Arcebispo de Glasgow. (Não me perguntem a finalidade disto, é coisa de artista plástico, e pronto.) Desde sua instalação, a pedra foi violentamente combatida pelos evangélicos locais. E agora tem gente atribuindo à pedra tudo de ruim que têm sucedido a Carlisle: desemprego, surtos da doença da vaca-louca, um incêndio, inundações, e até mesmo a má campanha do time local no Campeonato Inglês.

A maldição do século 16 se voltava contra os “reivers” (forma antiga de “reavers”): assaltantes, estupradores, malfeitores em geral. Dias atrás, o Conselho Municipal se reuniu e decidiu que a pedra não seria destruída, pois não havia nenhum motivo sensato para responsabilizá-la por problemas que acontecem no país inteiro. A verdade é que inscrições em pedra têm uma credibilidade enorme, justificando aquele provérbio de que o escrito na areia passa, e o escrito na pedra fica. Dizem que o túmulo de Shakespeare, em Stratford-upon-Avon, tem escrito na lápide: “Maldito seja quem tocar nestes ossos”, e que até hoje não teve ninguém que ousasse desobedecer. Isso me faz pensar que no túmulo de Tutankamon devia haver algo parecido, só que escrito em hieróglifos egípcios. Ninguém se deu ao trabalho de traduzir, foi logo botando a porta abaixo, e eis aí a “Maldição do Faraó”.

A história da Pedra de Carlisle é curiosa: sugere que uma praga rogada contra criminosos do passado possa prejudicar, hoje, os descendentes de quem a proferiu. Se é para acreditar na eficácia dessas coisas, acho que seria mais sensato considerar a Pedra um talismã, uma proteção contra os bandidos. A reação que houve é típica de quem crê no poder do Desconhecido mas não tem capacidade de dialogar criativamente com ele.



0626) “Desventuras em Série” (22.3.2005)



Literatura infantil é uma das formas mais difíceis de literatura, pela simples razão de que é feita por adultos, e a esmagadora maioria dos adultos não tem a menor idéia de como uma criança pensa. É natural. Tornar-se adulto significa fazer em si próprio uma lavagem cerebral para eliminar da memória todo o pesadelo que é ser criança num mundo que pertence aos adultos. Me lembra aquele conto de ficção científica onde os astronautas terrestres num planeta remoto vivem cercados de criaturas monstruosas, e concluem que sua única chance de sobreviverem ali é transformando-se nelas. Toda criança inteligente experimenta um dia um calafrio de terror ao perceber que para se tornar adulta talvez tenha que se tornar uma pessoa tão hipócrita e obtusa quanto alguns dos adultos que a cercam.

Os três órfãos Baudelaire do filme Desventuras em Série entram na longa linha de heróis da literatura (e agora do cinema) infantil que podem ser descritos como As Crianças Jogadas na Jaula dos Adultos. Um incêndio destrói a mansão de seus pais e os deixa órfãos, à mercê do terrível Conde Olaf, um canastrão caricato que a partir daí fará de tudo para livrar-se das crianças e herdar sua fortuna. O Conde Olaf é interpretado por Jim Carey, careteiro como sempre, mas perfeitamente sintonizado com o tom do filme. A direção artística, fotografia e cenografia do filme são nota dez. O roteiro tenta resumir três livros numa só história, e o resultado é um tanto atropelado e descontínuo.

Ao que parece, a série completa de livros de Lemony Snicket terá 13 volumes. São divertidos, caricaturais, sombrios, melodramaticamente pessimistas. Por outro lado, qualquer leitor sabe que tudo aquilo vai acabar bem, tal como acontece nos filmes da Família Adams, nos livros ilustrados de Edward Gorey ou nas histórias de terror de Tim Burton. São produtos semelhantes para leitores/espectadores de faixas de idade um pouco diferentes. Dirigem-se àqueles garotos e garotas, um pouco sádicos mas fundamentalmente bem-humorados e otimistas, que têm uma queda pelo nosso lado monstruoso, ameaçador, gótico. Gente que adora vampiros e lobisomens, porque sabe que não existem, mas vê com repulsa os serial-killers e outros monstros demasiado reais.

Falo com conhecimento de causa, porque fui (e de certo modo ainda sou) um desses garotos, gosto de mansões empoeiradas cheias de passagens secretas e armadilhas maquiavélicas. Gosto de vilões caricaturais que se disfarçam tão bem que nenhum adulto é capaz de reconhecê-los. Lemony Snicket batiza seus órfãos de Baudelaire; o inepto tutor das crianças é Mr. Poe. Fico com a vaga esperança de que meu filho, que já está no nono livro da série, reencontrará estes sobrenomes quando crescer, sentir-se-á afeiçoado a eles, e terá neles duas portas para o mundo sombrio de verdade, para o que de fato acontece na mente de quem foi um dia uma criança obrigada a enfrentar sozinha as armadilhas do mundo e a obtusidade dos adultos.