domingo, 30 de maio de 2010

2097) A primeira revista de FC (27.11.2009)



(ilustração: Marcelo Grassmann)

Há um certo consenso, entre os historiadores de ficção científica, de que o gênero ganhou existência editorial própria a partir de 1926, com a criação da revista Amazing Stories, de Hugo Gernsback, onde o termo “science fiction” começou a ser usado. Claro que antes disso já havia uma literatura inteira: Julio Verne, H G. Wells, todo esse pessoal das “voyages extraordinaires” francesas e dos “scientific romances” britânicos. Mas os norte-americanos gostam de contar a História Universal a partir dos seus próprios feitos. (Os brasileiros, se pudessem, fariam o mesmo.) E há muito tempo que virou uma espécie de esporte acadêmico indicar revistas em outros países que, com certa flexibilidade de critérios, pudessem ser indicadas também como “a primeira revista de FC”, ou pelo menos uma precursora (a primeira revista de contos fantásticos).

A pesquisadora sueca Ahrvid Engholm trouxe agora, através da lista de mensagens Rede Global Paraliterária (RGP), um título que me parece imbatível. Trata-se de Relationes Curiosae, revista publicada em Hamburgo (Alemanha) em 1682 e traduzida para o sueco e republicada em Estocolmo no mesmo ano. A revista tinha um título alternativo em alemão, "Gröste Denckwürdigkeiten der Welt", e sua edição sueca teve 48 números, que estão arquivados na Biblioteca Nacional de Estocolmo. Diz ela: “Tenho fotocópias de alguns números escolhidos, ilustrações, capas, etc. Ao que parece, a edição alemã, editada por um tal E. W. Happel, também está preservada em bibliotecas alemãs. O Google dá várias indicações. (...) Quanto ao conteúdo da revista, ela consiste em histórias fantásticas do começo ao fim. Histórias sobre dragões, sereias, pessoas morando na Lua, carruagens que andam sozinhas, pessoas vivendo no fundo da terra, fogo que não se apaga, etc. De acordo com o estilo da época, as histórias são contadas como se fossem contos de fadas. Por exemplo: ‘Fala-se que na Inglaterra, naquela época, as pessoas ficaram espantadas com estranhas criaturas que surgiram do fundo da Terra... Os anciãos decidiram que as criaturas deviam aprendem a língua local e viver no meio deles’. Ou então: ‘Era uma vez um grupo de bravos cavaleiros que enfrentaram um dragão maligno...’”

A literatura fantástica é antiga como o mundo, está presente na literatura oral, nos mitos, lendas, fábulas. Rastreamos sua presença em publicações impressas pós-1500 porque o paradigma realista se impôs a tal ponto que o que antes era a regra tornou-se a exceção. Essas histórias recuaram para segundo plano diante do crescimento do romance burguês, factual, analítico, “realista”. A descoberta da Prof. Engholm não será necessariamente a última. Mas ela traz mais um elemento importante na história dessa literatura que tenta reproduzir a totalidade do Universo, até porque, como disse Jorge Luís Borges, “ainda não sabemos se o Universo pertence ao gênero realista ou ao gênero fantástico”.

2096) As escolhas de Sofia (26.11.2009)



Eu estava no interior do HD Universal, que é um complexo de galáxias onde está gravada a Memória do Universo. Não recordo como fui transferido para lá; mas, mais importante do que o “como” é o “por quê”. Num espaço esférico cheio de luz e sem sombras, vi-me cercado por uma dúzia de vultos altos, de aspecto vagamente humano, que se comunicavam comigo através de corpúsculos telepáticos (sim, amigos, o pensamento não consiste em ondas, e sim em partículas). Sintonizado com sua mente coletiva, fui informado da razão de minha presença ali. Disseram-me que a Humanidade terrestre havia atingido um ponto de saturação informacional. Já tinha coisa demais; era preciso deletar uma parte de nossa cultura, a fim de que ela tivesse espaço para continuar se desenvolvendo.

Me informaram que era um trabalho feito periodicamente, assim como limpamos nosso disco rígido e esvaziamos nossa lixeira. Minha presença ali era para representar a raça humana no momento de tomar decisão – numa área, garantiram-me, sobre a qual eu estava perfeitamente capacitado para opinar. “Um desses movimentos culturais será deletado e sumirá para sempre da memória humana”, explicaram-me os vultos em uníssono. “Cabe a ti decidir qual deles: a Bossa Nova ou a Jovem Guarda?”. Meditei durante alguns milênios (menos por indecisão do que pelo deleite de saborear milênios) e proferi meu veredito: “Entre o barquinho e o calhambeque, fico com o calhambeque”. Retornei ao mundo, ao Brasil, ao Rio, e ninguém jamais tinha ouvido falar em Vinícius, Tom Jobim, João Gilberto, Menescal & Bôscoli... Até Fernanda Takai, coitada, tinha sumido (o Pato Fu tinha agora em seu lugar uma vocalista loura e saradona). Em compensação, o Aeroporto do Galeão se chamava agora Aeroporto Ronnie Cord.

Cometi um crime, leitores? Talvez, no que tange à cultura brasileira. Mas fui sincero comigo mesmo. Vivi o alvorecer, o zênite e o crepúsculo dos dois movimentos, e por alguma razão (que não me cabe diagnosticar) meu cérebro sempre me inclinou para a Bossa Nova e meu coração para a Jovem Guarda. Acho João Gilberto um gênio, mas quem me emociona é Erasmo. Entre o Zimbo Trio e Renato e Seus Blue Caps, divulgo o primeiro entre meus amigos gringos, mas é o segundo que escuto em casa. Tudo isto porque nunca saberemos o que vai marcar afetivamente nossa infância e adolescência.

Questionado sobre os tchecos que têm saudade do comunismo, Lech Valesa (O Globo, 10.11.2009) observou: “Há pessoas que têm nostalgia do passado, da época do primeiro amor, que por coincidência total foi na era do comunismo. Essas pessoas podem ter nostalgia dessa época, mas isso não significa que tenham saudade do comunismo. Além disso, as pessoas que eram crianças e adolescentes nessa época não sabem avaliar direito como era, o que havia de errado no sistema”. Nossas lealdades afetivas se formam à revelia de nossas idéias, e muitas vezes não conseguimos distinguir entre umas e outras.

2095) No coração do colonialismo (25.11.2009)



Publicado em 1899, O Coração das Trevas de Joseph Conrad é o necrológio oficial do Colonialismo, esse formidável zumbi que, por mais que seja morto, levanta-se da tumba, e continua malassombrando o século 21 com jeito de quem ainda vai estrebuchar até o 22. 

 Os manuais históricos nos dizem que o colonialismo é a internacionalização do capitalismo. Depois de explorar ao máximo o proletariado em seus próprios países, o Grande Capital começa a se defrontar com as reivindicações (quando não as revoluções armadas) dos operários locais. O que faz? Estica seus tentáculos e vai explorar os indígenas desavisados de continentes remotos, onde existe alguém disposto a trabalhar 14 horas para ganhar um dólar e ficar feliz da vida.

O livro de Conrad é uma obra fundadora do romance moderno. Não passa de uma noveleta (minha edição, da Penguin, tem 111 páginas), mas sua essência concentrada reverbera ainda hoje, na poesia de T. S. Eliot, na ficção científica de J. G. Ballard, no cinema de Francis Coppola, em milhares de outros ecos. 

A idéia básica de Conrad (conscientemente ou não) é de que o Colonialismo é uma espécie de Dr. Jekyll cujo Mr. Hyde não se manifesta através de uma poção, mas de um navio. Basta afastar-se do mundo civilizado para que o nobre doutor retroceda a um passado bestial gravado em seus cromossomos. 

A civilização só se realiza às custas do não-civilizamento de alguém. Li em alguma parte que “um lorde inglês é um produto refinadíssimo da civilização, e para produzir cada um deles é necessária a fome e a escravidão de centenas de orientais”.

Uma boa análise de Conrad é a de Luiz Costa Lima em seu ensaio O Redemunho do Terror (Ed. Planeta, 2003). Ele cita (p. 199) Conrad, que diz: “A criminalidade da ineficiência e o puro egoísmo, ao se apoderarem do trabalho civilizador na África, são uma idéia justificável”. 

É essa a idéia sugerida por Conrad ao editor a quem propõe a publicação de Heart of Darkness. O colonialismo consiste num processo onde se combinam, de um lado, um discurso desinteressado, iluminista, civilizatório, e do outro uma prática rapace, primitiva e massacrante. O colonialismo se expande com o pretexto de expandir a civilização, as luzes, a cultura, as liberdades democráticas. Na verdade, diz Costa Lima (p. 154), “a expansão do horror não se dá por motivos ocasionais senão que deriva de um sistema cujo centro precisa de gerar uma periferia”. 

A criação dessa nova periferia, sob o pretexto de civilizá-la, é (p. 212) “resultante da atuação de um modo de racionalidade, a econômica, que estimula a avidez contra os não-brancos, trazendo-lhes o sofrimento físico, a espoliação, a humilhação moral e o sentimento de inferioridade”. 

O coração das trevas é um produto da mesma civilização que criou o Século das Luzes. As luzes são para consumo interno das mansões e palácios. Lá fora, que reine o escuro, atenuado apenas pelos olhos das feras que espreitam.







2094) De Chandler para Hitchcock (24.11.2009)




(Raymond Chandler)

Depois de se tornar um romancista de sucesso, Raymond Chandler virou roteirista de Hollywood, um desses prêmios punitivos com que o sucesso nos atraiçoa de vez em quando. Ganhou um bom dinheiro, passou a beber o dobro e a se desesperar o triplo. 

Fez algumas coisas boas; talvez se deva a ele algo do muito que há de bom em Pacto Sinistro (“Strangers on a Train”) de Hitchcock. É justamente numa carta sua para Hitchcock, datada de 6 de dezembro de 1950, que encontramos um conselho que embute uma crítica velada, mas uma crítica formulada com as precauções de quem sabia estar lidando com uma prima-dona.

Diz Chandler: 

“Na qualidade de amigo, e de alguém que só lhe deseja o melhor, sugiro que ao menos uma vez, em sua carreira longa e vitoriosa, você construa seu roteiro à base de uma história sólida e bem tramada, e não sacrifique nenhuma parte dessa solidez para obter um ângulo de câmara fora do comum. Sacrifique a posição da câmara, se necessário. Sempre haverá oportunidade para fazer uma tomada igualmente boa. Mas nunca haverá a chance de encontrar uma motivação igualmente boa”.

Chandler diz (muito diplomaticamente) que muito da obra de Hitchcock consistia em planos visualmente fascinantes, movimentos ou ângulos de câmara que encantavam espectadores e críticos, às custas da verossimilhança ou da coerência da história. 

Hitchcock era um excepcional narrador cinematográfico, no que diz respeito a contar as coisas através de imagens. A motivação (as razões humanas subjacentes à trama, que fazem os personagens se comportarem de uma forma e não de outra) ficavam muitas vezes em plano secundário. 

Vemos isso em muitas das sequências clássicas hitchcockianas: o que acontece na tela é implausível e um tanto improvável, mas está contado com tamanho brilho (câmara, montagem, música, etc.) que esquecemos as críticas e nos deixamos arrebatar pela cena. Isso ocorre em seus melhores filmes: Intriga Internacional, O Homem que Sabia Demais, Pacto Sinistro, Psicose, etc.

Chandler levava a motivação a sério, muito mais do que a média dos escritores do romance policial “noir”, onde os personagens tomavam atitudes intempestivas e imprevisíveis o tempo inteiro. A crítica que ele faz a Hitchcock é a mesma que (segundo observa Scott Westerfeld, no Blog em que transcreve essas cartas) se pode fazer a um escritor que deixa a motivação em segundo plano apenas pelo gosto de criar uma frase brilhante, uma comparação fora do comum. 

O que ocorre, na maioria dos casos, é que escritores e cineastas de tendência estilística se deixam cativar por essas pequenas façanhas de brilhantismo técnico, mas o público, embora as perceba, percebe também que quando elas aparecem é sempre às custas de algo que subjaz ao estilo, e que é a história propriamente dita, ou seja, o que Chandler chama de motivação. É como uma escada de madeira onde um degrau é de celofane colorido: mais vistoso, mais chamativo, mas sem firmeza.






2093) Contracapa de torpedo (22.11.2009)



(www.imagesavant.com)

& Hitler, Buffallo Bill, Salvador Dali, Nietzsche, Billy Blanco, Stálin, Cantinflas: o bigode como assinatura & o câncer é a vingança do cigarro & existem feiúras agradáveis e belezas repulsivas & uma piscina sob o tapete & os punhos fechados, os olhos abertos, o coração abrindo e fechando & o ciúme é a soma do medo de perder com a raiva de dividir & viver com um artista é como morar num prédio de Niemeyer & a beleza do mundo está na lente dos óculos & a síncope musical é como uma coluna arquitetônica sem o seu terço médio & quem vê a laranja intacta não conhece a laranja & o tempo não é linear como o espaço, é turbulento, caótico, probabilístico, browniano & formigas de aço cortando e carregando folhas de plástico & precisa uma cama com oito pés, porque o rojão aqui é pesado & por que não temos cinemascope na vertical? & estruturalisticamente, é demonstrável que os quatro evangelistas mais divergem do que coincidem & purpurinas verbais, lantejoulas estilísticas, silicones narratológicos, e uma cadeira na ABL & desligo a televisão com a mesma angústia com que fecho uma janela em pleno dia & minha memória é um campo minado onde nunca sei que lembrança aleatória vai fazer meu dia voar pelos ares em estilhaços de culpa e expiação & a toda hora tem um mistagogo enfiando uma falcatrua nas entranhas do país e arrebanhando o ouro gordo da sua boa fé & ao invés das artes de Marte quero mil vezes os venenos de Vênus & fazer uma pergunta é criar uma porta; fornecer uma resposta é abri-la & eu queria a glória dos Irmãos Lumière, aquela de criar, mesmo sem crer & um jogo de sinuca bidimensional, com círculos que se entrechocam e ao atingirem o lugar correto transformam-se em esfera e rolam pelo papel afora & nem mesmo as anêmonas de amônia que nadam nos gases de Júpiter estão livres do medo, da esperança, da solidão e do amor & perdido no deserto, e a única sombra à vista é a minha, que não pode me abrigar & um inferno composto de quartos úmidos, inverno sem fim, cinzeiros cheios e café frio & às vezes é melhor declarar guerra a um país vizinho e alistar os criminosos & com quantos círculos se pode preencher um círculo maior? & a polícia só toca a campainha ao amanhecer & esquecer não é deletar, é diluir & em que ano será implantado o primeiro controle remoto de TV subcutâneo? & espatifou um cálice entre os dedos cerrados e só percebeu no dia seguinte & quando um notório mentiroso diz uma verdade evidente, qual dos dois contamina o outro? & um homem com teclas de piano no lugar dos dentes & sim, eu sei que o prédio está se incendiando, mas não tem quem me faça sair de casa com os cadarços desamarrados & a rã salta no poço há mil anos presa no loop de um poema & não se pode acertar sempre, mas não se deve errar tanto & um país pode enlouquecer sem que nenhum dos seus habitantes o perceba & o ser humano come realidade e bebe fantasia &

2092) O Vaticano e os extraterrestres (21.11.2009)



Referi dias atrás um depoimento de Dom Hélder Câmara sobre a ficção científica, no qual o simpático Arcebispo de Olinda afirmava que “o Homem por entre as estrelas é uma coisa que não escandaliza Deus”. A Igreja Católica, que infernizou a vida de Copérnico e Galileu, acabou aceitando a idéia de que é a Terra que gira em torno do Sol, e não o contrário. Ao que parece, essa aceitação não diminuiu muito a credibilidade da Bíblia. Os que deixam de acreditar nela, em sua imensa maioria, a abandonam em benefício de uma hipótese religiosa alternativa, não de uma crença científica. O maior adversário do Cristianismo não é a Ciência, são as religiões que oferecem hipóteses mais sedutoras (ou prometem mundos-e-fundos com maior cara-de-pau).

Agora, o noticiário dá conta de que o Vaticano sediou, a partir deste 10 de novembro, a Semana de Estudos de Astrobiologia, organizado pela Pontifícia Academia de Ciências. É o tipo do evento que eu esperaria ser patrocinado em qualquer outro lugar, menos ali. Transcrevo abaixo a programação, conforme divulgada nos jornais:

“A programação foi organizada em oito módulos: A Origem da Vida (como as moléculas se organizaram para que a vida começasse); Habitabilidade Através do Tempo (como a Terra manteve a vida ao longo de sua história geológica); Ambiente e Genomas (como a vida e o ambiente interagiram no tempo geológico); Detectando Vida em Outros Lugares (perspectivas e técnicas para encontrar vida em ambientes fora do Sistema Solar). Estratégias de Busca para Planetas Exosolares (explica as técnicas usadas para encontrar planetas ao redor de outras estrelas e determinar suas propriedades); Formação de Planetas Exosolares (como os planetas se formam como parte do processo de formação das estrelas); Propriedades dos Planetas Exosolares (modelos de computador, dados astronômicos e alguma especulação sobre as propriedades desses planetas); e Inteligência em Outros Locais e Vida Sombria (existência de formas de vida inteligente e também baseadas em uma bioquímica diferente da terrestre).”

Existe dentro da Igreja Católica, como existe em qualquer organização religiosa suficientemente grande e complexa, um grupo de pensadores que trata de preparar uma interface entre a doutrina religiosa tradicional e as descobertas científicas. Nem sempre esses grupos trabalham em paz. São incomodados o tempo inteiro pelos grupos mais conservadores, os fundamentalistas da escritura, aqueles para quem qualquer nova informação que contradiga ou pareça contradizer o texto sagrado deve ser perseguida. A notícia afirma que no ano passado o jornal oficial do Vaticano trazia um artigo intitulado “Aliens São Irmãos”, onde se afirmava que buscar formas de vida extraterrestres não contradiz a crença em Deus. Aos poucos, a Igreja se desprega do modelo geocêntrico e busca ampliar sua jurisdição espiritual para abranger outros sistemas e outras galáxias. Já não era sem tempo.