terça-feira, 25 de novembro de 2014

3667) O retrato com Vovó (25.11.2014)


Ninguém dormiu direito naquela noite, era um aperreio de gente chorando pelos cantos, a casa toda acesa, gente indo e voltando, as pessoas cochichando e pisando na ponta dos pés. E nós três no quarto, cada um na sua caminha, tentando escutar tudo através da porta fechada. De vez em quando um da gente chorava, quando ouvia mamãe chorando. Papai ia e vinha, dando instruções, com aquela voz mais baixa e mais grossa, que não dava vontade de chegar muito perto dele. O cansaço era grande e eu pelo menos acabei cochilando.

De manhã ninguém foi para o colégio, mas nem isso adiantou, eu preferiria ter um dia igual aos outros, o café com cuscuz e tapioca, a farda, a bolsa, o ônibus, o empurra-empurra no pátio, as turmas formando sob os berros do fiscal (“Menores na frente! Maiores atrás! Braço estendido, tocando com a mão esquerda no ombro do companheiro à frente!”), e depois as turmas sendo liberadas de uma em uma, marchando rumo à sala de aula que cheirava a óleo de peroba.

Não foi nada disso, passou a hora da aula e a gente não teve coragem de levantar da cama. Dava para sentir o cheiro do incenso aceso no quarto ao lado. Minha tia girou a chave na fechadura, entrou e mandou a gente se aprontar. Lavamos o rosto e sentamos na mesa da cozinha. Lá de fora vinha um barulho de vozes de homens entrando em casa, carregando alguma coisa comprida e pesada, meu pai bradando instruções.  Tomamos café com pão-com-manteiga e só, e minha tia nos levou de volta para o quarto. Nenhum da gente teve coragem de perguntar nada.

Mais tarde ela voltou. Fez cada um de nós se vestir como em dia de missa, penteou os cabelos da gente com um pente molhado na torneira, ajudou a dar o laço no sapato, fiscalizou as orelhas e mandou esperar.  Esperamos. Vieram e nos levaram para a sala, que cheirava a flores.

O caixão estava pronto, do lado oposto à janela. Na parede maior tinham afastado os outros móveis e Vovó estava com o vestido que usava no Natal, sentada na poltrona encostada à parede, com as mãos pousadas no colo, o retrato de papai e mamãe por cima dela. Tinha os olhos fechados e o rosto pintado de maquilagem, estranho, porque há muito tempo que ela não se pintava mais. Meus irmãos ficaram em pé de um lado, eu, o mais velho, fiquei do outro.  No meio da sala, o fotógrafo, Seu Sóter, amigo de papai, mandou que a gente levantasse mais o rosto. Empunhou a máquina, ergueu a lâmpada, e um instante antes do relâmpago eu virei o rosto para vovó, e vejam o que é criança, juro que ela abriu os olhos, piscou pra mim aquele olhinho bem azul dela e disse baixinho: “Deixei um livro pra você embaixo da imagem de São Jorge.” E não é que eu achei?!