Chega às minhas mãos o novo livro+CD de Jessier Quirino, Bandeira Nordestina. Jessier está ampliando o seu raio de ação, que começou nos livros e passou aos recitais (ou terá sido o contrário?) e agora já chega à gravação de CDs e à realização de shows em que música e poesia se misturam. Na tradição de Zé da Luz, Catulo da Paixão Cearense, José Laurentino, Chico Pedrosa, Jessier é o grande poeta regional de sua geração (que é a mesma minha), e tem trazido para este estilo de poesia uma contribuição própria, um modo de escrever próprio, que é o que distingue os grandes poetas. Eles não apenas assimilam tudo que foi feito antes, mas abrem novos caminhos para o que virá depois.
Eu sempre tive um problema com certo tipo de poesia matuta em que o poeta parece interessado apenas em estropiar a língua, em convencer o leitor de que a principal característica dos matutos é serem intelectualmente simplórios, e incapazes de falar e escrever português. Eu acho o contrário. O matuto comete erros, claro. Os diplomados também (ai das revistas e dos jornais brasileiros se não existisse um exército de revisores consertando os nossos solecismos!). O que distingue o matuto (e nisto a poesia de Jessier é exemplar) é sua capacidade fabulatória, de criar historinhas do nada, e alegorias a partir dos menores acontecimentos; sua visão crítica e irônica quanto aos costumes “da cidade”; sua percepção intuitiva das motivações por trás dos atos humanos; sua inesgotável capacidade de se maravilhar diante de coisinhas bobas da Natureza e da vida cotidiana; seu talento para injetar lirismo e filosofia em tudo que expressa o modo de vida rural, seus ofícios e lazeres, suas tradições e valores.
O que aos urbanos menos informados soa como erro-de-português é muitas vezes arcaísmo, ou modo de falar específico de uma comunidade rural, tão legítimo quanto o das comunidades urbanas (futebolistas, músicos, técnicos em informática, etc.). Sem falar nos neologismos, das derivações pessoais produzidas pela imaginação do poeta. É neste detalhe que Jessier se afasta um pouco dos poetas citados acima e se aproxima estilisticamente de poetas como Manuel de Barros ou prosadores como Guimarães Rosa, sempre dispostos a recombinar sufixos e prefixos, derivações por semelhança, conjugação verbal de substantivos, substantivação de adjetivos e assim por diante.
Neste livro mais recente há obras-primas de elegia rural como “A Cumeeira de Aroeira Lá da Casa Grande”, retratos da cultura regional como “Endereço de Matuto”, “O Dizido das Horas do Sertão”, numerosas e ferinas sátiras políticas. E há principalmente poemas românticos e maliciosos, cheios de verve e de finura descritiva: “Maria Pano de Chão”, “Fé Menina”, “A Cor dos Beicinhos Dela”, “Dois Brincos Recém Tirados”. A poesia matuta, como eu a entendo, é tão variada e cheia de sutilezas quanto a poesia urbana. É a mesma orquestra sinfônica, só que com outros instrumentos.