Perdemos Cacá Diegues, o cineasta que para muita gente
tinha o perfil mais parecido com o Cinema Novo.
Assunto que rende etílicas polêmicas, é claro. Para uma
igrejinha obstinada (onde me benzo de vez em quando), a cara do Cinema Novo era
Glauber Rocha, sem discussão. Glauber foi o motor-de-luz que energizou uma
geração inteira, excitando, provocando, desafiando, incentivando, polemizando,
mas deixando claro a todos que o momento era de fazer cinema no Brasil.
Sem dinheiro, sem indústria, sem patrocínio, fosse como
fosse. E fazer um cinema provocativo, questionador, “revolucionário”. E de fato
o cinema feito por Glauber, entre Barravento
(1962) e O Dragão da Maldade... (1969)
foi tudo isto, e serviu de bandeira a toda uma geração. “Sigam-me! É por aqui!...”
Depois, o cinema de Glauber deixou de ser bandeira e
virou farol: “Afastem-se, o terreno aqui é perigoso”. O talento voluntarioso, a
imaginação indisciplinada, os rasgos de ousadia, tudo isto sustentou o cinema
que Glauber continuou fazendo até morrer em 1981; mas aí já não era mais o
Cinema Novo, era o delírio pessoal de Glauber, suas cartas do exílio e seu
manuscrito-encontrado-numa-garrafa.
Para outros, a cara do Cinema Novo era Nelson Pereira dos
Santos, que teve uma carreira totalmente diferente. Amigo de Glauber, Nelson
era de outro planeta como pessoa e como diretor. Era um referencial de
equilíbrio, de cabeça firme, de habilidade e sobrevivência mesmo no pior dos
Anos de Chumbo. E tinha seu viés de doidice tropicalista também, vide Como Era Gostoso Meu Francês (1971), Um Azyllo Muito Louco (1970), Quem é Beta (1972) e outros
experimentalismos que não perdiam para os de Glauber.
E Nelson foi um dos esteios de uma faceta importantíssima
(para mim, pelo menos) do Cinema Novo, que foi a aliança com a literatura
brasileira. Glauber não adaptava ninguém: tudo era ele, e tudo era dele. Nelson
construiu pontes cinematográficas com a obra de Graciliano Ramos, Machado de
Assis, Guimarães Rosa, Gilberto Freyre, Nelson Rodrigues, Jorge Amado, uma
aliança onde a obra literária, já consagrada, fornecia o chão, e o cinema
fornecia o voo.
(Nelson Pereira
dos Santos)
Não vou poder desfiar aqui o perfil de cada um dos
cinemanovistas – Arnaldo Jabor, Joaquim
Pedro de Andrade, Ruy Guerra, Paulo César Sarraceni, Leon Hirszman... Tantos e
tantos outros... Cada um deles é um cinema-novo à parte. E Cacá Diegues?
Cacá era um cara de conversa longa e prazerosa, de temperamento
cordial, sorridente e gentil -- é a
imagem que me ficou das vezes em que estivemos juntos. Tinha um perfil de
amante do cinema, do espectador que vira diretor pelo prazer de trazer um instrumento
novo à orquestra coletiva.
Muitos diretores queriam chutar o pau da barraca,
desafinar o coro dos contentes, explodir a tela em fotogramas, bouleversar para
sempre o juízo das platéias. Não era o caso dele, que mesmo em seus filmes mais
incisivamente políticos estava mais focado nas pessoas, nos dramas, tragédias,
farsas e comédias em que as pessoas se metem por causa de coisas como política,
dinheiro, poder, sexo, violência, e o mais que se segue.
No cinema de Cacá sempre vi também um respeito grande e
uma curiosidade grande pelos temas nordestinos. Ele era um nordestino
transplantado, como tantos outros, nascido em Maceió mas vindo muito cedo para
o Rio. E lembro da leve surpresa que tive, já com mais de trinta anos, quando
descobri que ele era filho de Manuel Diegues Jr., grande estudioso da cultura
popular, autor de ensaios definitivos sobre a literatura de cordel e a poética
dos cantadores.
É de Cacá a boutade
famosa de dizer que aqui no Brasil “Cinema
é apenas uma abreviatura de Cinema
Americano”. Muita gente via nessa frase uma confissão de subserviência
diante de Hollywood; eu sempre a vi como um diagnóstico sincero do que é ser
espectador de cinema num país como o nosso.
E olha que quando Cacá disse esse gracejo, nosso mercado era
muito mais aberto a produções do mundo todo. Em Campina Grande, nas décadas de
1960-70, eu via a toda hora filmes russos, japoneses, mexicanos, iugoslavos... E
o próprio cinema norte-americano ainda não estava sujeito à ditadura do
“primeiro fim de semana”, que decide a vida e a morte de um filme. Ainda
estávamos longe das distorções do século atual, quando um único filme de
super-heróis ocupa, simultaneamente, 80% ou mais das salas de exibição do
Brasil inteiro.
Cacá nunca deixou
de dirigir, mas tornou-se produtor, e é neste aspecto que vejo nele (e
em Nelson Pereira) uma cara mais “Cinema Novo” do que a de Glauber, que será
sempre um irredutível número-primo em nossa História e nossa Cultura. Glauber
forcejava para ser uma eterna exceção, mas cineastas como Cacá Diegues e Nelson
ajudaram a pavimentar o caminho para a criação de uma regra. A criação (sempre
polêmica e contraditória) de uma indústria cinematográfica, capaz de atrair (e
salvar!) cineastas, roteiristas, atrizes, atores, fotógrafos e tudo o mais.
Arte é uma coisa engraçada. Quando um artista morre, a
primeira coisa que a gente sente é o choque da perda humana, da perda
individual, ainda mais quando é alguém que a gente conheceu pessoalmente.
Aquela ausência nunca mais será preenchida. Aquele vácuo vai ficar sempre ali,
até o dia em que sejamos nós a falta que vai ficar.
Mas nesse momento a gente procura se refugiar na obra.
Reler o livro, botar o CD pra tocar, dar play
no filme. A morte recente de David Lynch, no mês passado, me fez rever uns 4 ou
5 filmes e pegar agora as 3 temporadas de Twin
Peaks, que estou revendo à razão de um episódio por dia. (Sou aristotélico:
tudo meu é com planilha.)
O que tenho de Cacá, aqui em casa? Tenho Bye Bye Brazil (1980), o meu preferido,
que vivo revendo. Devo ter também Chuvas
de Verão (1978), uma beleza de filme sobre o Rio de Janeiro (o Rio de
Janeiro não é um conjunto de paisagens, é uma galeria de tipos humanos que só
poderiam ter brotado aqui).
No YouTube, de ontem para hoje, já achei e marquei Ganza Zumba, Rei dos Palmares, 1963 (um
épico juvenil, abrindo a possível trilogia que inclui Xica da Silva, 1976, e Quilombo,
1984), A Grande Cidade (história das
pessoas anônimas que são mais reais do que as pessoas famosas).
Tem outros por aí, e curiosamente vejo agora que tem
vários que nunca assisti: Dias Melhores
Virão (o filme sobre os dubladores!), O
Maior Amor do Mundo, O Grande Circo
Místico... Vou botar cerveja pra gelar. Lembro que alguns deles foram
desancados por este ou aquele crítico, o que não deixa de ser uma recomendação
e um alerta, um pisco no radar.
(Deus é brasileiro)
E lembro uma conversa que tive com um crítico de cinema
(não-profissional) quando assisti Deus é
brasileiro (2003). Falei que gostei muito do filme. Meu amigo perguntou: “É mesmo?
É alguma obra-prima, então?” E eu disse:
“Longe de ser uma obra prima, mas é um filme que eu precisava ver e não sabia,
e acho que qualquer filme ganha mais sendo isso do que sendo obra-prima”.