segunda-feira, 19 de julho de 2010

2290) Deterioração do caráter (10.7.2010)



Parece que há uma epidemia em curso no Ocidente, de achar que “o mundo não é mais o mesmo”, “as novas gerações se comportam de uma maneira que, no meu tempo, seria inadmissível” e assim por diante. Será verdade? Eu, pelo menos, acho; e vivo a repetir essas frases, mas repito-as com a consciência de que são o karma que cabe a cada geração de ex-candidatos a revolucionários. Os contestadores de hoje (cabelo moicano, tatuagens, promiscuidade, drogas) dirão daqui a 30 anos: “Esses jovens de hoje não têm noção de valores!”. E la nave va.

Li na Web (http://www.city-journal.org/2008/18_4_otbie-british_character.html) um artigo assinado por um gentleman com o irresistível nome de Theodore Dalrymple (que a revista informa ser médico, e autor do livro Not With a Bang But a Whimper) em que ele fundamenta críticas desse tipo com algumas argutas observações sobre o ser humano e as civilizações de língua inglesa. Teríamos muito a aprender com a decadência britânica, porque parece que todas as decadências se assemelham.

Mr. Dalrymple fala que sua mãe chegou à Inglaterra fugindo da Alemanha nazista e se encantou com os ingleses, com seu caráter, seu modo de ser. Diz ele: “Os britânicos lhe pareceram indivíduos centrados, controlados, respeitadores da lei, e ao mesmo tempo tolerantes com outras pessoas, por mais excêntricas que fossem, e com uma visão profundamente irônica da vida, que os encorajava a rir de si mesmos e a perceber sua própria desimportância no universo. (...) Eram polidos e atenciosos, em vez de intrometidos e presunçosos; os que eram seguros de si procuravam não humilhar os tímidos ou retraídos; e mesmo os mais bem-sucedidos tinham consciência de que seu sucesso era uma mera gota dágua num oceano de possibilidades, e bem que poderia ser ainda maior se eles tivessem se esforçado um pouco mais ou tivessem mais talento”.

Não sei se os ingleses são assim, mas se alguém é assim eu bato palmas. Mr. Dalrymple observa mais adiante que um inglês deve ser o único indivíduo que, quando alguém pisa no seu pé, ele pede desculpas. Mas ele registra com dissabor que “a cultura e o caráter dessa contenção tipicamente britânica transformou-se no seu contrário. Atitudes extravagantes, veemência de expressão, o hábito de se vangloriar, de se exibir, ausência de qualquer tipo de inibição... é isto que temos que admirar hoje, e a antiga modéstia é objeto de escárnio”.

Nada disto tem a ver com o Brasil, não é mesmo? Eu, pelo menos, acho que não. Ademais, essas coisas geralmente se manifestam em movimentos pendulares – numa hora vão na direção de Mais Bagunça, aí quando a coisa está bagunçada demais começa um movimento na direção de Mais Disciplina, que acaba por se tornar insuportável, e aí lá vem a Mais Bagunça de novo... Enfim, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, como dizia Camões. Mas algo me diz que, se bem que o Brasil tenha esperanças, o império britânico (infelizmente) nunca mais será o mesmo.

2289) “Casamento do Céu e do Inferno” (9.7.2010)



(Drummond, por Portinari)

O terceiro poema de Alguma Poesia (1930), livro de estréia de Carlos Drummond, é uma espécie de grão original de onde brotarão inúmeros outros, expandindo o primeiro, contradizendo-o, questionando-o, desmentindo-o, aprofundando-o. Drummond tinha uma amplitude temática impressionante, mas, como todo poeta que vai fundo, circula reiteradamente por entre um número finito de situações. Este “Casamento” (que no título ironiza William Blake e sua visão grandiosa do choque entre o Sagrado e o Profano) faz parte das primeiras investidas modernistas contra a moral pequeno-burguesa e a noção do amor romântico, que justifica essa moral e lhe doura a pílula. Nos versos iniciais, termos como “azul de metileno” e “diurética” cortam de cara qualquer possibilidade de romantismo açucarado (uma terminologia plebéia que lembra Augusto dos Anjos).

CDA contrapõe o jeitão meio atabalhoado dos defensores da pureza ao dos semeadores do pecado. De um lado, os anjos, que se limitam (como a mãe do poeta, no poema anterior, “Infância”) a espantar mosquitos dos cortinados das lolitas, e São Pedro, que dorme. Do outro, o Diabo modernista, armado de luneta. Drummond satiriza a poesia parnasiana de Bilac, que dizia, em “Virgens Mortas”: “Quando uma virgem morre, uma estrela aparece, / nova, no velho engaste azul do firmamento”. Drummond afiança: “...diz-se que tem virgens tresmalhadas, incorporadas à via-látea, vagalumeando...” E se Drummond avisa que o Diabo tem um “olho torto” e espreita tudo “por uma frincha”, ecoa também Bilac no mesmo soneto, quando faz aos namorados uma advertência pudica: “Piedade! Elas veem tudo entre as moitas escuras...” Drummond iguala as virgens mortas e o Diabo no mesmo voyeurismo sacana.

Drummond fala que o mundo está cheio de suspiros de “bocas machucadas”, e que “os corpos enrolados / ficam mais enrolados ainda / e a carne penetra na carne”. Imagino que na época este verso terá causado um ligeiro escândalo. Bilac, um dos mais sensuais dos nossos poetas, usava imagens assim, mas as usava envoltas nos véus de musselina da mitologia grega ou outro maneirismo aparentado. Drummond, em seus versos sem métrica nem rima, diz a coisa com o nome da coisa e o leitor não consegue ver naquilo outra coisa senão a coisa.

A estrofe final é de uma sem-cerimônia libertária: “Que a vontade de Deus se cumpra! / Tirante Laura e talvez Beatriz, / o resto vai para o inferno”. A citação às musas de Petrarca e de Dante Alighieri manda a pureza de volta para a Idade Média. Nos tempos modernos, parece dizer o poeta, toda mulher só pensa mesmo naquilo, então, fazer o quê? E que saborosa ambiguidade a desse ótimo “Que a vontade de Deus se cumpra!” Ou seja, se o mundo está entrando numa época de “liberou geral” é porque Deus quis. O poeta diz uma frase de velhinha cristã fazendo o pelo-sinal, mas a diz num tom de quem esfrega as mãos satisfeito e olha o mundo com um olho... ousarei dizer que “torto”?

2288) “Rede de Intrigas” (8.7.2010)



Este filme magnífico de Sidney Lumet (Network, 1976) é um dos ataques mais devastadores já feitos pelo cinema à televisão. Esta guerra entre cinema e TV vem há muitos anos, e o mais interessante é que não importa por qual dos dois a gente torça: cada crítica que um faz ao outro nos parece inteiramente justificada. Lumet é um diretor competente, um desses mestres do cinemão realista tradicional, autor de filmes que admiro muito (O Homem do Prego, A Colina dos Homens Perdidos, Assassinato no Orient Express, Um Dia de Cão, etc.). Ele contou aqui com um roteiro devastador de Paddy Chayefsky, que ganhou os principais prêmios nesse ano: Oscar, Globo de Ouro, Los Angeles Film Critics, New York Film Critics e Writers Guild. Não digo isto por ser deslumbrado com prêmios (na maioria dos casos são bobagens), mas porque parece que todo mundo nos EUA, naquele momento, estava ansioso por alguém que mostrasse o que a TV andava fazendo naquele país. Chayefsky veio e mostrou. Mostrou tão bem que um filme de 35 anos atrás parece ter sido feito para analisar a TV de hoje, com seu sensacionalismo, sua amoralidade, seu concubinato com o grande capital, seus “irreality shows”, sua capacidade de transformar em dinheiro tudo que toca.

Lumet é um diretor com um veio teatral forte, e costuma extrair boas interpretações dos seus atores. Deste filme, cinco foram indicados ao Oscar, e três ganharam (Faye Dunaway, Peter Finch e Beatrice Straight). Grande parte do poder de convencimento do filme se deve a essas interpretações. Além destes citados, William Holden, Ned Beatty e Robert Duvall estão excelentes e dão extrema credibilidade às brigas dos executivos de uma emissora mediana, comprada por um grande conglomerado financeiro, que de repente começa a fazer sucesso quando o âncora (Peter Finch) de seu principal telejornal – uma espécie de Cid Moreira ou William Bonner – entra num surto psicótico e torna-se uma espécie de guru alucinado que verbaliza de forma incoerente a insatisfação do público.

Ned Beatty disse uma vez: “Nunca recuse nenhum papel. Trabalhei somente um dia em Rede de Intrigas e fui indicado para um Oscar”. A cena em que ele usa o mesmo tom messiânico do personagem de Peter Finch para explicar a este o que é globalização e capitalismo multinacional é antológica. Network deveria ser exibido em todos os nossos pretensos Cursos de Comunicação, que ensinam tanto beabá de clichês. A maior parte das pessoas que faz televisão não tem idéia do que é a televisão. Stanislaw Ponte Preta batizou a TV de “máquina de fazer doidos” e todo mundo pensou que ele se referia ao público. Não era. Estava falando das pessoas que fazem televisão. Para quem assiste é um ópio, ajuda a relaxar e a dormir para enfrentar o batente do dia seguinte. Para quem a faz, é uma cocaína. Basta ver este filme de Lumet, onde não há um só personagem que não esteja rilhando os dentes o tempo todo.

2287) Nem Deus nem a Ciência (7.7.2010)



(Raimundo Carrero)

O escritor Raimundo Carrero, que é um católico penitente, sofrido, dostoievskiano, declarou numa entrevista: “O homem moderno não acredita em Deus, e, mais gravemente, tem orgulho de dizer que não acredita em Deus. E não acredita na Ciência. Está fazendo as maiores loucuras com a Terra, e não acredita também no Espírito da Terra”. É uma boa maneira de colocar o problema da catástrofe ambiental generalizada que estamos começando a vivenciar, porque para alguns este estado de coisas se deve à Ciência, ou melhor, ao poder que a Ciência adquiriu no mundo, desbancando a Religião. Para mim, não é nada disso.

Fala-se que é a Ciência que está destruindo o mundo, e que o grande mal do Homem Moderno é o excesso de racionalidade, de lógica. Peço licença para discordar. Ciência, racionalidade e lógica tem certamente um papel importante em tudo quanto existe de ruim no mundo: as guerras, a exploração econômica de países pobres e de populações ignorantes, a destruição do meio ambiente e tudo o mais. Mas isso não é tudo, e na verdade não é nem um terço da história toda.

Lógica e racionalidade são atributos do neocórtex cerebral que o ser humano desenvolveu há pouco tempo (100 ou 200 mil anos). É a parte do cérebro capaz de pensamento abstrato, planejamento, linguagem, percepção. É o cientista dentro de nós, e é a parte mais recente do nosso cérebro. Só que ela não decide muita coisa: quem decide, quem nos mobiliza e nos faz agir, são estruturas mais profundas. Por exemplo: o que os cientistas chamam de cérebro mamífero (“sistema límbico”). O cérebro mamífero é típico das criaturas de sangue quente, que amamentam filhotes e cuidam deles com altruísmo e dedicação, e que se associam em hordas, bandos e manadas obedecendo a um “contrato social” instintivo. Esse contrato lhes diz que juntos estão mais seguros e mais felizes do que sozinhos; e que um gesto de generosidade feito hoje poderá ser retribuído amanhã. Sem isso, nenhum ser sobrevive, nenhuma espécie sobrevive, como aliás estamos a ponto de constatar, por nossa conta e risco.

No entanto, por dentro destes dois, existe o mais antigo. Todo ser humano tem um cérebro réptil, o mais antigo de todos, incrustado no centro do seu. Por trás dos males do mundo, ou pelo menos por trás desse trio que acabei de citar, o que existe, como fator propulsor, é um espírito predatório e destrutivo do ser humano. Um espírito egoísta e auto-centrado, que só reconhece a si próprio como objetivo e se comporta como se o mundo lhe pertencesse por direito. Eu diria que existe em muitas sociedades humanas uma espécie de Espírito Reptiliano, um espírito de sangue frio e olho de lince, permanentemente focado em tudo quanto possa contribuir para sua sobrevivência, mesmo que à custa da sobrevivência de quem quer que seja, inclusive dos seus semelhantes, do grupo a que pertence, do planeta que habita.