sexta-feira, 9 de abril de 2010

1892) “Der Leone have Sept Cabeças” (2.4.2009)



O mês de março comemorou os 70 anos de nascimento de Glauber Rocha, que, se vivo fosse, seria uma enorme surpresa para todos nós. Difícil saber que tipo de cinema Glauber estaria fazendo – ou que tipo de outra coisa – se tivesse continuado aqui, se tivesse sobrevivido a si mesmo. O bom de tais homenagens é o reaparecimento de filmes obscuros. Vi no Canal Brasil Der Leone have Sept Cabeças (1971), o proscrito e criticado filme que ele dirigiu na África logo após seu auto-exílio durante a ditadura. É um bom filme? De jeito nenhum, mas é um filme que inquieta, que desconcerta, e que até comove, quando a gente pensa que houve gente capaz de tentar colocar, na linguagem de um cinema que era vanguarda para a época, todas as contradições políticas e todo o receituário de soluções -- a guerrilha inclusive – que na época eram o ar que respirávamos.

Como tantos filmes brasileiros da época, é a fusão catastrófica entre o Cinema Cerebral e o Teatro Dionisíaco. Ou seja, minutos inteiros de câmara fixa, apontada para uma pessoa, ou um casal, ou um grupo de gente, que se limita a rolar no chão, soltar gritos e grunhidos inarticulados, refocilar-se na lama ou na areia, enquanto a trilha sonora produz efeitos ensurdecedores e dissonantes. Grandes cenas do cinema já foram feitas assim; o problema é que na época se pensou que bastava ser assim para ser uma grande cena. A sequência de cenas isoladas (eu tinha começado a escrever: “A narrativa do filme...”) acompanha personagens alegóricos: o Guerrilheiro, os Exploradores Europeus, o Mercenário, o Agente Imperialista, o Presidente Títere. Como nos filmes de Godard da época (One plus one, Vent d’Est) há longas cenas filmadas em cenários reais e sugestivos, com atores andando em círculo e recitando textos políticos ou poéticos. E numerosas cenas em que vemos atores na rua, praticando ações aparentemente sem sentido, acompanhados pela câmara na mão e por uma pequena multidão de curiosos.

Pode parecer que não gostei do filme, mas é o contrário. Há uma sequência brilhante em que os exploradores europeus convencem um chefe tribal africano a proclamar a independência e eleger-se presidente. (Foi isto que aconteceu com uns 30 países africanos entre 1960 e 1970). Eleito, ele desfila, vestido de mestre-sala de escola de samba, num cadilaque cheio de saxofonistas. Há uma cena cruel de uma fila de africanos de pé, imóveis, enquanto o mercenário, de pistola em punho, os abate de um em um com um tiro na cabeça. Há uma manifestação política em que alguém canta “A Marselhesa” em português de Portugal. Aqui e acolá, brota no áudio um violão em solos telegráficos e velocíssimos que depois vi na ficha serem de Baden Powell. O título multilingue do filme (alemão, italiano, inglês, francês, português) reflete a inextinguível Besta do Imperialismo contra a qual Glauber lutou com filmes toscos, caóticos, brilhantes e naufragados como este.

1891) Poe: “O Embuste do Balão” (1.4.2009)



(gravura de Odilon Redon)

O conto de Edgar Allan Poe “O Embuste do Balão” (“The Balloon-Hoax”), apesar de se apresentar sob este título, contou com a credulidade de milhares de leitores. O texto noticiava a primeira travessia do Atlântico num balão, levada a efeito em três dias por um grupo de europeus. Publicado em 1844, era uma tentativa de Poe de repetir o sucesso de sua “Aventura sem par de Hans Pfaall” de 1835. Apesar do título se auto-denunciar, o início do conto era em forma de manchete com letras enormes, que logo atraíam a atenção dos leitores: “Notícias espantosas e urgentes, via Norfolk! O Atlântico atravessado em três dias! Triunfo notável da máquina voadora de Mr. Monck Mason! Chegada à ilha de Sullivan, perto de Charleston, dos srs. Mason, Robert Holland, Henson, Harrison Ainsworth e de outras quatro pessoas, no balão dirigível ‘Victoria’, depois de uma travessia de 65 horas de um continente a outro! Relato detalhado da viagem!”

O toque de plausibilidade era dado pela lista dos viajantes. Mason, Holland e Henson eram aeronautas famosos da época, e volta e meia a imprensa noticiava suas excursões em balões na Europa. Ainsworth era um conhecido escritor inglês, discípulo de Walter Scott. O texto de Poe descreve com detalhes o modelo do balão, seu modo de ascensão e descida, e depois finge transcrever textos de um diário de bordo mantido pelos viajantes. No final, diz Poe: “Esta é sem dúvida a empreitada mais estupenda, mais interessante e a mais importante já levada a efeito ou mesmo tentada pelo homem. Quanto aos acontecimentos magníficos que deverão se suceder agora, seria inútil tentar prevê-los”.

Seria difícil imaginar, hoje, alguém fazendo na imprensa um embuste – uma brincadeira de 1o. de abril, digamos – em torno de uma façanha proporcional a esta – uma nova viagem tripulada à Lua, por exemplo, ou quem sabe o desembarque de alienígenas. Na época da imprensa escrita, quando se disseminava uma notícia falsa, mas de grande repercussão, era preciso algum tempo até que os desmentidos alcançassem a mesma difusão, e nada garantia que isto acontecesse. Hoje, com a comunicação praticamente instantânea, mas interligada, rádios e TVs vigiam-se umas às outras e é muito difícil divulgar uma mentira bombástica sem que ela seja imediatamente investigada e desmentida pelos concorrentes.

Os embustes de nossa época são os embustes sutis, discretos, que vão crescendo na sombra e nos interstícios. São mitos como o da Área 51 (onde teria caído um disco voador), ou da encenação, por parte dos norte-americanos, do pouso da Apollo 11 na Lua, o qual na verdade não teria ocorrido. No tempo de Poe, e até mais recentemente, como no episódio da Guerra dos Mundos de Orson Welles, pelo rádio, era possível um ataque frontal à credulidade do público. Hoje, esse ataque é feito “pelas beiradas”, com as famosas Teorias da Conspiração, em que alguém nos “revela” fatos bombásticos e extraordinários a meia-voz, pedindo segredo.

1890) A reforma ortográfica (31.3.2009)



Já vige a nova ortografia, mas ainda não acostumei. Leitores desta coluna irão perceber deslizes aqui e ali. Não importa. O prazo de adaptação é de dois anos, e espremê-lo-ei até o derradeiro segundo. Em toda mudança desse tipo existem coisas que a gente concorda, e coisas que desaprova inteiramente. Uma que elogiei de cara foi reconhecer a existência das letras K, W e Y. As reformas anteriores, buscando a simplificação, as eliminaram. E de fato eu prefiro escrever “tupi” do que “tupy”, “quilo” do que “kilo”, e... não me ocorre agora nenhum uso comum do “w”. Já fui criado dentro da nova ortografia, e para mim tanto faz. O mais ridículo, contudo, é o fato de terem tirado as letras do alfabeto, embora elas continuassem existindo nos livros, nos jornais, nos dicionários, na língua, enfim. Todo mundo que já alfabetizou um filho já teve que explicar que essas letras “existem, mas não existem”. Isso lhes dá uma aura transcendental, cabalística. Vai ver que é por isso que tem tanto brasileiro batizado como Woskley ou coisa parecida.

O trema não me faz falta. Fico livre de apertar a tecla Shift e a tecla 6. Acho-o necessário, no entanto. Ele serve para indicar uma pronúncia diferenciada, e por mim ficaria. Quanto ao fim do acento agudo em platéia e em jóia, etc., fico em dúvida. Neste segundo caso, são muito poucas as palavras com essa terminação onde o som do “o” é fechado (“...ôia”). Se a gente se acostuma (falo das crianças) a pronunciar “...óia”, a chance de acertar é grande. O problema é com a acentuação do “e”, porque se um lado tínhamos idéia, assembléia, epopéia, odisséia, tínhamos do outro palavras com o “e” fechado, como ceia, meia, aldeia, baleia, etc. Nestes casos, a criança só vai saber a pronúncia certa quando ouvir a palavra sendo dita em voz alta.

O hífen é uma zona conturbada. Parece que a tendência da reforma foi eliminá-lo, e talvez em meio século ele esteja extirpado da língua. Acho uma pena. Não porque me incomode escrever contrarregra, cosseno, paraquedas, ferrovelho. Fica esquisito, mas a gente acaba acostumando. A questão é que eu, pelo menos, costumo usar informalmente o que chamo formalmente de “hífen evidenciador de sintagma”, o tracinho que serve como uma correntinha de clipes unindo um conjunto-de-palavras-que-ao-fim-e-ao-cabo-equivalem-a-uma-coisa-só. A língua inglesa faculta esse uso (ou, se não o faculta, os escritores usam sem pedir licença); Guimarães Rosa é um grande usuário deste belo processo. Normas gramaticais à parte, sinais como o hífen podem servir para ênfase literária. Não importa se o sujeito é um possível-aspirante-futuro-a-um-Jabuti-quem-sabe-um-Nobel ou se se trata, o que é mais possível, de um desses escrevinhadores-de-miçangas-verbais-que-reluzem-sem-ser-ouro. O que conta é que o recurso gráfico exista, que sua função seja compreendida, e que a gramática o deixe em paz, indo cuidar de questões mais sérias de infraestrutura.

1889) Contracapa de MP3 (29.3.2009)



& a compassividade do carrasco esperando o fim da última prece do condenado & em uma estação de trem nos confins nevoentos da Eternidade, Karl Marx e o coronel Aureliano Buendía trocam receitas de remédios para furúnculos & cada usuário de celular é uma mosca na teia de uma aranha de silício e diamantes & um trilhão de litros de água salobra estão enterrados no Piauí & você não viu, mas eu passei a noite na sombra da árvore, olhando a luz acesa & tão rápido quando o avançar das heras, comparado à sucessão das eras & tem uma hora da noite em que você não passa de um doido conversando com uma caveira e tendo apenas um coveiro por testemunha & sou um multiartista multimídia em carreira solo & uma batalha entre tigres e cachorros dálmatas numa montanha nevada & o ser humano é ao mesmo tempo o farol piscando desesperado e o navio que avança triunfal rumo aos rochedos & o que seria do capitalismo selvagem se não existissem as empregadas domésticas? & toda vez que eu decoro o calendário, chega janeiro e zera tudo & me disseram que os subúrbios do Cairo já estão chegando perto das Pirâmides, não dou dez anos para elas desaparecerem & ora, bastava misturar um canavial com uma parreira e engarrafar o resultado & o cifrão é uma nota musical que corresponde ao tilintar de uma moeda na mão de quem recebe & um país de gente com nomes oxítonos terminando em vogal, mas sonhando com sobrenomes cheios de K, W e Y & cuidado, o futuro é cheio de bifurcações mas lá na frente não tem retorno & Michelangelo, depois que um AVC o deixou mudo, discava números ao acaso e anotava num caderno o que ouvia & daqui a mil anos, só serão lidos os autores com nomes monossilábicos: Kant, Proust, Marx, Dick, Wells, Twain, Grass, King, Poe... & saites onívoros que devoram o HD do usuário, saites cortar-e-colar que postam fragmentos aleatórios colhidos no Google, saites que ao serem acessados adivinham e tocam sua música favorita, saites que capturam seus dados bancários e depositam um dólar só para mostrar onipotência & troco um CD de dupla caipira por uma caipirinha dupla & corro à frente do mastim de mandíbulas chamejantes como corre a tartaruga à frente de Aquiles & um balé de caranguejos na água fervente & um arlequim de alumínio com buzinas nos ouvidos, asas de inseto e molas nos sapatos, cantando “Honky Tonky Women” na porta de uma igreja evangélica desmoronada & Napoleão destroçando a Europa e aquela imensa família Bonaparte para sustentar & ser como um fóton, o mais veloz dos seres, que nem retarda nem acelera, imóvel no limite de si mesmo & vou reunir meus escritos em dois volumes em papel bíblia: “Obras Completas” e “Obras Incompletas” & é preciso ficar longe de vez em quando, pra se saber se tem saudade ou não & devagar com o andor, que o santo é de ouro maciço, mas quem carrega é de barro &

1888) A arte do duelo (28.3.2009)




Nos diários de sua convivência com Jorge Luís Borges, intitulados Borges, à pag. 223, Adolfo Bioy Casares conta a comparação feita pelo seu colega entre dois tipos de duelos praticados nos EUA no século 19 (ou na literatura do século 19, uma vez que os exemplos vêm de livros de Mark Twain e Julio Verne). 

O primeiro exemplo é o que Twain chama de “duelo à californiana”. Dois indivíduos se insultavam mutuamente e se juravam de morte. Quando se defrontavam, geralmente num “saloon”, o mais rápido puxava a arma primeiro e alvejava o outro, que também sacava a sua e se defendia da melhor maneira possível. Diz Borges: “As baixas, às vezes, não se contavam entre os duelistas”.

É o duelo tradicional que o filme de far-west refinou até produzir aquela cena clássica que na vida real terá ocorrido muito poucas vezes: os dois inimigos, frente a frente, na rua vazia (todo mundo está do lado de dentro, colado às janelas, espiando), caminham na direção um do outro. 

A sutileza deste tipo de duelo nasce da presunção de que quem puxa a arma primeiro está ameaçando o outro de morte, portanto o outro tem o direito de matar em legítima defesa. Cada um tem que esperar que o outro saque primeiro, e espera ser rápido o bastante para atirar (e acertar) primeiro.

O outro tipo, chamado por Julio Verne de “duelo à americana”, é travado no capítulo 21 de Da Terra à Lua, entre Barbicane e Nicholl. (Li o livro há 40 anos e francamente não recordo esta cena.) Borges diz que nunca viu menção a esse tipo de duelo em outros autores, e especula se não será uma invenção de Verne. 

Nesta modalidade, dois homens que se juram de morte embrenham-se num bosque, como caçadores, levando consigo armas, munição, mantimentos. Caçam-se por vários dias: “dormem, com muitas precauções, perseguem-se, evitam-se, despistam um ao outro, armam emboscadas até que um dos dois consegue surpreender o outro e matá-lo”.

É este último tipo de duelo que me parece, hoje, mais rico de possibilidades dramatúrgicas do que o velho face-a-face do faroeste. 

Basta lembrar Enemy at the Gates (2001), o filme de Jean-Jacques Annaud em que Jude Law e Ed Harris são dois atiradores de elite durante a II Guerra (um soviético, o outro nazista) que se perseguem mutuamente. 

Há também o curioso e um tanto excêntrico filme de Ridley Scott Os Duelistas, ambientado na época de Napoleão, em que Harvey Keitel e Keith Carradine são dois oficiais que se detestam e, sempre que se cruzam, às vezes com anos de intervalo, desafiam-se mutuamente para um duelo à espada.

O “duelo às claras”, o confronto clássico do faroeste, é rápido. Exige uma longa preparação, e uma tensão que se avoluma, mas tipicamente se resolve em alguns segundos. Somente alguns casos raros, como o famoso duelo no Curral OK, podem ser explorados em longas sequências. O duelo às escondidas, com seu jogo de gato e rato, suas alternativas, pode render filmes ou romances inteiros.