Quando essa pesquisa for feita, sugiro esses dois romances, que reli agora depois de muitos anos: A Cortina Negra (“The black curtain”) de William Irish (pseudônimo de Cornell Woolrich) e Morte Inglória (“To Dusty Death") de Hugh McCutcheon. Li ambos quando tinha uns 14 anos, comprados em sebos do Recife; reencontrei-os agora num sebo do Rio, sempre juntos.
Ambos começam com o protagonista voltando a si numa calçada, socorrido por algumas pessoas. Levou uma pancada na cabeça. Fica de pé, diz que está bem. Põe-se a andar e aí percebe que está vestindo uma roupa que desconhece, encontra-se numa zona desconhecida da cidade sem saber o que foi fazer ali, e não sabe o que lhe aconteceu nos últimos tempos.
Parece com aqueles testes de oficina literária, em que se dá um começo para cada escritor desenvolvê-lo ao seu modo.
Estes dois romances são histórias de amnésia, mas ao invés de começarem com o protagonista amnésico, começam no momento em que, devido à pancada, ele volta a lembrar quem é – mas sem saber o que lhe aconteceu quando perdeu a memória.
Em Cortina Negra, Frank Townsend volta a si para perceber que está desaparecido há um ano e meio, a esposa julga-se viúva e mudou de apartamento, e ele, provavelmente, cometeu um crime do qual não se recorda.
Em Morte Inglória, Richard Logan volta a si para perceber que está desaparecido há três semanas e provavelmente cometeu um crime do qual não se recorda.
Os dois protagonistas tentam reconstituir o que lhes aconteceu, sendo perseguidos pela polícia ou por bandidos, sendo abordados por pessoas que parecem conhecê-los por outro nome.
Uma classificação prévia de histórias assim as dividiria em histórias com personagens amnésicos (como o conhecido filme Amnésia de Christopher Nolan, com Guy Pearce), e histórias com personagens pós-amnésicos, como estes dois exemplos.
O personagem amnésico está em pleno torvelinho da perda da identidade, não reconhece ninguém, não sabe quem é, não sabe o que deve fazer; está totalmente no escuro. O personagem pós-amnésico conseguiu voltar para dentro de si próprio mas permanece com um buraco no passado, um espaço proibido, oculto por uma “cortina negra”.
Eu diria que essas histórias, que sempre existiram, encontraram uma ressonância especial na mente dos leitores norte-americanos dos anos 1930-40. Uma Grande Depressão econômica fez com que milhões de vidas fossem bruscamente partidas ao meio – um bancário vira um mendigo, um comerciante vira um marginal. Perdeu-se a identidade anterior, e a vida atual é um pesadelo de onde é impossível fugir, e onde são praticados atos que a identidade anterior não praticaria.