domingo, 30 de novembro de 2014

3672) O enigma da Esfinge (30.11.2014)



Todo mundo conhece o enigma que a Esfinge da mitologia grega propunha aos viajantes: “Qual o animal que de manhã caminha com quatro patas, ao meio-dia com duas, e com três quando anoitece?”.  Somente Édipo resolveu a charada, dizendo: “É o homem, que engatinha quando criança, ou seja, no amanhecer da vida, depois anda com duas pernas quando adulto, e quando velho se apóia num bastão”. 

Os comentaristas dos textos clássicos observaram vários aspectos sutis dessa lenda.  Não sei se observaram que a aparência física da Esfinge (busto de mulher, asas de águia, corpo de leão, cauda de serpente) induzia os desafiantes a imaginar um “animal” igualmente extraordinário e híbrido, quando na verdade a resposta era bem simples – o animal era ele próprio, o Homem.  Isto pode servir de metáfora à literatura fantástica, que nos propõe enigmas bizarros que, bem examinados, têm sempre como resposta o Homem, o ser humano que escreve, publica e lê essas histórias.  Somos nós, humilde e gloriosamente, o princípio e o fim de toda literatura.

Um segundo aspecto é que o enigma é apresentado no contexto da história de Édipo, que é inteligente o bastante para decifrar a charada da Esfinge mas não a sua própria história.  Édipo (que, sem o saber, matou o pai e casou com a própria mãe) se vê diante de um problema (o misterioso indivíduo cujos pecados causaram a peste que assola Tebas) e quando finalmente resolve encará-lo descobre que a resposta é ele mesmo.  O homem é ele, ele é o homem que provocou aquilo tudo.

Eu arriscaria uma terceira interpretação, desta vez de caráter ciência-ficcional. O animal de quatro patas exprime, na manhã da História, a origem animal do ser humano, o fato de que, como os outros bichos, ele começou se arrastando de quatro sobre a Terra. Evoluiu, ganhou postura ereta, destacou-se entre os primatas. Tornou-se o que é.  E agora estamos entrando no terceiro estágio, o estágio da “terceira perna”, quando pela primeira vez surge, em nossa evolução biológica, a presença de próteses, de complementos artificiais, de partes mecânicas. O homem torna-se ciborgue, torna-se um híbrido entre o biológico e o mecânico (ou o eletrônico).  Édipo, o Édipo de Sófocles, poderia dizer: “Em seu terceiro estágio, o homem terá o apoio de tecnologias artificiais extra-corpo, com as quais nunca tinha contado, mas esse elemento estranho à sua natureza biológica virá para ficar. Sem ele, o homem não conseguirá mais caminhar sozinho; sem ele, será incapaz de viver, e apesar de num primeiro momento julgar-se superior ao que fora ao meio-dia, a presença dessa muleta comprova apenas que ele está vivendo seu estágio final”.




sexta-feira, 28 de novembro de 2014

3671) As eleições no futuro (29.11.2014)


(foto: Niur)

Segundo Edgar Allan Poe, não existe nada codificado por uma mente humana que outra mente humana não possa descodificar.  Dizer que uma urna eletrônica é à prova de hackers é como dizer que um ônibus espacial é à prova de acidentes.  Mas não há dúvida de que a era vídeo-eletrônico-digital deu ao pessoal das teorias da conspiração um combustível em expansão proporcional à da Internet. Uma dessas manias é achar que tudo que é eletrônico está sendo manipulado, pelo simples fato de poder ser manipulado sem deixar rastros materiais visíveis.

Votação em urnas eletrônicas são uma coisa ainda muito vulnerável, muito rudimentar. Minha suposição é de que um dia em vez de Título Eleitoral, Identidade e CPF teremos uma combinação de chipes subcutâneos (turbinados com o auxílio de drogas injetáveis periódicas) que captarão todas as nossas reações a tudo que estivermos recebendo em bio-wifi: noticiário ou futebol, canais de música online, de notícia, de opinião... Será através dessa interface permanente que nos comunicaremos, recitando SMSs em voz baixa, fazendo transferências bancárias, criptofirmando documentos, autografando o reconhecedor-vocal de algum fã. 

Isto (vejam a sutileza!) irá compondo aos poucos nossos votos. Quando estivermos todos assim, não precisaremos mais votar.  Os candidatos disputarão o eleitorado apresentando um cartel de propostas, recursos, e assinalando (num mutirão de uma semana com sua equipe) suas respectivas opções em, sei lá, 1.423 itens fornecidos pela Gerência Eleitoral.  Os itens refletem todas as variáveis de comportamento da população que estão sendo captados via os mencionados chips, etc.  A soma de todas as nossas reações emocionais e instintivas ao longo do dia vai sendo computada (temos com isso um substancial desconto de Imposto de Renda) e constitui o nosso voto. 

Estaremos registrando o tempo todo nossas reações emocionais diante de leis, obras, decretos, pronunciamentos públicos.  Na verdade, estaremos votando 24 horas por dia, cumulativamente, sete dias por semana, e nos apresentaremos à Justiça Eleitoral para que seja emitido o código de barras relativo a nossa história política.  De posse dele, iremos apresentá-lo em nossa seção e zona, um código de barras onde estarão registradas todas as nossas simpatias, antipatias, concordâncias, discordâncias.  E na hora do voto, essa soma total de opiniões contraditórias (que nem de longe é consciente) será instantaneamente computada, resultando num voto válido. E, como os sertanejos dos velhos currais eleitorais nordestinos, estaremos votando sem nem sequer saber em quem.




3670) Tradução e anacronismo (28.11.2014)


(Ilustração: Vita Wells)

“A folhas tantas do Wilhelm Meister, descreve Goethe um piquenique e assim conclui: ‘Seria tudo muito mais romântico se não houvesse ao fundo uma carruagem’.  E como, para nós, não há nada mais romântico do que uma carruagem – que vontade de substituí-la, dizendo que ficaria muito mais romântico se não houvesse ali um automóvel! A ‘tradução’ na verdade seria um anacronismo, mas que fielmente traduziria a intenção e o sentimento do autor”.

A citação é de Mario Quintana, em seu livro Da Preguiça Como Método de Trabalho (1987). Quintana era tradutor, sim; trabalhou para a Editora Globo de Porto Alegre, que por muitos anos foi uma das melhores, senão a melhor editora do Brasil.  O poeta traduziu Virginia Woolf, Joseph Conrad, Balzac, Proust, Aldous Huxley, Guy de Maupassant... 

Se bem que da longa lista de suas traduções que acabo de consultar (na Poesia Completa da Aguilar) lembro ter lido apenas os Romances e Contos de Voltaire (1951) e O Tio Prodigioso (The Fabulous Clipjoint) de Fredric Brown (1951).

No exemplo de Quintana, o autor indica, e o tradutor percebe, que o efeito pretendido é de estranhamento, mas a passagem do tempo dilui esse efeito porque confere a todos os elementos da cena (o piquenique, a carruagem) uma aura uniforme de romantismo.  A carruagem, que seria tão prosaica na época quanto o automóvel é hoje, perde esse poder de contraste. A intuição de Quintana é precisa, e a sua queixa é compreensível: para reproduzir o efeito pretendido pelo autor seria preciso recorrer talvez a um anacronismo, mas a liberdade de um tradutor (pelo menos numa obra com esse perfil) não deve ir tão longe.

É uma situação meio sem saída, porque se no original diz carruagem, é preciso dizer carruagem na tradução.  Uns leitores perceberão o efeito, e o próprio texto insiste nele; outros terão algum direito de estranhá-lo ou de mal percebê-lo.  

Já vi casos meio extremos em que o tradutor, ansioso para salvar cada migalha, pespega um asterisco e um comentário ao pé da página.  Pra mim, isso só se justifica em edições especiais, comentadas, anotadas, de obras de importância histórica.  Poderia até ser o caso do Wilhelm Meister hoje; mas num romance contemporâneo ou de menor prestígio (aqueles casos em que a história é mais importante do que a fama do autor), para que quebrar o fluxo da leitura a toda hora? Para que “dar pausa no DVD” e explicar esse nível de detalhe?  

Quem está entrando num livro pela primeira vez tem mais interesse (acho) em preservar a fluidez espontânea da história, o percurso sem muitas interrupções (mesmo informativas), deixar as anotações apenas para detalhes realmente indispensáveis.





quinta-feira, 27 de novembro de 2014

3669) O Inferno é um rehab (27.11.2014)



(ilustração de William Blake para a Divina Comédia de Dante)

Numa entrevista concedida certa vez a Geneton Moraes Neto, Ariano Suassuna falou sobre o assassinato de seu pai João Suassuna (morto de emboscada numa rua do Rio, por um pistoleiro a mando de líderes políticos adversários).  Sabendo que estava jurado de morte, João deixou uma longa carta para a esposa e os filhos, dizendo que era inocente do crime de que os inimigos o acusavam (de ter ordenado ou incentivado o assassinato do governador João Pessoa), e dizendo: “Se eu for morto, não se vinguem. Não se tornem assassinos por minha causa.”

O assassino foi condenado a quatro anos e cumpriu dois; viveu até uma certa idade, e houve uma época em que morou a poucos quilômetros de onde viviam a viúva e os filhos da vítima, a esta altura todos adultos. Inquirido pelo repórter, Ariano admitiu que passou a vida dividido entre essas duas forças opostas, a possibilidade de vingança (e, de acordo com um certo código sertanejo, a obrigatoriedade moral da vingança), e do lado oposto a serenidade do pai e a firmeza da mãe.  E ele diz a certa altura: “Eu já cheguei a rezar por ele”.  Geneton pergunta: “E o que falta para perdoá-lo?” Ele diz: “Sentir por ele o mesmo que sinto pela minha esposa, meus filhos, meus amigos”.

Ariano tinha essa angústia moral dostoievskiana diante da face torva do mundo. Diz ele na entrevista que considera o inferno como uma parte mais profunda do purgatório, um lugar de expiação, onde as almas sofrem uma purificação pelo sofrimento e de onde um dia podem emergir, redimidas.  “Eu me recuso a acreditar na eternidade do inferno,” diz ele na entrevista. “Isso seria um absoluto, e absoluto só Deus. E hoje, depois de pensar muito anos, eu diria que estou me aproximando do perdão, porque se dependesse de mim a permanência dele no inferno, eu diria: pode sair.”

Tenho uma formatação mental diferente, não acredito em inferno nem purgatório. Uso esses conceitos como parâmetros, porque são da nossa cultura e determinam as ações de muita gente. Sempre achei que, nesses termos, quando o cara vai para o inferno é uma queda sem volta, mas entendo também essa concepção de um inferno apenas temporário, um purgatório para as almas mais encardidas. O inferno é o “rehab” das almas recalcitrantes.  E me comove pensar que, pelo menos em vida, as vítimas sofrem mais do que os criminosos, porque estes, muitas vezes (assassinos, estupradores, etc.), não se arrependem, não estão nem aí.  Dão risada.  São as vítimas (algumas delas) que sofrem por eles.  Sofrem por terem sido maculadas pelo Mal, purgam dentro de si sua tragédia, acabam se purificando e se engrandecendo para poder neutralizar o Mal que as tocou.





quarta-feira, 26 de novembro de 2014

3668) "Teia de Cordéis" (26.11.2014)



Este catálogo-livro foi editado pela Fundação de Cultura Cidade do Recife (2013) para acompanhar a exposição homônima de folhetos de cordel, que esteve em cartaz de março de 2011 a maio de 2012, no Museu de Arte Popular (MAP) do Recife.  A exposição foi dividida em duas partes: “Cordéis Portugueses” (da Coleção de Arnaldo Saraiva) e “Cordéis Brasileiros” (da coleção de Maria Alice Amorim), com curadoria dos dois pesquisadores para a primeira parte, e de Alice Amorim para a segunda. Cabe aos dois, também, a redação dos textos do volume, que examinam e comentam o material exposto.

O livro, com 236 páginas, é um pequeno primor de projeto gráfico, com reproduções de mais de 240 capas, folhas de rosto ou páginas avulsas de cordéis, incluindo também algumas das chamadas “folhas volantes” com poemas impressos de um só lado, usadas tanto lá quanto cá. A reprodução de capas de cordéis, quando é muito boa (como neste caso) revela com clareza as cores exatas das tintas, sua tendência ou não a borrar, a textura do papel, sua aspereza ou lisura, sua tendência a escurecer e se esfarelar nas bordas.  As publicações portuguesas aqui reproduzidas mostram com perfeição, em obras dos anos 1600 ou 1700, as manchas e ondulações do original, a finura das capas deixando transparecer o que há impresso pelo lado de dentro, o desalinhamento eventual dos tipos.  Tudo isso conta; tudo isso revela o trabalho e as condições de trabalho de quem os produzia.  O aspecto editorial dos folhetos é tão rico e fascinante quanto o seu aspecto propriamente literário.

E há a questão recorrente do quanto o cordel brasileiro é uma mera expansão do corpus temático do português. A filiação dos dois me parece clara, e clara também a descoberta de novos territórios que aqui se fez, até porque nosso cordel atual vive numa sociedade mais complexa em possíveis temas, em possíveis abordagens, em novas atitudes mentais e criativas que seriam impensáveis num Portugal (e mesmo num Brasil) de 1800. Se Portugal como país é o caso de uma sociedade que deu origem a outra maior e mais complexa que ela mesma, acho que o mesmo pode-se dizer de sua poesia popular impressa, o que não a desmerece, pelo contrário.  Ali estão as sementes, o DNA: o restante se deve à evolução independente que a criatura tomou, sua força de falar com voz própria, de recriar com uma estética própria uma poética e uma tecnologia editorial herdadas.  Essa justaposição do cordel lusitano e brasileiro mostra a personalidade distinta de cada um e a criatividade de ambos, a decantação poética que ambos produziam e produzem no meio social que os escreve, decora e recita.


terça-feira, 25 de novembro de 2014

3667) O retrato com Vovó (25.11.2014)


Ninguém dormiu direito naquela noite, era um aperreio de gente chorando pelos cantos, a casa toda acesa, gente indo e voltando, as pessoas cochichando e pisando na ponta dos pés. E nós três no quarto, cada um na sua caminha, tentando escutar tudo através da porta fechada. De vez em quando um da gente chorava, quando ouvia mamãe chorando. Papai ia e vinha, dando instruções, com aquela voz mais baixa e mais grossa, que não dava vontade de chegar muito perto dele. O cansaço era grande e eu pelo menos acabei cochilando.

De manhã ninguém foi para o colégio, mas nem isso adiantou, eu preferiria ter um dia igual aos outros, o café com cuscuz e tapioca, a farda, a bolsa, o ônibus, o empurra-empurra no pátio, as turmas formando sob os berros do fiscal (“Menores na frente! Maiores atrás! Braço estendido, tocando com a mão esquerda no ombro do companheiro à frente!”), e depois as turmas sendo liberadas de uma em uma, marchando rumo à sala de aula que cheirava a óleo de peroba.

Não foi nada disso, passou a hora da aula e a gente não teve coragem de levantar da cama. Dava para sentir o cheiro do incenso aceso no quarto ao lado. Minha tia girou a chave na fechadura, entrou e mandou a gente se aprontar. Lavamos o rosto e sentamos na mesa da cozinha. Lá de fora vinha um barulho de vozes de homens entrando em casa, carregando alguma coisa comprida e pesada, meu pai bradando instruções.  Tomamos café com pão-com-manteiga e só, e minha tia nos levou de volta para o quarto. Nenhum da gente teve coragem de perguntar nada.

Mais tarde ela voltou. Fez cada um de nós se vestir como em dia de missa, penteou os cabelos da gente com um pente molhado na torneira, ajudou a dar o laço no sapato, fiscalizou as orelhas e mandou esperar.  Esperamos. Vieram e nos levaram para a sala, que cheirava a flores.

O caixão estava pronto, do lado oposto à janela. Na parede maior tinham afastado os outros móveis e Vovó estava com o vestido que usava no Natal, sentada na poltrona encostada à parede, com as mãos pousadas no colo, o retrato de papai e mamãe por cima dela. Tinha os olhos fechados e o rosto pintado de maquilagem, estranho, porque há muito tempo que ela não se pintava mais. Meus irmãos ficaram em pé de um lado, eu, o mais velho, fiquei do outro.  No meio da sala, o fotógrafo, Seu Sóter, amigo de papai, mandou que a gente levantasse mais o rosto. Empunhou a máquina, ergueu a lâmpada, e um instante antes do relâmpago eu virei o rosto para vovó, e vejam o que é criança, juro que ela abriu os olhos, piscou pra mim aquele olhinho bem azul dela e disse baixinho: “Deixei um livro pra você embaixo da imagem de São Jorge.” E não é que eu achei?!




domingo, 23 de novembro de 2014

3666) Gregory Rabassa (23.11.2014)


Terminei de ler este livro pequeno, leve, escrito com a pena num idioma e a tinta em outro.  São memórias e relatos de Gregory Rabassa, que traduziu para o inglês obras como Rayuela de Julio Cortázar, Cem anos de solidão de Garcia Márquez, Brás Cubas de Machado, A Maçã no Escuro de Clarice e Avalovara de Osman Lins, além de outros títulos de peso. A capa cita uma frase de Márquez chamando Rabassa “o melhor escritor latino-americano no idioma inglês”.  Harry Ingham, um amigo meu da Califórnia, dizia que tinha vontade de aprender a escrever em espanhol só para ser traduzido ao inglês por Rabassa.

O livro é If This Be Treason – Translation and its Discontents – a Memoir (NY: New Directions, 2005). Tem uma parte introdutória de umas 50 páginas onde ele fala de si, relata sua carreira, etc. Na segunda parte, cada capítulo é sobre um autor que ele traduziu; são 31 capítulos.  Rabassa discute detalhes do processo de tradução, mas, como o livro se dirige ao leitor dos EUA, a maior parte dos comentários é para dar uma idéia de quem são esses autores nos seus países de origem.  Assim como eu não tinha idéia de quem fossem Demétrio Aguilera-Malta ou Luís Rafael Sanchez, deve haver quem não conheça Vinicius de Moraes ou Dalton Trevisan.

Rabassa tem ascendência latina, já que seu pai era cubano, e o estudo do espanhol (e do português, mais adiante) não foi uma mera estratégia de escolha de nicho acadêmico. Teve um papel afetivo, era um alargamento de um universo cultural que já lhe pertencia. Ele acabou traduzindo por necessidade, e menciona a revista literária Odyssey, da qual participou bem jovem, depois de formado.  A revista (que só produziu seis números) era de amigos seus, e seu trabalho consistia em ir para as bibliotecas remexer nas revistas literárias em espanhol e ver o que estava rolando de interessante.  Dessa maneira, disse ele, a revista publicou textos de numerosos autores desconhecidos àquela altura mas que depois se tornariam grandes, como Nélida Piñon.

Um dos comentários mais interessantes dele é sobre o seu hábito de traduzir um livro à medida que lê. Em vez de ler tudo antes, anotar, pesquisar, e só depois sentar para digitar o texto, ele vai lendo e digitando, lendo e digitando.  Eu já traduzi assim, mas não dá certo com qualquer livro; para alguns, é preciso saber de antemão para onde está indo a narrativa.  Mas ele traduziu assim alguns dos livros mais complexos e densos de nossa literatura, e todos os trechos que conferi me parecem muito bons. Talvez a identificação de pensamento com o autor (como ele tinha com Cortázar, p. ex.) conte pontos nesse processo.




sábado, 22 de novembro de 2014

3665) Gritos na noite (22.11.2014)



(foto: Diego Martins)

Quando vai se reduzindo o bradar das cornetas e das buzinas, o espoucar dos fogos, o estalo dos rojões, uma brecha de silêncio espreita o sono noturno da cidade, onde nunca existe silêncio completo. E aquele rumor distante então retorna, como o sol brilhando por trás do céu enevoado. Aquele som antigo que nos corrói a alma como uma corrente de água gelada. Quantos já foram embora daqui por não aguentar mais o alarido desse sofrimento anônimo e sem rosto. Ruas inteiras de casas fechadas, prédios abandonados com um X de tábuas em cada janela, bairros onde o mato já toma conta. Rumaram todos com sacos às costas ou malas na cabeça para a rodoviária, para a estação do trem ou para a estrada apinhada de carroças, migrando, fugindo, deixando para trás a cidade das noites insones, das noites atravessadas com o coração em frangalhos e os ouvidos tapados com algodão inútil.

Alguém dirá: Ir embora?! Mas que preço barato a se pagar, em troca da paz, do silêncio, do sono de janelas escancaradas, do passeio a pé madrugada afora. Sim, mas aqui só ficam mesmo os que já nasceram ouvindo esses gritos, e que, por mais que chorassem por eles e fossem punidos por não suportá-los, acabaram aceitando-os, tornando-se deles, tornando-os parte de si.

Eles variam. Ou é uma voz de homem sofrendo uma dor intensa ou uma voz de mulher idosa lamentando uma dor antiga. Crianças infelicitadas por gente sem coração. Uma multidão, durante horas, rugindo de terror diante de algo gigantesco e indecifrável, ou a voz abafada, lamuriosa, de alguém que pedia, pedia uma coisa, uma coisa que ninguém no mundo tinha condições de lhe dar.  Cada noite um contracanto e um cânon de vozes diferentes, cada qual se erguendo na escuridão como uma navalha, cortando devagar a carne da alma.

Quem grita?  Ninguém sabe. Antigamente mal se erguia um grito desses e uma expedição saía, avenida afora, com lanternas e cordas, prece de exorcismo nos lábios e autorização judicial nas mãos. O grito, como um arco-íris ou um horizonte, nunca estava no local quando eles chegavam.  Como se sua aproximação empurrasse para longe essas almas que uivam, essas presenças penadas que reclamam alguma coisa sem palavras e sem mensagem, um resíduo sonoro de algo que deixou de ser humano, virou esse som sem corpo, como um vento que se esgueira através de uma fenda e produz um silvo, um chacoalho, um rugido, uma vibração física causada por algo que não é físico.  Foi assim que os cientistas nos explicaram tudo, antes de guardarem os óculos, fecharem a pasta, apertarem nossa mão e voltarem para o helicóptero que se ergueu no ar com seu ruído ensurdecedor e os levou embora também. 



sexta-feira, 21 de novembro de 2014

3664) Na Biblioteca (21.11.2014)



Não costumo encher esta coluna com relatos autobiográficos. Isto aqui não é uma coluna social, embora tenha algo de coluna socialista. Pode ser vista também como uma coluna vertebral ou espinha dorsal da memória, em que os elementos vão se encaixando uns aos outros como vértebras, ou como vagões de trem. Não importa o símile, desde que o resultado seja longo, firmemente encaixado, e flexível.

Resumindo: dias atrás estive em Belo Horizonte para fazer uma palestra no Circuito Literário da Praça da Liberdade. O detalhe é que a palestra foi na Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa, que fica ao lado do Palácio da Liberdade.  Com isto, retornei depois de 43 anos àquele edifício que teve um papel crucial na minha formação como leitor.  BH é uma das quatro cidades onde morei pra valer. As outras são Campina Grande, claro, Salvador e este Rio de Janeiro em cuja terceira margem vivo hoje a circular minha canoa.  Vivi em BH dos 19 aos 21 anos, estudando cinema na Universidade Católica (naquele prédio do lado oposto do Palácio), e morando numa pensão a 50 metros dali (não existe mais: fotografei o prédio imponente com que a gentrificação implacável a sepultou no solo).

Minhas manhãs e tardes eram passadas naquela biblioteca de enormidade borgiana (e eu ainda não conhecia Borges!).  Foi lá que tirei por empréstimo os dois primeiros livros que li em inglês, The Time Machine de H. G. Wells e The Martian Chronicles de Ray Bradbury.  Era lá que eu decifrava, linha por linha, as críticas do Cahiers do Cinéma. Foi lá que eu li (olha só que biblioteca democrática, em pleno governo Médici) Os Protocolos dos Sábios de Sião, o Minha Luta de Adolf Hitler, as Origens da Revolução Russa de Kochan, Trotsky: o Profeta Armado de Isaac Deutscher.  Lembro que nessa estante havia dois outros livros de Trotsky: Stálin, com umas 500 páginas, e Os Crimes de Stálin com 800.


Fui embora de BH e a biblioteca ficou como o quarto de Manuel Bandeira, “intacto, suspenso no ar”. Aparece de maneira fugaz no meu conto “Exame da Obra de Giuseppe Sanz”, no livro Mundo Fantasmo (que deu seu nome a este blog).  Hoje, à sua entrada, veem-se as estátuas do grupo do Encontro Marcado: Fernando Sabino, Oto Lara Resende, Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos. Era um pouco desse espírito que me iluminava, junto a Lincoln Cunha, Elizeu Ewald, Régis Frota, Paulo Sérgio Braz, Geraldo Pires, João Antonio de Paula e tantos outros amigos que o vento leva e o tempo traz de volta.  Em sua honra, tomarei um café e comerei um doce-de-leite em forma de losango, em alguma madrugada silenciosa e aberta para o futuro. 


quinta-feira, 20 de novembro de 2014

3663) Conto curto (20.11.2014)




(foto: Rui Palha)

Imagine uma cidade à noite, moderna, mas centrão velho decadente de alguma capital européia.  Centrão perto do cais do porto, onde esta rua aqui está deserta e na próxima tem dez bares cheios.  E imagine um sujeito andando apressado, não como quem foge de alguém, ou está com medo que alguém surja de uma sombra e o esfaqueie; mas como alguém que está um pouco atrasado para um compromisso mas está tranquilo, já recalculou seu tempo e sabe que naquele passo chegará na boa.  O homem anda, passa por arcadas vistas de baixo para cima, cruza pela faixa um asfalto molhado e brilhante, atravessa becos onde só se veem latas de lixo e o onipresente gato filmando tudo com os olhos.

O homem está avançando pela rua e agora está sendo visto de dentro de uma sala no quarto andar de um edifício vetusto e exuberante, como um hotel decandente para aristocratas que há vinte anos não consegue reformar suas instalações.  São dois homens de roupa escura e uma mulher com uma taça na mão.  Lá vem, diz um deles, atraindo a atenção dos dois, que conversavam em voz baixa.  O homem junto à janela tem os olhos de um demônio e o cavanhaque de um impostor.  O homem mais jovem é enorme, tem a barba por fazer, exibe um coldre-de-arma em diagonal no peito.  A mulher, bem, a mulher é a única coisa que eles dois enxergam, e essa foi a tragédia dos três.

O homem veio, a porta do edifício foi aberta, ele subiu os quatro andares, bateu à porta.  Abriram e ele se deparou com o trio: a mulher sentada bebericando seu gimlet, o homem mais velho de braços cruzados junto à janela, o grandão armado fechando a porta às suas costas.  Ele cambaleou, caiu de joelhos no meio da sala e recitou um soneto de Shakespeare.  Foi percorrido por um estremeção, tombou, e pareceu desacordado por algum tempo.

“Recebeu o implante dez anos atrás: este endereço, o texto, tudo", diz o homem mais velho.  "Mora a seis mil km daqui, e gastou tudo que tinha para cumprir essa missão sem sentido que lhe impusemos.”  O recém-chegado dormia, ressonava sonoro e largadão. O homem armado estava perplexo. “É hipnotismo?”  “Não,” disse o outro, “é uma recriação high-tech disso. Funciona com senhas.”  “Números?”  “Não,” foi a mulher quem respondeu. “Palavras.”  Virou-se para o mais velho e disse: “Vercingetórix em Mohenjo Daro”.  O rosto dele amarelou e ficou tão artificial quanto o cavanhaque.  Ela disse ao outro: “Weltanschauung no Seridó”.  O homem desabou, fulminado. Ela os revistou, pegou tudo que precisava, inclusive do homem que dormia.  Olhou bem para o rosto dele.  “Dez anos e não mudou nada,” pensou ela, “e ele dizia mesmo que iria até o fim do mundo até me encontrar”.




quarta-feira, 19 de novembro de 2014

3662) Dicionário Aldebarã VIII (19.11.2014)



O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta, e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Canflas”: Cavernas com entradas em pontos diferentes, que servem de túnel e de atalho para os camponeses.  

“Domarb”: Rito de passagem para rapazes adolescentes, envolvendo pescaria, jejum e anamnese.  

“Sancros”: Imagens humanas como ex-votos, feitas por artesãos anônimos, e entregues a qualquer pessoa que tenha um rosto parecido com aquele.  

“Ampressim”: Prato de carne cozida com frutas, típico do inverno, com centenas de variantes.  

“Marlotch”: Criatura sobrenatural, espécie de tubarão que nada na terra, cruzando o chão sem furá-lo.

“Carandoley”: Dança folclórica de migrantes, sempre dramatizando cenas e ações de sua cultura que os locais são incapazes de compreender.  

“Perenides”:  Fontes de água gasosa que só começam a jorrar quando uma pessoa se aproxima.  

“Galfeiras”: Cestos de vime interligados, feitos de módulos conjugáveis, para levar frutas, flores, etc.  

“Mintales”: Próteses decorativas e trocáveis, para ajudar e divertir crianças que perderam membros na guerra.  

“Alanturas”: Espécie de lagartixa doméstica, muito rara, que se diz ter poderes proféticos e precisa ter seus trajetos pela casa acompanhados e compreendidos. 

“Marças”: Almôndegas apimentadas surgidas de uma tradição de comidas para afugentar pedintes importunos.  

“Nanilhos”: Combinações de anéis de acordo com o estado de espírito da pessoa naquela ocasião social específica (festa, velório, etc.).  

“Gázires”: Aves de quintal, com plumagem ampla, com variados padrões em preto e branco.  

“Trassal”: Colares com retratos de pessoas queridas, usados nas ocasiões festivas de encontros familiares.

“Cardenni”: Carteiros itinerantes que em cada casa entregam encomendas e recebem outras para entregar mais adiante. 

“Ancozul”: Lugar imaginário e utópico usado por redução-ao-absurdo para criticar o presente.  

“Varmenes”: Indícios inconscientes que uma pessoa dá sobre si mesma, e que todos percebem mas não comentam. 

“Tirvos”: Caricaturas em verso que os convivas improvisam uns sobre os outros na hora dos brindes pós-ceia. 

“Peljo”: Instrumento de metal multi-uso doméstico, para o qual sempre se tenta descobrir novas utilidades.  

“Dariones”: Condecorações que os civis se atribuem por feitos de interesse coletivo.  

“Trezun”: Divindade que em cada situação de crise encarna ao mesmo tempo os dois extremos opostos.




terça-feira, 18 de novembro de 2014

3661) A Vida e os Tempos de Valdemar Pompéia (18.11.2014)



Cap. 1 – De como Valdemar ficou devendo dinheiro à galera da sinuca, e eles o ameaçaram de uma surra. Cap. 2 – De como ele e dois amigos emboscaram o líder dos marginais e deram a surra nele próprio. Cap. 3 – De como no dia seguinte ele se gabou na cidade inteira. Cap. 4 – De como na terceira noite o sujeito retornou na companhia de mais cinco, todos armados, deu uma surra nele, amarrou-o na linha do trem, pela qual deveria passar um trem daí a meia hora, e se afastaram, e ele ficou atado sobre os dormentes, pensando: “É, agora fudeu.”

Cap. 5 – De como ele, com tempo para pensar, lembrou suas leituras de ocultismo e encantações mágicas.  Cap. 6 - De como ele ficou endividado com a galera da sinuca justamente por ter tentado clonagem alquímica de alguns cordões de ouro e relógios Rolex, que acabaram virando alumínio. Cap. 7 – De como no meio daquela babel de irrelevâncias havia fórmulas que funcionavam mesmo, e não é que Valdemar pronunciou uma delas, em autêntico desespero de causa, seis minutos antes que o trem apontasse no horizonte visível.

Cap. 8 -  De como esse encantamento é um string de sensações, palavras, imagens visuais, cheiros, etc., uma espécie de sistema numérico de Funes, só que sinestésico, incluindo como “números” (que ele deve receber e reproduzir mentalmente) notas musicais, frases inteiras, aromas, cores, padrões geométricos... Enfim.  Cap. 9 - De como, mercê desse recurso, ele conseguiu concentrar sua mente-de-baixo (liberada da vigilância da mente-de-cima, que está entretida com o ping-pong sinestésico) concentrou suas forças e retardou o trem. Mesmo. 

Cap. 10 – De como anos devem ter se passado, porque onde havia um gramado ao longo da ferrovia existem agora árvores totalmente crescidas, ele vê a uma certa distância uma agora estrada por onde agora passam automóveis, e, do lado oposto dos trilhos, o muro alto de uma casa; ele não entende; sabe apenas que está detendo o trem, está impedindo que ele se aproxime; que na linha férrea o Tempo está parado, ou pelo menos avança a passo de caracol, enquanto em redor dela o tempo flui normalmente.  Cap. 11 – De como um dia dois operários estão consertando um dormente perto dos pés dele (sem vê-lo, claro) e um deles menciona: “o Natal é na semana que vem”; e vão embora e ele se pergunta: “Sim... mas Natal de que ano?”  Nunca terá resposta.  Cap. 12 –  De como Valdemar, atado aos dormentes, vê passar minuto a minuto, ano após ano, o filme do futuro alheio, e resolve se consolar com isso da impossibilidade de um futuro seu, porque sendo invisível não há quem o liberte, mas quando encher o saco é só liberar o trem.


domingo, 16 de novembro de 2014

3660) Ser antologista (16.11.2014)


Ser antologista é viver a Escolha de Sofia de ter em mãos três ou quatro contos parecidos, de autores igualmente importantes e/ou simpáticos (às vezes amigos pessoais do antologista), e saber que só vai caber um no livro, porque se incluísse todos o fato de terem tantos elementos em comum iria apenas empobrecê-los mutuamente aos olhos do leitor.


Ser antologista é planejar um volume gigantesco de 700 páginas, trabalhar nele durante um ano, e depois ver que os problemas burocráticos, financeiros e jurídicos reduziram essa “antologia definitiva do gênero” a umas meras 210 páginas e olhe lá.


Ser antologista é, depois do livro lançado e elogiado, descobrir por acaso um conto que se descoberto antes teria virado a cereja-do-bolo, mas agora é tarde, o bolo já foi ao forno e de lá à mesa.


Ser antologista é ter a obscura honra de ter sido o responsável pela primeira publicação no Brasil de um cara que será grande no futuro, e achar que isso é uma pequena glória que compensa algum pequeno fracasso.


Ser antologista é conceber uma antologia temática em torno de quatro contos “essenciais”, passar meses escolhendo as dez ou doze histórias “acessórias”, e terminar fazendo o livro somente com as acessórias, porque uma das essenciais o autor não pôde liberar, outra a tradução ficou horrível e não dava tempo refazer tudo, outra os herdeiros estavam em conflito e não liberaram e outra, relida agora 40 anos depois da primeira leitura, revelou-se não tão essencial assim.


Ser antologista é escolher e republicar uma história escrita há mais de um século, e descobrir que esta é a primeira vez em que ela foi incluída numa antologia.


Ser antologista é passar meses à procura de uma história que use uma abordagem qualquer do tema, não encontrá-la, e depois de jogar-a-toalha nessa busca achar uma história perfeita, de um desconhecido, lida por acaso numa revista quando você pernoitou na casa de amigos e aquela revista era a única coisa pra ler antes de dormir.


Ser antologista é ter a sua mente e sua visão do mundo modificadas aos 10 anos de idade, pela leitura de um conto, e aos 50 anos incluir esse conto numa antologia, e ver a cara de espanto do editor, quando este sugere tirar esse conto porque o livro “já está muito grosso”, e você responde, com a brusquidão de um menino de 10 anos: “Só passando por cima do meu cadáver”.

Ser antologista é ouvir seu editor dizer que finalmente localizou os herdeiros de um autor obscuro, descobriu que ele ainda está vivo, e que na sua última semana de vida, aos 100 anos de idade, ele recebeu a notícia de que um conto dele ia ser publicado por uma editora do Rio de Janeiro.









sábado, 15 de novembro de 2014

3659) Ele será (15.11.2014)


Ele será parido e paparicado por uma sacerdotisa ou princesa de não-sei-que clã. Será a promessa messiânica da futura ponta de um iceberg heráldico. Vai brotar num mar de lama e esqualos, onde os brasões se empurram disputando espaço à luz da História. Ele nascerá infante, vermelho, franzido, berrante, friorento e finalmente aconchegado. Nada o distingue dos outros, afora o sobrenome, e por causa deste será visto como um prodígio.

 

Ele será treinado nas artes, nas ciências, nas linguagens, nas cerimônias. Será o ponto focal da herança de mil técnicas remotas que não se pode permitir que se percam, e que têm que ser transmitidas a cada herdeiro, a cada delfim, a cada primogênito que um dia se assentará no trono e despachará com os ministros da corte. Quando se formar nele a noção do “Eu”, formar-se-á conjuntamente a de cumprir uma Missão, a de desempenhar um Papel.

 

Ele será festejado, ao chegar, com girândolas e orquestras. Será coroado, condecorado, benzido, aspergido, aclamado por entre batalhões em trajes de gala e dignitários de cinco continentes, comparecerá a missas e cultos, descerrará placas comemorativas, partirá fitas simbólicas, comandará banquetes e coquetéis.  É como se o mundo ocidental inteiro estivesse vendo, estivesse acompanhando, estivesse sabendo em tempo real o que ele realiza.  Voltará para o hotel cercado de seguranças. A luz se apagará.  Depois que a luz se apaga, todos os travesseiros são iguais.

 

Ele reinará com uma mão de ferro e uma mão de ouro.  Empunhará a caneta que prende e que solta, a cruz que profere bênçãos e excomunhões, a espada que sagra cavaleiros e decapita traidores.  E se transformará  (foi este o mundo que nos coube, por castigo ou prêmio) num especialista nas artes de vender e de comprar. O poder é isto, pensará ele, ser capaz de examinar vidas alheias, deslizes alheios, e ser capaz de condená-los sem nada sentir. O Poder é poder estar do lado de fora de tudo: “sei o que vai acontecer mas não tenho nada a ver com o fato de que uma coisa assim aconteça.”

 
Ele será venerado, mas como o mero portador do anel mágico, o mero detentor do gene certo, o mero realizador da profecia alheia.  Como todo ator, será amado ou odiado pelo personagem que recebeu, e o terá vivido com tal verdade que aceitará com equanimidade tanto a idolatria quanto o repúdio alheio. Ele será ungido e canonizado após a morte, sofrerá calúnias benignas inspiradas pelo ardor dos seus seguidores, será objeto de um culto que desprezaria quando vivo, e receberá a duvidosa imortalidade das páginas da História, das lendas apócrifas, dos prodígios sem comprovação.

3658) grandesertão.br (14.11.2014)


Na bibliografia enorme sobre Guimarães Rosa, tem muita coisa preciosa e muita coisa irrelevante.  A maldição de um grande autor é virar um cômodo pretexto para trabalhos de estudiosos meio indolentes, que têm preguiça de ter idéias originais, e estudam os autores mais famosos porque sabem que o tema é nobre e conta pontos, a bibliografia é vasta, e a esta altura ninguém espera grandes novidades a respeito.

 

Willi Bolle é o autor de grandesertão.br, assim mesmo em minúsculas como num nome de saite (Editoras Duas Cidades / 7Letras, 2004).  É uma dessas investigações minuciosas que dão gosto, porque é como se o autor relesse o livro inteiro para nós, descobrindo, destacando, reinterpretando.  A tese principal de Bolle é de que o romance de Rosa é um romance de formação do Brasil.  A história de Riobaldo vale como uma alegoria ou uma ilustração prática, rica, variada, minuciosa e nítida, da formação da nação brasileira que temos, com suas qualidades e defeitos. 

 

É uma tese detalhadamente exemplificada e argumentada.  O sistema jagunço (o exercício da força das armas, para afirmar e legitimar o poder político e econômico) está no cerne da nossa formação. Riobaldo, um homem velho que no fim da vida reconta sua história, tenta entender seu próprio percurso, justificar suas ações, e livrar-se um pouco das culpas que carrega, das muitas mortes que praticou e da cegueira que o afastou de Diadorim.

 

Bolle examina o conflito entre discurso erudito e linguagem popular, e contrasta as abordagens de Euclides em Os Sertões (o intelectual que glorifica o povo, mas não lhe dá voz) e de Rosa, que dá voz ao povo procurando a síntese entre a sabedoria tradicional e a cultura livresca. Bolle observa que o pacto com o Diabo nas Veredas Mortas é “uma representação criptografada da modernização do Brasil”.  Quando Riobaldo diz, referindo-se ao seu trato com o Demônio: “Trato? Mas trato de iguais com iguais. Primeiro, era eu que dava a ordem”, isso reflete os pactos sociais brasileiros, uma “retórica do faz de conta”, em que as duas partes (elites e povo) são supostamente iguais em direitos, mas é uma delas que manda.  Ecoando a famosa frase de Orwell na Revolução dos Bichos: “Todos os bichos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros”.

 
Riobaldo é sempre visto como o jagunço vivendo aventuras guerreiras e uma história de amor, mas Bolle o recoloca com clareza na sua posição final de fazendeiro, dono de terras herdadas do pai biológico, alguém que fez carreira dentro do sistema jagunço e de empregado tornou-se patrão. Para isso, ele faz um sacrifício: ele é “um homem que deixou morrer o grande amor de sua vida”.
 

3657) O balão de Dumont (13.11.2014)


Li numa matéria sobre Santos Dumont que o seu quarto balão, chamado (numa contagem descontraidamente brasileira) “no 3” se destacou pelo fato de ter sido o primeiro que se elevou com gás de iluminação, e o primeiro para o qual foi construído um hangar.   O gás de iluminação substituía o hidrogênio, que até então era o gás mais utilizado para inflar os balões da época.   O vôo foi realizado no dia 13 de novembro de 1899 – o dia exato em que, segundo os videntes do "fim do século", o mundo iria se acabar. 

 

Não sei por que motivo nostradâmico se previa o fim do mundo para esta data, e não para 31 de dezembro, o que pelo menos teria alguma lógica cronológica. Vai ver que assim como 13 é 31 ao contrário, novembro é dezembro ao contrário – para essa turma pêndulo-de-foucault, qualquer coisa pode ser demonstrada verbalmente.

 

Santos Dumont, ao que parece, não tinha problemas com o número 13, pois além de desafiar o Apocalipse anunciado, construiu e pilotou um balão com este número, mesmo vindo de duas tentativas abortadas com os números 11 e 12.  O no 13, ao que parece, sofreu algum tipo de sabotagem, mas logo em seguida veio o 14 e seu upgrade 14-Bis, e o resto é história. 

 

Não imagino que Santos Dumont fosse imune a superstições. Ao que parece foi por superstição que ele pulou o número 8, e na prática isso equivale a recear o 13, o 7 ou qualquer outro.  Mas, como temos o hábito mental de tirar lições de fatos aleatórios, aproveitemos para lembrar a reação de Santos Dumont, que foi provavelmente a de dizer: "Não, não tenho medo de que o mundo vá acabar hoje.  Para falar a verdade, acabei de construir um troço complicadíssimo que nem eu mesmo tenho certeza se vai voar ou não, e não tenho tempo de pensar em fim do mundo."

 

O mundo não acabou: o balão de Santos Dumont foi quem acabou voando.  Podemos aproveitar a outra informação (foi para este balão que ele construiu o primeiro hangar) como uma prova de seu otimismo, de sua certeza de que não apenas o mundo não ia acabar, mas talvez chovesse daí a alguns dias, e era preciso guardar o balão num lugar coberto.  Era um sujeito cheio de manias, e quase todas eram de ordem prática.

 
Mas, e o número 8?  Terá sido a prudência de Santos Dumont, evitando este número tão evidentemente perigoso, que salvou o Universo em que vivemos hoje?  Bem, tudo é possível.  Mas o melhor complemento da lição será, talvez, pensar que não comemoramos a data em que Fulano deixou de voar: comemoramos aquela em que ele de fato voou, sem se preocupar com milênios, cabalismos, superstições, e catástrofes anunciadas que afinal só interessam a quem vive passando cheque pré-datado.


quarta-feira, 12 de novembro de 2014

3656) Os dois eleitores (12.11.2014)


Dizem que por onde se olhar existem dois Brasis: o pobre e o rico, o branco e o preto, o tropical e o serrano, e por aí vai.  Prestando atenção em todo esse bulício das eleições recentes, pensei em dividir em dois os eleitores brasileiros.  De um lado os eleitores conscientes, de outro os eleitores meramente arrastados por algum tipo de propaganda, coação ou vaga promessa de alguma coisa. 

Vejamos o grupo dos eleitores conscientes, no qual me incluo, por hipótese de trabalho.  Por que eu sou mais consciente?  Bem, eu sou um escritor, um intelectual, tive direito a alguns anos de universidade, leio sobre tudo e escrevo sobre isso e mais alguma coisa.  Então devo saber distinguir entre dois projetos de candidatura à – digamos, pra facilitar – Presidência da República. O “pobrema” é que se eu fosse um intelectual sério teria de ler e comparar os projetos em campanha, mas a verdade é que eu nunca li um projeto de candidato.  No máximo, li em jornais a opinião de quem leu (ou dizia que).  Sou eleitor consciente?  Acho que não.

Ler projeto de governo? É como ouvir um candidato em cima de um caminhão, no engarrafamento da carreata, com um megafone, lendo em voz alta a ata da reunião do condomínio.  Não, preferimos votar num rosto, preferimos votar em alguém onde se ajustam nossos personagens, preferimos votar numa fantasia de desafio ou de exemplo.

O que eu sei da política, da economia brasileira?  Sei o que sai na imprensa, confiabilíssima que é.  E o que vaza para a Internet (ou cresce direto de lá, cópia sem original): sempre experiências de segunda mão. O Brasil é grande: todo dia há eventos públicos, entrevistas, pronunciamentos, transações, compras e vendas, leis promulgadas, tudo público e legal, mas que o “Brasil” não sabe, nem vai saber nunca, porque todo mundo está como eu, ocupado em cuidar da própria vida.  Acompanhar a economia nacional é um negócio muito chato. Ninguém tem saco. (E o que é secreto? Não sabemos nada do que acontece a portas fechadas. Nenhum político, nenhum jornalista pode afirmar em público a maioria das coisas que sabe. Seria um suicídio.)

Quantos eleitores sabem de fato o que acontece no país e conhecem as intenções secretas dos candidatos?  Não sei, só sei que certamente não sou um deles. Somos induzidos a votar, manipulados por notícias, bombardeado por memes, combatendo preconceitos de um lado com preconceitos do outro. Votamos em fantasias movidas pelo oportunismo, ou pela afetividade, ou por um interesse específico de grupo. Votamos até por mero diletantismo, como o de eleitores que se envolvem com política porque é um futebol a mais, uma religião a mais, uma droga a mais.



terça-feira, 11 de novembro de 2014

3655) Paris, Argentina (11.11.2014)



(Cortázar, por Petros V.)

A literatura de Julio Cortázar é uma literatura da grande metrópole, dos labirintos da grande cidade, que no seu caso é geralmente Paris, com uma ou outra incursão por Buenos Aires.  Em O Jogo da Amarelinha, o protagonista Horácio Oliveira percorre as ruas de Paris como uma agulha de vitrola percorre os sulcos de um disco, e do atrito entre os dois brota uma sinfonia de paixões, desencontros, crises existenciais, mortes, bebedeiras, cigarros, mates, esbarrões com o absurdo e o surreal.  

Cortázar era leitor profundo e concentrado dos surrealistas. Uma das epígrafes do livro é uma carta de Jacques Vaché a André Breton: “Nada acaba tanto com um homem como a obrigação de representar um país”.  Coisas que passam pela cabeça de todo migrante em metrópole alheia, vendo o olhar dos donos da cidade voltados para ele e aquele enorme balloon de pensamento por cima de suas cabeças: “Ah... então é assim que os paraibanos são.”

Oliveira percorre Paris à procura da Maga, a mulher que o fascina, mesmo que ele negue estar apaixonado, mas, fiel ao impulso anárquico dela, ele não marca encontros.  Sai vagando pelas ruas, indo visitar um sebo, ouvir música num clube de jazz, tomar um café num “arrondissement” mais distante, e sabendo que ao chegar lá pode encontrá-la sorrindo, como se estivesse à sua espera.  Os dois habitam (diz ele) “um mundo onde você se movia como um cavalo de xadrez que se movesse como uma torre que se movesse como um bispo”.  “Encontraria a Maga?” é a frase de abertura do livro, e que cristaliza essa atitude.  Acontecerá um milagre, somente pelo fato de eu ter saído andando ao acaso pelas ruas da cidade?

O encontro casual dos amantes, deliberadamente não-combinado, faz brotar a fagulha surrealista (o amor louco e o acaso criativo) nessa Paris minuciosamente inventariada. (A edição da Cátedra, Madrid, 1992, é bem anotada por Andrés Amorós, e cheia de fotos das esquinas e cafés citados pelo autor).  A andarilhagem do intelectual argentino sem-tostão, à procura da estudante uruguaia que tem “um passarinho na cabeça”  e um filho pequeno, mostra o quanto essa cidade era para ele um tesouro de surpresas e de fatalidades:

“Em plena satisfação precária, em plena falsa trégua, estendi a mão e toquei no novelo de Paris, com a sua infinita matéria enrolando-se sobre si mesma, toquei no magma do ar e de tudo o que se desenhava na janela, nuvens e águas-furtadas; nesse então, não havia desordens; nesse então, o mundo continuava sendo algo petrificado e estabelecido, um jogo de elementos girando nos seus gonzos, uma madeixa de ruas e árvores e nomes e meses.”



domingo, 9 de novembro de 2014

3654) Os dentes e os ossos (9.11.2014)



Foi altamente constrangedor aquele fim de semana, um mês após a morte do Dr. Medeiros, em que fomos todos convidados para a casa da família em Mury, para a leitura do testamento.  Por que não faziam aquilo no apartamento do Leblon, meu Deus? Eu era genro tinha que ir, até porque havia uns primos velhos que só estavam ali porque (segundo meu concunhado Anchieta, casado com a irmã de minha mulher) queriam pegar nem que fosse uma raspa do tacho, e achavam que estando presentes à abertura do testamento poderiam influenciar o modo como ele tinha sido redigido há pelo menos dois anos. 



Pudessem ou não, não conseguiram. No dia e hora aprazados, a família inteira coreografou sua chegada em Mury, foram as instruções obedecidas, foi o cofre aberto, foi  o testamento lido pelos advogados, com gravação em HD e testemunhas juramentadas. O grupo de causídicos direcionou o óbvio na direção do inevitável. Talvez seja medida do meu “ennui” registrar que duas ou três famílias fizeram naquela breve tarde de sábado sua independência financeira com a merreca herdada, mas eu nem pensava nisso. Só pensava em quem teria assassinado o velho.



Todos podiam e gostariam de tê-lo feito. Faço parte desta família há catorze anos. O pior não é que fossem hipócritas. Não eram. Não é que dissessem que amavam o paizinho quando na verdade mal podiam esperar que ele batesse-o-trinta-e-um e deixasse para eles todas as escrituras, as ações e os rendimentos que tinha. De fato o tinham amado, mas quando a morte se prenunciou todos pensaram rapidamente no equilíbrio de suas contas bancárias, na pá-de-cal em velhos compromissos, no cala-a-boca em certo nível de credor que começava a ficar inconveniente. Ninguém deve tanto dinheiro quanto os ricos. E de repente tudo estava possível, ao alcance de uma assinatura.


A fatia-de-espólio da minha digníssima consorte resultou tão suculenta que até meu cinismo vacilou um pouco, mas me recompus a tempo e pensei que subornar depois de morto é uma dupla covardia.  Quando só restava uma página impressa na mão do advogado, começou a me dar um calor, um sufocamento, uma vontade de estar longe dali, rápido. Mal percebi quando ele leu, hesitante, as últimas linhas daquele documento cujo lacre rompera minutos atrás: “A abertura do cofre determina a ignição dos pontos iniciais do processo, que a esta altura (o advogado hesitou, voltou a ler) já está em pleno andamento. Não tentem fugir.  Se abrirem a porta da frente, o vento irromperá com tudo, inflamando as labaredas, consumindo esta maldita casa e vocês, malditos também, até o derradeiro osso.”  E foi exatamente o que aconteceu.




sábado, 8 de novembro de 2014

3653) As Ruritânias (8.11.2014)





As Ruritânias são aqueles países imaginários em que muitos escritores gostam de ambientar seus livros sem a obrigação de verossimilhança, exatidão, pesquisa, etc., que seria exigida por uma ambientação num país de verdade como Hungria ou Romênia.  Quem propôs essa nação fictícia foi Anthony Hope numa série de romances de aventuras iniciada com O Prisioneiro de Zenda (1894), uma clássica história do cara que é sósia de um príncipe, serve de dublê e substituto para ele, e acaba sendo confundido de verdade com ele.  (É uma história já filmada várias vezes, inclusive com Peter Sellers em vários papéis.) A Ruritânia é um país vagamente situado entre a República Tcheca e a Alemanha, e suas histórias transcorrem entre o fim do século 19 e as primeiras décadas do 20.



O cinema nos deu um exemplo recente com Zubrowka, país imaginário do filme O Grande Hotel Budapeste de Wes Anderson.  Ali está todo o clima ruritano: os hotéis de luxos cheios de aristocratas, políticos, militares; as intrigas e conspirações de gabinete; a ameaça permanente da guerra, numa Europa Central sempre inquieta e belicosa.



Além de seus numerosos livros de FC e fantasia, Avram Davidson (1923-1993) tem uma excelente série de contos com uma espécie de detetive, Dr. Eszterhazy, que se situam numa nação híbrida conhecida como Scythia-Panonia-Transbalkania, e que guarda todo aquele clima de lampiões a gás, trens, carruagens, arquiduques, intrigas diplomáticas e tecnologia virada-do-século.  Ursula LeGuin também produziu sua Ruritânia pessoal com a coletânea Orsinian Tales (1976), situados em Orsinia, também uma nação de perfil austro-húngaro, situada na Europa Central. No universo dos Role-Playing Games (RPGs) temos o exemplo de Castelo Falkenstein, jogo ambientado numa região imaginária nos Alpes da Bavária por volta de 1870.


Mesmo com toda essa diversidade, o termo “Ruritânia” tornou-se o mais típico dessas nações imaginárias.  Hoje pode ser encontrado não só na ficção, mas no jornalismo e em ensaios acadêmicos, toda vez que alguém precisa dar um exemplo situado num país hipotético.  Alegorias políticas, questões jurídicas complicadas, ilustrações de teorias econômicas, para tudo isto os redatores recorrem à Ruritânia como um país-experimento, um país-laboratório, que serve para ilustrar uma hipótese sem atrair as inevitáveis ressalvas que um leitor poderia fazer caso o exemplo sugerido ocorresse num país de verdade: “Ah, mas isso jamais poderia ocorrer na Polônia, pois sabe-se que o PIB da Polônia é em torno de tanto por cento, etc. etc.”  Falar em Ruritânia deixa o redator à vontade para compor seus exemplos da maneira mais conveniente.