Na literatura de ficção científica e de fantasia existe
um conceito chamado de
worldbuilding,
ou “criação de um mundo”. O autor imagina um mundo diferente do nosso, e ali
ambienta suas histórias. Esse “mundo” pode ser outro planeta, no caso da FC, ou
pode ser um mundo imaginário como o da série de “Narnia” (de C. S. Lewis) ou
dos continentes descritos na série “Game of Thrones” de George R. R. Martin.
Um ponto crucial desses “mundos construídos” é que sejam
coerentes, sejam surpreendentes, e sejam plausíveis. O leitor quer surpresas,
que descobrir mistérios e novidades, quer se deparar com rasgos de imaginação
que aumentem o prazer da leitura. Por outro lado, ele geralmente preza uma
certa lógica no que está sendo mostrado; aquilo não deve ser gratuito ou
desordenado. Se o autor mostra uma história de navios piratas e a certa altura
introduz uma bomba atômica, a história fica parecendo uma bagunça de
anacronismos. O que não impede um bom escritor de muitas vezes tornar
verossímil alguma incongruência desse tipo.
“Tuareg e Nagô” é uma canção gravada por Lenine no CD Olho de Peixe (1993), seu disco de estréia
solo, produzido com Marcos Suzano e Denilson Campos. Essa faixa nasceu da
confluência de várias idéias.
A primeira delas remonta ao disco Baque Solto (1983), de Lenine e Lula Queiroga. Esse disco é hoje o
que se chama de “um clássico cult”. Eu
tinha chegado ao Rio há cerca de um ano, e a turma que encontrei aqui era um
grupo de parceiros de outras aventuras musicais no Nordeste: Lenine, Lula
Queiroga, Tadeu Mathias, Mestre Fuba, Ivan Santos, Alex Madureira, Zeh Rocha...
Todos morando no Rio, cantando no “Bar do Violeiro”, tentando gravar.
Quando o Baque
Solto foi gravado, tinha composições e participação instrumental dessa
turma toda – menos eu, que era um dos mais recentes. Sugeriram então que eu
fizesse um texto poético falando da força da música nordestina, etc. e tal. E
no dia em que fomos fazer a foto da “Gente de Baque Solto”, registrada no
estúdio por Hélio Viana, levei o texto “Mapa do Tesouro”, que saiu no encarte
do LP e é substancialmente a letra da futura “Tuareg e Nagô”:
É a festa dos negros coroados
no batuque que abala o firmamento...
Passou-se. Os meses e os anos fiaram seu fio de areia.
Comecei a compor junto com Lenine, e uma das primeiras coisas que nos aproximou
foi o gosto pela ficção científica, fantasia, fenômenos bizarros (de Charles
Fort até Operação Cavalo de Tróia). E
um dos nossos passatempos era imaginar, em sessões de devaneio e de “world
building”, cenários para narrativas fantásticas.
Um desses cenários foi o que fiquei chamando de “A Ilha”,
partindo de uma premissa simples. Todo mundo imagina a Atlântida como uma ilha
futurista no meio do Oceano Atlântico – uma espécie de “Metrópolis” de Fritz
Lang, mas com túnicas gregas e templos de mármore. Nossa idéia partiu da
premissa contrária: e se essa ilha no meio do mar fosse na verdade uma ilha
tropical, caribenha, ensolarada, fértil, super-populosa, tecnologicamente um
tanto precária mas com uma vida cultural intensa?
Essa ilha seria uma confluência de todas as civilizações
navegantes que cruzaram o Atlântico, cada uma deixando ali suas marcas. E assim
surgiu o verso que depois tornou-se o refrão da música:
Quando o grego cruzou Gibraltar
onde o negro também navegou,
beduíno saiu de Dacar
e o viking no mar se atirou...
Uma ilha no meio do mar
era a rota do navegador:
fortaleza, taberna e pomar,
num país tuareg e nagô...
Estavam presentes na mistura uma série de povos que,
teoricamente, teriam se encontrado e miscigenado nessa Ilha imaginária no meio
do Atlântico. A Ilha servia de ponto de parada, descanso, reabastecimento,
trocas comerciais... Algo bastante plausível, em termos de ficção. E de lá os
navegadores seguiriam na direção Sul, cruzando a linha do Equador e chegando
finalmente à América do Sul e o Brasil.
É o destino dos navegadores que partiam rumo ao oeste, à
região onde o sol vai se pôr – “to sail beyond the sunset”, no verso famoso de
Lord Tennyson.
E coube a Lenine pegar os versos antigos do “Mapa do
Tesouro”, organizar tudo em estrofes, e mudar várias coisas para dar coerência
ao “mundo construído”. Ali temos canaviais, estradas de ferro, plantações,
frevo, religiões africanas... É de certo modo a Zona da Mata nordestina, mas,
colocada nesse contexto imaginário, acho que ela ganha outras cores.
Cores caribenhas, na verdade, porque a Ilha, a nossa
“atlântida”, ficava a meio caminho entre o oeste da África e o Golfo do México.
Uma latitude e longitude que a deixavam praticamente ao lado do Mar do Caribe –
ou seja, uma Ilha que parecia pouco com a Atlântida dos livros, e parecia muito
com Cuba, Jamaica, Porto Rico...
Lembrei de uma frase de Gabriel Garcia Márquez numa
entrevista, quando ele disse que o Recife era a cidade mais caribenha que ele
conheceu fora do Mar do Caribe. Na época, fizemos os versos iniciais de uma canção
glosando esse mote, explorando a assonância entre Caribe e Capibaribe:
Lá, onde o mar bebe o Capibaribe...
Coroado leão, caribenha nação
longe do Caribe.
“Coroado leão” é uma referência futebolística que nos era
inevitável, mas esse fragmento, que tinha ficado como um começo apenas,
encontrou seu complemento com a canção da Ilha.
Lenine pensava em termos de canções, eu pensava em termos
de histórias. Cheguei a rabiscar resumos de contos que eu poderia ambientar
nessa Ilha, contos focados apenas nos personagens e deixando essa questão
histórico-geográfica como um pano-de-fundo remoto, mero ambiente, sem obrigação
de explicar muita coisa.
Não avancei nessa direção porque nessa mesma época eu
estava empenhado noutro projeto de “worldbuilding”: a criação da cidade
imaginária de Campinoigandres, uma cidade árabe-ibérica no Portugal do século
14, onde ambientei vários contos e o meu romance A Máquina Voadora (1994).
Mas aí já é outra história.
“Tuareg e Nagô” foi lançada no Olho de Peixe em 1993 e teve várias regravações; minha preferida
entre elas é a de Mônica Salmaso, em Trampolim:
https://www.youtube.com/watch?v=kirM7tkAvD4&ab_channel=M%C3%B4nicaSalmaso-Topic
Tuareg e Nagô
(Lenine/BT)
É a festa dos negros coroados
no batuque que abala o firmamento,
é a sombra dos séculos guardados,
é o rosto do girassol dos ventos...
É a chuva, o roncar de cachoeiras
na floresta onde o tempo toma impulso,
é a força que doma a terra inteira
as bandeiras de fogo do crepúsculo...
Quando o grego cruzou Gibraltar
onde o negro também navegou
beduíno saiu de Dacar
e o Viking no mar se atirou...
Uma ilha no meio do mar
era a rota do navegador
fortaleza, taberna e pomar
num país Tuareg e Nagô.
É o brilho dos trilhos que suportam
o gemido de mil canaviais,
estandarte em veludo e pedrarias
batuqueiro, coração dos carnavais...
É o frevo a jogar pernas e braços
no alarido de um povo a se inventar,
é o conjuro de ritos e mistérios,
é um vulto ancestral de além-mar.
Quando o grego cruzou Gibraltar
onde o negro também navegou
beduíno saiu de Dacar
e o Viking no mar se atirou.
Era o porto pra quem procurava
o país onde o sol vai se pôr
e o seu povo no céu batizava
as estrelas ao sul do Equador.