É um exercício interessante pegar um livro que a gente
leu na infância e tentar lembrar os detalhes dele. Ainda mais se é um livro que
a gente gostou, que leu mais de uma vez, etc.
Já me ocorreu (me ocorre ainda, principalmente em sebos)
pegar num livro e pensar: “Caramba, esse livro é MUITO bom, eu adorei”. E se me
perguntarem: “Como é a história?” Eu
digo: “Não faço a menor idéia. Só ficou a sensação.”
Talvez isto seja um critério a considerar (entre muitos)
quando a gente analisa a experiência literária. Um livro tem uma história. Ela
nos produziu uma impressão positiva, profunda. A história migrou por completo
para o inconsciente e deixou só a impressão, como uma pegada na areia.
Houve uma época em que eu comprava por 5 reais um desses
livrinhos, e em casa anotava num papel as coisas que conseguia lembrar. O nome
de um personagem. Uma cena. Às vezes uma piada. Um elemento de enredo. E então
começava a ler, para ver se estava lembrando certo.
Tenho ainda hoje dezenas de livrinhos de ficção
científica ou policiais que li entre os 10 e os 15 anos e que muitas vezes não
reli depois. De vez em quando pego um para fazer essa espécie de “anamnese”,
uma tentativa de desenterrar algo que eu mesmo enterrei mas não sei mais o que
é.
E um outro detalhe interessante é que em casos assim sou
capaz de, no instante da releitura, achar na página 20 ou 30 uma frase, um
parágrafo, uma expressão qualquer que me salta aos olhos, produzindo aquela
sensação: “Eita! Lembro disso aqui!”. É uma lembrança parcial, que só brota
depois do estímulo; mas também vale. Porque sem dúvida li todas as páginas
anteriores, mas não deixaram esse tipo de marca específica.
Peguei esta semana para folhear o livro Os Párias do Átomo (“Les Parias de
l’Atome”) de Max-André Rayjean, Edições de Ouro, tradução de David Jardim
Júnior. O livro se anuncia como vencedor do “Grande Prêmio de Ficção Científica
de 1957”, e saiu no Brasil, pela famosa “Série Futurâmica”, no começo dos anos
1960.
Se me perguntassem sobre o livro antes desta releitura,
eu diria:
“Aparecem mutantes na Terra,
em consequência de guerras atômicas. Pessoas com pele verde, que têm extrema
sensibilidade no tato; pessoas com olhos esbugalhados, imensos, de visão excepcional;
pessoas com alterações grandes no nariz e aumento de olfato, ou nas orelhas e
aumento da audição. Em todos os casos, os mutantes são pessoas de aparência
repulsiva mas com uma espécie de super-poderes. O principal deles chama-se
Monrow, o primeiro a descobrir que é capaz de matar alguém emitindo ondas
mentais. Ele se torna depois o líder mundial dos mutantes, que entram em guerra
com a humanidade.”
Tudo isto está de fato no livro. É uma espécie de X-Men “avant la lettre”. Mas coisas igualmente importantes
tinham sumido da minha memória.
Por exemplo: os livros da coleção tinham uma “chamada de
capa”, relativa ao enredo. Neste, a chamada de capa diz:
Só no vale azul de Vênus existia um minério especial que era capaz de neutralizar as usinas atômicas da Terra.
O jantar, realizado no Palácio da Presidência do Conselho, estava no fim. As largas sacadas da sala de jantar davam para jardins magníficos, onde repuxos luminosos mantinham uma umidade permanente.
Na noite, totalmente escura, grandes borboletas de asas roxas e azuis voavam de flor em flor. Não se via uma única estrela. Uma névoa opaca, estagnada a cinco mil metros de altura, cercava o planeta. No entanto, durante o dia, essa névoa deixava filtrar o calor do sol, mas a luz chegava com dificuldade até o solo. Vênus gravitava numa semi-penumbra, como num dia de nevoeiro espesso. (pág. 88-89)
O acaso fizera-o descobrir o metal azul.
No decorrer de um voo de reconhecimento, um helicab de propulsão atômica caíra numa das regiões mais desoladas de Vênus. Estratônibus militares foram imediatamente enviados para o local do acidente e seus pilotos, surpreendidos, verificaram que desde que começavam a sobrevoar a região do Vale Azul, os motores nucleares deixavam de funcionar normalmente. Sérias perturbações obrigaram as aeronaves a recorrer aos reatores auxiliares de hidrogênio líquido.
Súbito, porém, um espetáculo atroz eletrizou-o! Quando o aparelho ia cruzar a barreira de esqueletos, uma fulmínea pane paralisou o motor. Capotou, desequilibrado. Num tombo perpendicular, como um peso largado no vácuo, o aeroplano despencou. Com um estrondo esborrachou-se na faixa sinistra das ossadas, desarticulando-se em lascas e farrapos de lona, subindo do motor, ágil e rubra, a língua de uma chama. (Cap. IV)
Enquanto fumava, Monrow examinava um mapa-múndi. Vastos círculos, em número de quinze, exatamente, cobriam a superfície do mapa. Cada círculo correspondia a um ponto para onde deveria ir cada componente do grupo. Monrow sabia que, àquela hora, cada um de seus homens, espalhados pela superfície do globo, esperava, com o olhar fixo no cronômetro adaptado à hora local.
Às dezesseis horas, exatamente, a “operação” seria lançada.
(...) Com uma serra minúscula, cortou uma das arestas do cubo. A caixa de verroplex se abriu sem dificuldade.
Monrow tirou o fragmento do mineral azul e contemplou-o. Sabia que, naquele momento exato, todas as atividades da Terra cessavam, abruptamente. (pág. 110)
Dirigiu-se à sala de estar e sentou-se numa poltrona, perto do ventilador.– Que calor hoje! – lamentou-se, desfazendo o nó da gravata.Françoise estava preparando a laranjada. Abriu a geladeira e colocou um cubo de gelo no copo.– Tome, beba... Isso lhe fará bem.Fridman sorriu e com deleite mergulhou os lábios no líquido gelado. Até o vidro estava frio.(pág. 14)
O comissário acendeu um cigarro. Quando riscou o fósforo, a pele verde de Monrow foi percorrida por um arrepio.
(pág. 62)