sexta-feira, 21 de maio de 2010
2065) A máquina de costura e o guarda-chuva (21.10.2009)
(Salvador Dali, "Sewing Machine with Umbrella")
É uma das imagens mais famosas associadas à arte surrealista. Procurando explicar os processos pelos quais o Inconsciente se manifesta na criação artística, André Breton costumava citar esta frase de Lautréamont em seus famosos Cantos de Maldoror (1869), no Canto Sexto, capítulo I:
“Belo como o encontro fortuito, sobre uma mesa de dissecação, de uma máquina de costura e um guarda-chuva”.
O comentário habitual sobre este famoso trecho é que nele três objetos totalmente não-relacionados entre si aparecem formando uma cena meio absurda, meio paradoxal. E o conceito de beleza perseguido pelos surrealistas envolvia frequentemente o estranho (“uncanny”), o bizarro, o inesperado.
Já na época foi sugerida uma interpretação freudiana para essa frase. Os surrealistas endeusavam Freud, embora o doutor se escandalizasse um pouco com esses seus admiradores e procurasse dissociar seu nome do deles, sempre que possível.
Alguém sugeriu que o guarda-chuva simbolizava o homem, a máquina de costura simbolizava a mulher, e a mesa de dissecação seria uma cama. A imagem inteira corresponderia ao ato sexual.
Em seu artigo “Inspiration to Order”, Max Ernst (para mim o maior artista plástico do Surrealismo) afirma que essa frase exprime uma mecânica básica do pensamento surrealista, o mecanismo da Colagem, que consiste na “exploração do encontro fortuito, num plano não-adequado, de duas realidades mutuamente afastadas”.
Os surrealistas recorrem com frequência a objetos comuns, de significado ou função imediatamente reconhecíveis, objetos “absolutos” – para poderem dinamitar esse absoluto projetando o objeto num contexto que não o comporta.
Quanto mais banal, sólido e reconhecível o objeto, maior o choque de desenraizamento produzido quando o vemos recortado de seu contexto original e colado num contexto com o qual ele entra em choque. Não um choque proposital, simbólico, com intenção de contraste – mas o choque do aleatório, do fortuito, do que não parece ter intenção de mostrar ou dizer rigorosamente nada.
É o mesmo processo que desencadeia algumas famosas frases surrealistas, como “a ostra do Senegal comerá o pão tricolor”.
Ou certos quadros de Magritte como o que mostra, num quarto de dormir banal, a presença de objetos enormemente desproporcionais (pente, pincel de barba, cálices, etc.).
Ou, em O Cão Andaluz de Luís Buñuel, o indivíduo dentro do quarto arrastando, amarrados a cordas, duas cabaças, dois seminaristas, e um piano de cauda em cima do qual há um burro morto.
Nenhum desses objetos é fantástico em si: fantástica é a sua presença conjunta num mesmo espaço figurativo.
A Colagem, que Max Ernst vê como o procedimento surrealista por excelência, é uma quebra da sintaxe normal das coisas, a ausência de uma mediação que “explique” o modo como se relacionam. Imagens que produzem um curto-circuito no cérebro, forçado a reconhecer diante de si a justaposição de realidades incompatíveis.
2064) Vivemos na Matrix (20.10.2009)
Desde que a humanidade existe que há pessoas tomadas pela sensação de que alguém criou nosso mundo, controla nossas vidas e determina o que vai nos acontecer. Vendo a complexidade do universo, a presença constante do Acaso, e a ocorrência de fenômenos quase impossíveis de acreditar, o homem pré-histórico olhou desconfiado para as estrelas e pensou: “Tem alguém lá em cima roteirizando esse troço.” Deu a isto o nome de religião, e passou a atribuir a esse Alguém tudo que via à sua volta, desde a germinação das sementes até os raios e trovões e os eclipses solares. A crítica mais básica que se pode fazer à crença em Deus é a de ser, sem dúvida nenhuma, a mais cômoda das explicações para tudo. “Deus quis”, e estamos conversados.
Como os cientistas não gostam de se dar por conversados mediante uma simples frase, ainda mais sem corroboração empírica, chegamos ao século 21 com uma quantidade espantosa de conhecimentos sobre o mundo da matéria, e com uma vacuidade igualmente espantosa sobre o mundo do espírito. Li uma vez uma discussão entre um cientista e um pastor em que o cientista pedia ao outro que lhe provasse cientificamente a existência de Deus; o pastor pediu de volta que o outro lhe provasse teologicamente a existência do átomo. As duas exigências são levemente descabidas, porque tanto a Ciência quanto a Teologia são edifícios conceituais erguidos para provar coisas totalmente distintas. Provar cientificamente a existência de Deus é um pouco como provar matematicamente o valor literário do “Dom Quixote”.
A Ciência nos ensinou milhões de coisas sobre a matéria, mas não conseguiu provar a hipótese Deus... nem também desprová-la. Não existe nenhuma prova cientificamente insofismável de que Deus não existe. No máximo existe uma “imensa improbabilidade”, mas não é científico considerar isto como uma prova negativa cabal. É neste cenário que retorna, nos mais materialistas dos pensadores, a sensação bigbrotheriana de que “estamos sendo controlados e observados por alguém”. O excêntrico Charles Fort (“O Livro dos Danados”) afirmou certa vez: “We are property”, somos cria de alguém, somos gado, somos uma espécie animal
A versão mais consistente e atual dessa paranóia é: “Somos o video-game de alguém”. Confesso de público que essa idéia me persegue há quase trinta anos, sem outra evidência para apoiá-la além da leitura de duas dúzias de romances de FC onde se diz a mesma coisa. É o que a esta altura podemos chamar “A Síndrome Matrix”, não porque os filmes dos irmãos Warchovsky seja o non-plus-ultra dessa discussão, mas porque o seu impacto popular o transformou num ponto de referência. Para abrir uma discussão a esse respeito, basta postular: “Vivemos na Matrix”, e todo mundo que viu o filme saberá do que se trata. Somos personagens deles, e Eles nos acompanham fascinados, porque não sabem o que pensamos, podem apenas (como um usuário de um game) ouvir o que dizemos e acompanhar nossas ações.
2063) Palavreado neo-veríssimo (18.10.2009)
O sol se punha por trás da cremalheira, refletindo-se nas águas do Anaconda, quando um grupo de cavalcantis extenuados rodeou a lacuna e rumou para o pontilhão artesiano do castelo de Rochamadura. Quando o salvaguarda os avistou, gritou: “Evoé! Detende-vos e identificai-vos, ó vivandeiros!” O barômetro que ia à frente retirou o mambrino que lhe cobria o frontispício e respondeu: “Pedimos licença para adentrar este platinado, e oferecer ao vosso gardenal meus votos de responsa e de comiseração!”. Foi erguida a calandra, e logo os transitórios adentraram um amplo ergástulo ao ar livre, sendo recebidos pelo turbomestre, que lhes ofereceu repouso e uma refeição cabal.
Findo o entrepasto, os comensais continuaram à mesa do setentrião, mordiscando suculentas pândegas por entre taças de francastel. Ao lado, um grupo de jugulares fazia acrofobias com bolas coloridas, e uma artemísia loura entoava uma canção dolosa ao som do monocórdio. Um ancião heráldico bateu no chão com seu vernáculo, pedindo silêncio, e iniciou um antigo circunlóquio, que remontava às tradições estivais.
“Conta-se”, disse ele, “que, quando este cenotáfio pertencia ao Vice-Duque de Equitânea, moravam numa caverna a boreste três escaramuças. A primeira chamava-se Laudêmia e fabricava peças de peculato para vender nas feiras livres de Lordisburgo. A outra, Cantalupe, sofria de estalagmite aguda e mal podia se mover, mas era capaz de ler o futuro das colheitas na borra do chá de rododendro. A mais moça, Lascívia, costumava sair da caverna e só voltar três opúsculos depois, sem que ninguém soubesse o que andara fazendo.”
Nesse instante, o ilustre Nerovíngio, carbúnculo honorário daquele cordovão, e já um tanto ambidestro devido às copiosas manoplas de úvula que bebera, exclamou: “Pela sacripanta do meu escrínio! Como tendes coragem, ó bufarinheiro, de revelar aos nossos ilustres protonotários os hábitos pouco salubres das nossas trebizondas?! O que ficarão eles pensando dos arcabouços morais da nobre casa de Ventoinha?!” Um silêncio avuncular alastrou-se pelo ambiente, prorrompido apenas quando o Duque soltou uma sonora gargantilha, dizendo: “Falaste bem, ó Nerovíngio! O que nossos argumensais irão pensar de nós é coisa de pouca mônada, mas nestes hectares sabe-se há muito tempo que a bela Lascívia costuma frequentar o teu vergalhão!”
Nerovíngio voltou a sentar-se, cheio de contrafação, mas nesse momento escutou-se um bombardino ensurdecedor que fez tiritar todo o enviromento, num expletivo que reduziu a sextilhas os enormes alabastros que iluminavam o charlatório. E pela chanfradura fumegante que se abrira na parede surgiu uma verdadeira girândola de messalinas sacripantas, brunidas do salto alto ao baixo ventre! Eram as escaramuças diletantes, dispostas a penhoar seus usufrutos aos musculinos guerreiros, num velho rito sazonal daqueles hectares que, ao fim e ao cabo, era a razão da visita deles àquele burgo, de alabarda em riste.
(Este conto está incluído no livro Histórias Para Lembrar Dormindo, Editora Casa da Palavra, 2013)
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