1
Mikhail Ismailovitch Petrov, 48 anos, tradutor e
professor universitário, viajou para duas semanas de férias na dacha de sua família, a 30 km de São
Petersburgo. Custava-lhe muito separar-se de sua biblioteca de 2 mil volumes,
porque não conseguia parar de trabalhar, e afora isso a leitura era seu
passatempo favorito. Quando voltou, abriu a porta e deparou-se com estantes
vazias, papéis espalhados pelo chão, nem uma só lombada à vista, e em cima da
mesinha de centro um bilhete rabiscado às pressas: “O senhor deixou uma janela
aberta. Fechei ao sair. Parabéns pelo bom gosto. Obrigado por tudo. Desculpe
qualquer coisa.”
2
Eram cinco rapazes bebendo num bar ao lado da Estação Ferroviária, madrugada adentro, quando um deles, enchendo a cara e debulhando-se em lágrimas por ter levado um chifre da namorada Josivânia com um playboy da capital, anunciou que a vida não valia a pena, levantou-se, entrou no Fusca e rodou vinte metros até estacionar o carro em cima dos trilhos e desligar o motor, disposto a despedir-se do mundo durante os nove minutos que faltavam para a passagem do pontualíssimo trem de carga; o que fez os amigos reunirem-se apavorados, correrem para lá, procurarem a chave na ignição, depois nos bolsos do bêbado, e ele dizendo: “vão embora, fiquem vivos, vocês são felizes”, e os minutos galopando, e o jeito foi subjugar o desesperado, soltar o freio de mão e empurrar o carro para fora da via férrea, bem a tempo, pois o expresso passou com gosto de gás, teria pulverizado até um caminhão de trio elétrico; a chave do carro nunca mais foi encontrada, o rapaz no dia seguinte deu adeus ao mundo e virou hippie, e a prova da história é que o fusca permanece lá até hoje, coberto de mato e ferrugem, pra quem duvidar.
3
Jurandir Nestor da Mota, 48 anos, escriturário de profissão, pastor em carreira ascendente na Igreja Apostólica Cordeiro de Deus, no Tatuapé, viajou a Paris para um congresso e nos últimos dias permitiu-se uma viagem ao que ele chamava “o bas-fond”, para assegurar-se de que a humanidade estava mesmo decadente e precisava de providências espirituais imediatas, e por outro lado para saber se aquilo que os outros pastores e pastoras contavam aos sussurros era mesmo verdade; tanto era que ao longo de uma tarde e uma noite ricocheteando de bar em bar e de strip em strip Jurandir conheceu um brasileiro saradão e simpático que lhe serviu não apenas de cicerone, e no encerramento da noite fizeram selfies de peruca, selfies junto ao pôster de Milo Manara no motel, e ao se despedirem o rapaz confessou: “mau pai é dessa mesma congregação, Pastor Dioclécio, vai adorar ver essas fotos do concorrente dele”.
4
Em agosto de 1993, em São Paulo, a banda recifense Trovão das Alfaias gravou seu primeiro álbum, intitulado “Linha do Tiro”. Ao entrar na fase de produção gráfica, foi escolhida para ilustrar a contracapa do álbum uma foto de estúdio, no último dia de gravação, reunindo na mesma imagem todos os integrantes, a equipe técnica, roadies, os músicos de estúdio, alguns convidados, um bloco de mais de vinte pessoas eufóricas e sorridentes, todas abraçadas, umas sentadas no chão, outras de pé, etc. Lançado o disco, os músicos da banda começaram a ser interrogados sobre quem era o homem meio calvo, de bigode escuro, camisa branca e jeans, sentado no meio da turma, sorrindo e acenando. “Não sei, era um amigo de alguém que estava lá,” diziam eles; um jornalista do Recife dedicou mais de quatro anos a uma pesquisa infrutífera, entrevistando todos os demais presentes na foto, o fotógrafo, os donos do estúdio, os funcionários da gravadora. Vinte e sete anos passados, ninguém identificou ainda o homem que aparece na foto.
5
Raymond Deverreaux, 55 anos, decorador, parisiense, tocou às 15:30 de uma tarde outonal à porta do apartamento de sua cliente Mme. Charbonnier, 74 anos, fez-se anunciar pela criada, olhou pela janela do décimo andar que dava para um pátio interno o chuvisco melancólico daquele outubro, foi até o sofá e deixou-se cair com todo alívio dos seus 120 quilos sobre as almofadas, xales, e lenços estampados que o cobriam, e mal o fez sentiu sob os glúteos o estalo inconfundível de uma delgada coluna vertebral se partindo, arredou-se dali com um prenúncio de horror que apenas se confirmou ao ver sob as sedas e drapeados o corpo agora para sempre imóvel de Pierrot, o lulu de estimação da madame, alegria dos seus olhos, luz dos seus dias. A idéia lhe veio em dois segundos, e em mais três o gesto de levar o falecido até a janela e entregá-lo aos desígnios da lei da gravidade; e dez segundos depois estava a porta do apartamento silenciosamente se fechando às suas costas, e ele se retirava com o coração num tumulto de perplexidade, rancor, remorso e novamente alívio.
6
Domenico Mastratti, 65 anos, de Milão, colecionador de arte impressionista, precisou vender o apartamento vizinho ao que ocupava, e que estava vazio há alguns anos. Candidatou-se à compra um individuozinho insuportável, Cesare Puntibasta, 40 anos, animador de TV, efeminado, melífluo, vulgar, invasivo, cheio de falsas intimidades, rodeado de companhias constrangedoras, que em apenas dois encontros conquistou a antipatia eterna do signore Domenico, o qual jurou para si (e para a governanta que cuidava de sua vida de solteirão empedernido) que jamais se tornaria vizinho daquele desclassificado; que felizmente sumiu quando viu que de nada adiantavam suas insistentes visitas e ligações. O signore Domenico teve um ou dois dias de trégua até que lhe apareceu uma segunda candidata, a signora Marchesi, 60 anos, psicóloga aposentada, uma mulher viúva, culta, séria, que teceu elogios ao silêncio do edifício, à faixa etária dos serviçais, aos conceitos pétreos da privacidade e da cidadania. Uma semana de tratativas entre os respectivos advogados bastaram para que o signore Domenico assinasse o contrato de venda, em nome de um sobrinho e futuro herdeiro, pois (explicou-lhe a psicóloga) empecilhos jurídicos a impediam de comprar em seu próprio nome. Chancelada a venda, tomaram os dois um discreto vinho tinto e a signora Marchesi sumiu para sempre, pois a mudança que chegou no dia seguinte foi a do sorridente Puntibasta, cujo verdadeiro nome estava no contrato conseguido por ela: Elsa Cormorante, atriz de filmes B em Cinecittà, que aliás o encarregara de deixar “dois beijos bem estalados na cara de Domenico, um fofo!”, o que Puntibasta se apressou a executar, para gáudio dos carregadores e consternação da governanta.
Eram cinco rapazes bebendo num bar ao lado da Estação Ferroviária, madrugada adentro, quando um deles, enchendo a cara e debulhando-se em lágrimas por ter levado um chifre da namorada Josivânia com um playboy da capital, anunciou que a vida não valia a pena, levantou-se, entrou no Fusca e rodou vinte metros até estacionar o carro em cima dos trilhos e desligar o motor, disposto a despedir-se do mundo durante os nove minutos que faltavam para a passagem do pontualíssimo trem de carga; o que fez os amigos reunirem-se apavorados, correrem para lá, procurarem a chave na ignição, depois nos bolsos do bêbado, e ele dizendo: “vão embora, fiquem vivos, vocês são felizes”, e os minutos galopando, e o jeito foi subjugar o desesperado, soltar o freio de mão e empurrar o carro para fora da via férrea, bem a tempo, pois o expresso passou com gosto de gás, teria pulverizado até um caminhão de trio elétrico; a chave do carro nunca mais foi encontrada, o rapaz no dia seguinte deu adeus ao mundo e virou hippie, e a prova da história é que o fusca permanece lá até hoje, coberto de mato e ferrugem, pra quem duvidar.
Jurandir Nestor da Mota, 48 anos, escriturário de profissão, pastor em carreira ascendente na Igreja Apostólica Cordeiro de Deus, no Tatuapé, viajou a Paris para um congresso e nos últimos dias permitiu-se uma viagem ao que ele chamava “o bas-fond”, para assegurar-se de que a humanidade estava mesmo decadente e precisava de providências espirituais imediatas, e por outro lado para saber se aquilo que os outros pastores e pastoras contavam aos sussurros era mesmo verdade; tanto era que ao longo de uma tarde e uma noite ricocheteando de bar em bar e de strip em strip Jurandir conheceu um brasileiro saradão e simpático que lhe serviu não apenas de cicerone, e no encerramento da noite fizeram selfies de peruca, selfies junto ao pôster de Milo Manara no motel, e ao se despedirem o rapaz confessou: “mau pai é dessa mesma congregação, Pastor Dioclécio, vai adorar ver essas fotos do concorrente dele”.
Em agosto de 1993, em São Paulo, a banda recifense Trovão das Alfaias gravou seu primeiro álbum, intitulado “Linha do Tiro”. Ao entrar na fase de produção gráfica, foi escolhida para ilustrar a contracapa do álbum uma foto de estúdio, no último dia de gravação, reunindo na mesma imagem todos os integrantes, a equipe técnica, roadies, os músicos de estúdio, alguns convidados, um bloco de mais de vinte pessoas eufóricas e sorridentes, todas abraçadas, umas sentadas no chão, outras de pé, etc. Lançado o disco, os músicos da banda começaram a ser interrogados sobre quem era o homem meio calvo, de bigode escuro, camisa branca e jeans, sentado no meio da turma, sorrindo e acenando. “Não sei, era um amigo de alguém que estava lá,” diziam eles; um jornalista do Recife dedicou mais de quatro anos a uma pesquisa infrutífera, entrevistando todos os demais presentes na foto, o fotógrafo, os donos do estúdio, os funcionários da gravadora. Vinte e sete anos passados, ninguém identificou ainda o homem que aparece na foto.
Raymond Deverreaux, 55 anos, decorador, parisiense, tocou às 15:30 de uma tarde outonal à porta do apartamento de sua cliente Mme. Charbonnier, 74 anos, fez-se anunciar pela criada, olhou pela janela do décimo andar que dava para um pátio interno o chuvisco melancólico daquele outubro, foi até o sofá e deixou-se cair com todo alívio dos seus 120 quilos sobre as almofadas, xales, e lenços estampados que o cobriam, e mal o fez sentiu sob os glúteos o estalo inconfundível de uma delgada coluna vertebral se partindo, arredou-se dali com um prenúncio de horror que apenas se confirmou ao ver sob as sedas e drapeados o corpo agora para sempre imóvel de Pierrot, o lulu de estimação da madame, alegria dos seus olhos, luz dos seus dias. A idéia lhe veio em dois segundos, e em mais três o gesto de levar o falecido até a janela e entregá-lo aos desígnios da lei da gravidade; e dez segundos depois estava a porta do apartamento silenciosamente se fechando às suas costas, e ele se retirava com o coração num tumulto de perplexidade, rancor, remorso e novamente alívio.
Domenico Mastratti, 65 anos, de Milão, colecionador de arte impressionista, precisou vender o apartamento vizinho ao que ocupava, e que estava vazio há alguns anos. Candidatou-se à compra um individuozinho insuportável, Cesare Puntibasta, 40 anos, animador de TV, efeminado, melífluo, vulgar, invasivo, cheio de falsas intimidades, rodeado de companhias constrangedoras, que em apenas dois encontros conquistou a antipatia eterna do signore Domenico, o qual jurou para si (e para a governanta que cuidava de sua vida de solteirão empedernido) que jamais se tornaria vizinho daquele desclassificado; que felizmente sumiu quando viu que de nada adiantavam suas insistentes visitas e ligações. O signore Domenico teve um ou dois dias de trégua até que lhe apareceu uma segunda candidata, a signora Marchesi, 60 anos, psicóloga aposentada, uma mulher viúva, culta, séria, que teceu elogios ao silêncio do edifício, à faixa etária dos serviçais, aos conceitos pétreos da privacidade e da cidadania. Uma semana de tratativas entre os respectivos advogados bastaram para que o signore Domenico assinasse o contrato de venda, em nome de um sobrinho e futuro herdeiro, pois (explicou-lhe a psicóloga) empecilhos jurídicos a impediam de comprar em seu próprio nome. Chancelada a venda, tomaram os dois um discreto vinho tinto e a signora Marchesi sumiu para sempre, pois a mudança que chegou no dia seguinte foi a do sorridente Puntibasta, cujo verdadeiro nome estava no contrato conseguido por ela: Elsa Cormorante, atriz de filmes B em Cinecittà, que aliás o encarregara de deixar “dois beijos bem estalados na cara de Domenico, um fofo!”, o que Puntibasta se apressou a executar, para gáudio dos carregadores e consternação da governanta.