segunda-feira, 11 de março de 2019

4444) A Colecionadora (11.3.2019)



Eu fiquei pensando numa idéia para um argumento, podia ser filme, livro, etc., meio que inspirado no livro O Colecionador (1963) de John Fowles, que foi filmado em 1965 por William Wyler com o mesmo título.

Pra quem não conhece, é um livro extraordinário (e um filme bastante bom) onde Frederick Clegg, um sujeito macambúzio, insignificante, mesquinho, curte uma paixão voyeurística à distância por uma estudante de Belas Artes que ele vê sempre passar na rua, chamada Miranda.

Um dia, Clegg ganha uma fortuna na loteria, e como não tem família, vive só, não precisa dar satisfações a ninguém, ele prepara o porão da casa onde mora, rapta Miranda e a mantém refém, dizendo algo tipo “você vai ficar presa aqui até se apaixonar por mim”.

Clegg, que ela passa a chamar de “Calibã” (o diário escrito por ela no cativeiro é uma das partes principais do livro) é o típico sujeito que hoje se chama “incel”, “celibatário involuntário”, ou, no curto e grosso, um cara que gostaria de comer gente, mas não come ninguém porque ninguém suporta ele.

Muito bem. Uma das táticas mais elementares de “brainstorming criativo” é inverter situações: em vez da família rica que fica pobre, imaginar uma família pobre que fica rica, ou em vez de um navio onde todo mundo é real e aparece um fantasma imaginar um navio onde todo mundo é fantasma, e aparece um cara real.

As possibilidades, como sempre, são infinitas.

Eu me pus a imaginar uma reversada no plot de John Fowles, e imaginar uma nova Miranda, contemporânea e carioca da gema. Ela é linda, inteligente, sensível, artística, solteira, politicamente correta, cheia de entusiasmo pela vida...  Ganha uma herança vultosa e se deixa arrebatar por um sonho: pegar aquele rapaz feioso, nerdoso, que a segue pela rua e a stalkeia nas redes sociais, e ensinar a ele a beleza da vida!

Todo ser humano é fundamentalmente bom, acredita ela. Vamos apostar nas pessoas! Todo mundo só precisa de uma chance, mas uma chance real, concreta. E a luz prevalecerá!

Não, nada de sexo envolvido. Mas como ela mora sozinha no casarão que herdou dos pais, e tem um porão super climatizado (onde o falecido pai tinha seu laboratório fotográfico), e acabou de ganhar uma baba de grana de herança...

Aqui entra, roteiristicamente, um trecho problemático porque é preciso devisar uma maneira plausível de fazer Miranda sequestrar o cara sozinha. Mas dá pra resolver – como ele é praticamente um ermitão, sem amigos, não darão muito pela sua falta. E ela pode abordá-lo, dizer algo tipo “apareça lá em casa às 3 da madrugada, sem ser visto, discretamente, e não sabe a surpresa que o espera...”  Qual o nerd misantropo e donzelão que não morde essa isca?

Ela se assanha toda e começa os preparativos.  Por que não fazer uma caridade àquela alma atormentada, aquele protofascistazinho meio imberbe (Miranda tem 40 anos, é uma coroaça nos trinques, Calibã tem trinta de ressentimento e cigarros), manietá-lo, trazê-lo a pão e água (e ocasionais recompensas pavlovianas), dar-lhe umas lições de moral, de ética pós-moderna, mostrar-lhe o erro dos seus modos, até que ele desperte, se ilumine por dentro, floresça, desabroche, passe a devorar com sofreguidão livros de Foucault e poemas de Walt Whitman, descubra as sutilezas da música de Tom Jobim e o vigor telúrico do Cacuriá de Dona Teté?!

Miranda é pura, é boa, acredita na humanidade. Ela quer ser uma Anne Frank ao contrário, e para isso atrai Calibã, sequestra-o, deixa-o trancafiado. Não teme os confrontos a sós: ela faz academia, capoeira e krav-magá, enquanto que “Frederico” é anoréxico e baixinho.

O filme ou livro reconstituiria os textões verbais com que ela tenta convencê-lo de que é errado dar de ombros para o desmatamento da Amazônia ou incentivar o desmantelamento da escola pública. Ela explica a ele que a Terra não é plana, leva inclusive um globo terrestre (“quer que eu desenhe?”). Ela diz que ele é um dos responsáveis pelo aquecimento global e pela concentração de renda nas mãos dos super-ricos.

“Frederico” se recusa terminantemente a ceder numa vírgula. Insulta-a, chama-a dos piores nomes, diz que a amava quando era à distância, mas que agora está vendo que ela não passa de uma vagabunda igual a todas as outras... O papo de todo serial-killer.

Miranda se desespera. As amigas a veem tensa, perguntam o que é, chamam para um café na livraria preferida. Ela não sai mais de casa: sua existência virou uma anti-terapia 24 horas por dia.

Aqui eu empanquei pela segunda vez. Conseguirá Miranda fazer a razão prevalecer sobre o obscurantismo? Vai salvar aquela alma? Ou conseguirá Frederico pegá-la num vacilo, subjugá-la fisicamente, inverter a situação, submetê-la a um destino pior que a morte? Ou quem sabe será Miranda quem vai acabar perdendo as estribeiras e dizendo algo na linha de “pois você agora vai provar do seu próprio remédio”, manietando-o em seguida, abrindo a gaveta dos instrumentos, enquanto a câmera recua horrorizada degraus acima, passando a porta que se abre e depois se fecha, saindo para aquela rua tranquila do Cosme Velho onde madames e rapazes passeiam cachorros e ninguém é capaz de adivinhar os conflitos íntimos que rolam nos porões deste Brasilzão de todos nós.