quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

4035) "O Soneto de Arvers" (28.1.2016)




Meu pai tinha esse livro, uma compilação de Mello Nóbrega, quando eu estava na minha fase áurea de memorização de sonetos, entre os dez e os quinze anos. Não só sabia a diferença entre decassílabo e alexandrino como podia criar exemplos passáveis de cada um. Nas primeiras vezes em que folheei a obra ela me fascinou porque os sonetos eram todos diferentes e todos iguais. Um dia parei para ler a sério e percebi que o soneto era um só, escrito pelo poeta francês Félix Arvers, e o que havia ali eram algumas boas dezenas de traduções portuguesas e brasileiras. Além de uma lista de paráfrases, paródias, possíveis citações, etc.  São no total 130, ao que parece.

O soneto de Arvers é merecidamente famoso como soneto de salão: “Tenho na alma um segredo, e um mistério na vida...”  O poeta conta sua paixão por uma mulher, à revelia dela, e diz que um dia ela própria, a inspiradora desses versos, irá lê-los num livro, e pensará consigo: “Quem será essa mulher?”, e não compreenderá. É um bom soneto, que entre nós poderia ser de um Bilac ou de um Guimarães Passos.

Uma visão radical da tradução literária pode nos sussurrar que um soneto em francês não é mais do que um conjunto de instruções, levemente esboçadas, para alguém escrever um soneto semelhante em português. Foi o que fizeram nossos tradutores de Félix Arvers. Uns mexiam na estrutura das rimas, outros a desobedeciam por inteiro, outros eram mais realistas que o rei. Trechos longos eram revirados de dentro pra fora para fazer tempos verbais coincidirem. Mas os elementos estavam todos ali. Havia uma coisa elástica, inquebrável, complexa, era uma idéia que vinha expressa de cem maneiras diferentes e parecidas. E essencialmente iguais, em termos do tipo de impacto a que um soneto se propõe. O soneto é como o conto para Cortázar: tem que vencer por nocaute. Ainda mais porque o soneto tem tamanho fixo, previsível, todo mundo sabe quando vai terminar.

Na mesma época eu tinha lido sobre a Pedra de Roseta, na História do Mundo Para as Crianças de Monteiro Lobato. O livro sobre o soneto de Félix Arvers era uma pedra-de-roseta poética. Quando eu não sabia uma palavra do original francês, era só procurar seus correspondentes topológicos nas traduções, e eu tinha em mãos um dicionário poético. E quando eu abria o livro, minha leitura não estancava na folha aberta à minha frente, ela penetrava como um laser (que não existia ainda) nas páginas amontoadas embaixo e via a estrutura da historieta de Arvers coleando, bruxuleando, saltando de página em página e se recompondo, inteira ou cheia de ruídos, em cada nova versão.