Uma expressão popular diz que “toda regra tem exceção”.
Há mesmo uma derivada desta: “Fulano é a exceção que confirma a regra”.
Georges Perec usou de maneira muito pessoal esse conceito
ao conceber seus romances sujeitos a regras arbitrárias e asfixiantes, aquilo
que os franceses chamam de “contraintes”,
ou restrições.
No imenso romance A
Vida Modo de Usar (1978) Perec concebeu e executou uma porção de regras e
as seguiu de maneira obsessiva. As regras são arbitrárias, ou seja, ninguém o
obrigou a empregar essas regras e não outras; mas ele as criou e obrigou-se a
segui-las, por impulso estético, por desafio intelectual, por divertimento maníaco.
Como alguém que diz: “Vou escrever uma carta onde todas
as palavras têm que começar com a letra C”. Guimarães Rosa escreveu uma carta
assim para seu amigo João Cabral de Melo Neto.
Ninguém o obrigou a fazer isso.
Leia aqui, na página do Templo Cultural Delfos, a “Carta
ao Cônsul Cabral”:
https://www.elfikurten.com.br/2016/03/joao-guimaraes-rosa-carta-ao-consul.html
A literatura tem espaço para desafios desse tipo, e o
maior desafio é produzir com isto uma história que se torne interessante para o
leitor, que o faça ter vontade de continuar lendo sem parar, e não fechar o
livro dizendo: “Ah, entendi. A regra é essa, e ele vai fazer isso até o fim...
Tchau!...”.
Não é só a regra. É o modo como a vida humana, mesmo
submetida a regras bizarras, continua sendo a coisa mais interessante em um
romance.
Perec dizia, contudo, que não é apenas a regra que é
obrigatória, mas a exceção. Nesse livro, por exemplo, ele descreve um edifício
parisiense com dez andares e dez aposentos por andar; em tese, o livro deveria
ter 100 capítulos, mas só tem 99. Por
que? É a exceção obrigatória.
Perec escreveu o famoso La Disparition (1969; traduzido no Brasil por Zéfere como O Sumiço) sem empregar a letra E em
momento algum. É possível, contudo, que
em algum ponto do livro apareça, leve, serelepe, demente, uma letra E para ser
essa famosa “exceção que confirma a regra”. Eu ainda não a encontrei.
Perec comparou esse tipo de recurso à idéia do
“clinâmen”, um nome latino atribuído a um conceito da filosofia grega, acho que
formulado por Epicuro.
(Epicuro)
A teoria dos gregos dizia que os átomos se movimentavam
no espaço afastados uns dos outros, e num movimento uniforme, inalterável.
Desse modo (questionava alguém) como os átomos poderiam ter começado a se
misturar, produzindo a matéria como a conhecemos?
A resposta é que em algum momento um átomo se desviava
imprevistamente e se chocava com os átomos mais próximos, e daí começava um
amontoamento, um turbilhão de choques, os átomos se recombinavam e a matéria
surgia desse processo. Isto era o “clinâmen”.
Ou seja: para que haja ordem é necessária a presença de
um fator de desordem, de contradição, de desobediência à regra, de
voluntarismo.
Isto talvez não se aplique à Ciência e à moderna teoria
atômica, mas é interessante quando aplicado à literatura, onde as regras são
outras e, o que é melhor: são inventadas pelos escritores, e não impostas pela
Natureza.
Siga a regra: mas deixe uma portinhola aberta para que
por ali se infiltre a exceção. Para que? Para tornar a regra mais nítida. Como
naqueles filmes em preto-e-branco onde “do nada” surge uma imagem de um objeto
colorido (O Selvagem da Motocicleta, A Lista de Schindler, etc.).
E também para mostrar que o mundo não comporta apenas o
previsível, mas o inesperado. A natureza não consiste apenas numa Ordem, mas numa
sucessão de Ordens e Desordens, equilíbrios e desequilíbrios, onde o excesso de
um é compensado pelo surgimento do outro.
Numa entrevista de 1981, Perec assim justificava a
necessidade de “temperar” suas regras exigentíssimas com alguns deslizes propositais:
É preciso, e isto tem muita importância, destruir o sistema das
restrições, das regras. Esse sistema não tem que ser rígido, ele tem que conter
um elemento de jogo... É como se diz: tem que ranger um pouco. Ele não tem que
ser completamente coerente, é preciso que haja um clinâmen – algo que
aparece na teoria de Epicuro sobre os átomos: ‘O mundo funciona porque, no seu
início, existe um desequilíbrio’. Segundo Paul Klee, ‘o gênio é um erro no
interior do sistema’”.
Uma grande parte das explicações do mundo o descreve como
uma luta eterna entre o Bem e o Mal. A literatura vem glosando essa “batalha” há
milênios: heróis e vilões, mocinhos e bandidos, gente do Bem e gente do Mal...
Tudo isto existe, é claro, mas o mundo não se resume a
isto. O Bem e o Mal são conceitos que se aplicam à vida humana, mas não ao
universo como um todo.
Não existe bem ou mal nas reações nucleares que fazem
brilhar as estrelas, nem na força da gravidade, nem nas aglomerações de matéria
que produzem planetas, cometas, etc. O
que existe ali é um cabo-de-guerra permanente entre a Ordem e a Desordem.
A Ordem (vista do ponto de vista humano) pode ser uma
coisa boa ou uma coisa ruim; a Desordem, idem. Os interesses humanos, sejam
coletivos ou individuais, vivem mergulhados nessa oposição.
Quando há um excesso de Desordem, é preciso que alguém
imponha ali um pouco de regras, para que haja algum tipo de comunicação, de
união coletiva, de esforço coordenado, de redução de esforços e otimização de
resultados. O excesso de Desordem, o caos, leva à Entropia: à dissipação de
energia do universo.
Quando há um excesso de Ordem, é preciso que surja algum
elemento perturbador, que desequilibra o que está imóvel, que vem “desafinar o
coro dos contentes”, que pega aquela ordem adormecida e a desperta, extrai
reações, faz com que ela volte à vida. O excesso de Ordem, o imobilismo, leva à
Entropia: a dissipação de energia do universo.
A Ordem absoluta não se distingue muito do Caos absoluto.
Falta a ambos o elemento de contradição que põe o universo em movimento.
A Vida (o surgimento de seres vivos) pode ser o clinâmen
do universo.